Então, podemos virar a página, girar a roda e encontrar o eixo da cruz que também gira.
Encontremos a integração das quatro escolas, porque nesse meio tempo há uma revelação do Ser.
Na tradição dos terapeutas de Alexandria, tudo não se trata, simplesmente, de uma questão filosófica. Trata-se, também, de pessoas que acreditam. Isso quer dizer que, nesta fraternidade, se encontram duas grandes correntes de pensamentos: o grego e o semita. São duas visões do cosmos, duas visões do ser humano completamente diferentes. Então, trata-se de fazer uma síntese.
O cristianismo vai herdar essa síntese entre o mundo semita e o mundo helênico através dos terapeutas de Alexandria, um século antes de Cristo. Na beira do lago Mariotes, onde homens e mulheres se reúnem para viver uma vida bem aventurada, que, para eles, é uma vida em comunhão com o Ser Que É o Que É. Esse “Eu Sou” que se revelou a Moisés. Trata-se de viver em comunhão com o Ser que nos faz ser; tomar consciência do Ser que faz existir todas as coisas.
Cuidar do ser significa cuidar da vida, do vivente, em todas as dimensões da realidade. De início, há o cuidado do ser na natureza. Há também um jardim com legumes, com todo tipo de árvores e frutas, com animais. Vocês se lembram da palavra Éden? É o jardim. Essa mesma palavra, em persa, é o Jardim do Paraíso.
Nesse jardim, encontramos os elementos da sabedoria de Epicuro, o retorno à natureza: cuidar do ambiente do qual nós fazemos parte. [...]
Nosso corpo é composto por todos os elementos, como uma parte do universo. Cuidar do nosso corpo e do corpo do outro, é cuidar do universo, da parte do universo que nos é confiada. E vocês sabem da importância dos alimentos para os terapeutas, que é muito simples. E também a importância das vestimentas. Todos esses detalhes materiais são ocasiões para se lembrar da presença do Ser e, também, uma maneira de viver cada instante, cada momento presente, como algo sagrado. As panelas da nossa cozinha são tão preciosas quanto os vasos do altar. O templo é a vida cotidiana. É preciso cuidar do ser no corpo que somos e no corpo do universo.
Há também o cuidar do ser no conhecimento, a importância do estudo para os terapeutas. Vocês se lembram desses campos de estudos? Há o livro da natureza, o livro das escrituras, o livro do coração, o livro do corpo, o livro da noite, o livro dos sonhos. Filon de Alexandria escreveu muito sobre os sonhos, pois em todos esses livros, quer seja o da natureza, o das escrituras, o do corpo ou o do coração humano, é o mesmo logos que fala, a mesma informação criadora.
São João, no prólogo do seu Evangelho, vai se lembrar de toda essa sabedoria de Filon: da Luz que habita todo o ser humano que vem a esse mundo. Cada um de nós é habitado por uma centelha da divindade, não só os seres humanos, mas cada elemento da criação.
Por isso, como na escola de Aristóteles, estudamosa natureza. Descobrimos a inteligência que está nela e tentamos nos harmonizar com essa inteligência [...] descobrir que elas são uma só. Descobrir o logos que nos religa a toda criação. É necessário e importante o estudo da natureza. Não somente ter prazer, mas também buscar compreender.
Há, igualmente, o livro das escrituras. Filon dizia que o que é escrito no livro das escrituras, no livro dos profetas, no livro dos sábios é a mesma coisa que nos diz a espuma, que nos dizem as flores, as nuvens, mas numa linguagem humana. Quer dizer que o vivente nos ama. E o que o vivente busca a nossa consciência, o nosso acordo, a nossa harmonia na união com ele.
Alguns são sensíveis à linguagem da natureza e outros à linguagem das escrituras, ou os textos sagrados, qualquer que seja a tradição. Outros são mais sensíveis à linguagem do corpo, ou à linguagem do coração. Mas em todas essas linguagens é a mesma inteligência criadora que nos fala.
Além da energia da criação, há também a inteligência criadora e, ainda, a imaginação criadora. Um aspecto interessante nos terapeutas de Alexandria é a importância dada aos arquétipos e às imagens. Trata-se de cuidar não somente do nosso corpo, da nossa inteligência, dos nossos pensamentos, mas também das imagens que nos habitam. Essas imagens que, por vezes, nos falam através dos sonhos. É a linguagem dos textos sagrados e do inconsciente.
A linguagem dos conceitos, da análise, não é conveniente para todo mundo. Outros são mais sensíveis à linguagem poética, às imagens dos sonhos. Trata-se também de ouvir os ensinamentos que nos são dados através das imagens, dos arquétipos.
[...]
Por isso, Filon dirá, como Sócrates, que o ser em si mesmo, a realidade absoluta, permanece sempre desconhecida; o real permanece oculto nas realidades que manifesta. O que nós conhecemos não é o real; são as realidades que ele manifesta: a realidade primeira e as realidades intermediárias – o mundo das ideias e dos arquétipos, e o mundo das imagens. E há a realidade material, essa da qual podemos ter consciência. Todas essas são manifestações do real. Mas o real, na sua essência, permanece inacessível.
Daí a importância, para os terapeutas de Alexandria, do silêncio, da meditação silenciosa; porque somente através do silêncio podemos conhecer o silêncio. E o absoluto é o que há de mais silencioso em nós: o que existe antes do mundo das imagens, antes do mundo das ideias, antes do mundo dos pensamentos. Há essa fonte silenciosa e aí se trata de cuidar do ser nessa dimensão.
Não ter medo do vazio e do silêncio, pois é a partir desse silêncio que nascem todas as realidades. É a partir desse espaço que não podemos tocar, que não podemos apreender, que todas as coisas se manifestam; eis a importância do espaço entre nós.
Há também uma quarta dimensão, que podemos chamar de relação criadora. As nossas relações nos transformam. Após encontrarmos essa ou aquela pessoa, se nós nos deixamos tocar por ela, algo em nós é modificado.
O real é o Encontro. Existir é se encontrar. O que, por vezes, nos transforma. Para nós, terapeutas, eis toda a importância da fraternidade. Onde não há a fricção, estamos na ficção. Quer dizer que, se as nossas personalidades não se enfrentarem, não conheceremos quem somos.
O conflito não é o que impede a aliança, desde que nele não nos fechemos. Às vezes nos ocorre um conflito através do qual poderemos descobrir uma maneira de união mais profunda. Nesse caso, vamos ver toda a importância do perdão, para que não nos fechemos no passado, para que reencontremos a nossa liberdade, para que a vida possa circular entre nós.
Nos terapeutas de Alexandria há essa busca da integração do corpo, da inteligência, da contemplação, do imaginal e do mundo relacional; é preciso cuidar de todas essas dimensões.
[...]
(Extraído do texto de Jean-Yves Leloup: Uma Vasta e Ancestral Herança)
Continua...
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