Os gnósticos não compreenderam o mistério da liberdade, da liberdade em Cristo, assim como não compreenderam o mistério do amor. Existe aí um dualismo desesperado, que inverte a verdadeira hierarquia do ser. Os gnósticos não entreviram a ordem dos valores sobre a qual repousa o universo cristão, onde o grau supremo está organicamente ligado ao grau mais baixo, servindo assim à causa da transfiguração e da salvação universal. Eles interpretaram falsamente o princípio da hierarquia. A gnose suprema dos homens “espirituais” é necessária para a salvação e a transfiguração dos homens “carnais”. Os homens espirituais não devem permanecer orgulhosamente sobre os cumes, separados do mundo “carnal”, mas devem se consagrar à sua espiritualização, elevá-lo aos graus mais altos. De resto, a fonte do mal é espiritual, não carnal. A Igreja condenou com justiça o orgulho dos gnósticos, seu dualismo desesperado, o sentimento pouco fraterno e desprovido de amor que eles manifestavam contra o mundo e os homens. Mas a consciência da Igreja estava orientada de preferência para o homem médio, o homem da massa, ela estava preocupada em guiá-lo, preocupada com a grande obra de sua salvação. Ao censurar o gnosticismo, ela afirmou e legalizou, de certo modo, o agnosticismo. O mesmo problema que atormentava profunda e sinceramente os gnósticos foi, por assim dizer, reconhecido como ilegal e inadmissível no Cristianismo, as mais altas aspirações do espírito, a sede de um conhecimento profundo dos mistérios divinos e cósmicos, foram adaptados para o nível médio da humanidade. Não apenas a gnose de Valentim, como a de Orígenes, foram consideradas inadmissíveis e perigosas, como o é atualmente a de Soloviev. Um sistema de teologia foi elaborado para se tornar um obstáculo à gnose superior. Somente os grandes místicos cristãos chegaram a abrir para si uma passagem através dessas fronteiras fortificadas.
Devemos reconhecer que o conhecimento dos antigos gnósticos era problemático, que ele não havia se livrado da demonolatria; nele, o Cristianismo estava mesclado a cultos pagãos, à sabedoria pagã. Entretanto, poderia existir um conhecimento cristão superior, mais esclarecido, que não seria mais exclusivamente exotérico e adaptados aos interesses do coletivo, como o é aquele que existe nos sistemas dominantes da teologia oficial. Poderiam existir no Cristianismo não apenas São Tomás de Aguino, como também Jacob Boehme, não apenas o metropolita Filatetes, como Vladimir Soloviev. Se os homens “espirituais” não devem ser vaidosos do grau que atingiram, nem se separar dos homens “psíquicos” e dos carnais, nem por isso devemos concluir que eles não existem, nem rejeitar as aspirações de seu espírito e de sua sede torturante
Afirmando que não existe um conhecimento “espiritual” superior. Isso equivaleria, num sentido oposto, à mesma destruição da hierarquia orgânica que encontrávamos nos gnósticos. O mundo renega e desdenha facilmente de toda via espiritual, de toda aspiração do espírito, de todo conhecimento superior; ele imagina de bom grado que eles o entravam em seu trabalho de organização universal e que ele pode facilmente passar sem eles. Ele proclama isso a torto e a direito, por milhares de milhões de bocas. Ademais, nada pode ser mais penoso do que observar a consciência da Igreja subscrita à negação do espírito professada pelo Estado, negação que, nos confins do mundo, no comunismo ateu, se transforma em extermínio definitivo do espírito, da vida e da aristocracia espirituais.
“Não extingais o espírito[3]”, disseram-nos; ora, negar a problemática da consciência cristã equivale a esquecer esse preceito. O trabalho que objetiva a iluminação do mundo não exige uma diminuição da qualidade do espírito. Assim, o problema, antes de tudo, é aquele do espírito e da vida espiritual.
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Eu gostaria que ficasse bem entendido aquilo que eu pretendo expressar nesse livro. Eu reconheço que existe algo de essencial que não consigo traduzir em palavras, e que não tenho como desenvolver meus pensamentos íntimos. É muito difícil encontrar uma forma de expressão que transmita exatamente a ideia essencial que vivemos dentro de nós. Tudo o que eu escrevo nesse livro está ligado à problemática torturante do espírito. Conforme o aspecto de meu espírito, eu revisto minhas questões preocupantes de um modo que é ao mesmo tempo afirmativo e oculto, e coloco meus problemas sob a forma de uma firmação. Mas meu pensamento, em meu ser interior, é o de um homem que coloca problemas para si, sem que eu seja um cético. Para a solução de meus problemas de espírito, ou antes, do único problema que consiste nas relações entre o homem e Deus, eu não posso receber auxílio do exterior. Aqui, nenhum staretz, por avançado que seja na vida espiritual, poderá ser de valia. Todo o problema reside no fato de que eu devo descobrir por mim mesmo o que Deus me escondeu. Deus espera de mim um ato de liberdade, uma criação livre. Minha liberdade e minha criação são minha obediência à vontade secreta de Deus, que espera do homem algo que vai além e que é bem mais do que entendemos habitualmente quando se fala de Sua vontade. Talvez eu devesse me ocupar, não da metafísica abstrata de Deus, mas de Sua psicologia concreta. É possível que Deus chore sangue ao ver como os homens compreendem servilmente Sua vontade e a cumprem de modo puramente formal. A vontade divina deve ser cumprida até o final. Não quis Deus que o homem fosse um livre criador? Não ama Ele até um Nietzsche, que O combate?
Meu livro não é um livro de teologia, nem foi escrito segundo um método teológico; ele não pertence a uma escola filosófica; ele faz parte da filosofia profética, para a distinguirmos da filosofia científica, para empregarmos a terminologia proposta por Jaspers. Eu evite a linguagem de escola, conscientemente. Trata-se de um livro de teosofia[4] livre, escrito dentro de um espirito de filosofia religiosa e de gnose livres. Nele, eu ultrapassei conscientemente os limites do conhecimento filosófico, teológico e místico, que o pensamento ocidental se deleita em estabelecer, tanto quanto nas escolas católica ou protestante, como na filosofia acadêmica.
Eu me reconheço como um teósofo cristão, no sentido daquilo que eram Clemente de Alexandria, Orígenes, São Gregório de Nissa, Jacob Boehme, Saint Martin, Franz Baader, Vladimir Soloviev. Todas as forças de meu espírito e da minha consciência estão orientadas no sentido da penetração absoluta dos problemas que me atormentam. E meu objetivo é menos o de lhes dar uma solução sistemática, do que colocá-los com mais vigor diante da consciência cristã. Não se deve ver nesse livro palavra alguma dirigida contra a santidade da Igreja. Eu posso me enganar muito, mas minha vontade não é de apresentar uma heresia qualquer, ou protesto que possa gerar um cisma. Eu me situo na esfera da problemática cristã; ela exige esforços criativos do pensamento e as mais diversas opiniões estão aí autorizadas naturalmente.
Paris-Clamart, 1927
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