quarta-feira, 24 de abril de 2024

A ORDEM DOS TERAPEUTAS 5

Podemos fazer girar a roda outra vez, porque não há somente os filósofos antigos e os terapeutas de Alexandria; há também esse momento na história no qual, através da pessoa do Cristo, algo do Ser se revela. Novamente, vamos encontrar o quaterno:

Terceira Quaternal

 

Aqui entramos no que é chamado de Comunidade Joanista, que também é uma escola de sabedoria. O que aconteceu em torno de São João, na ilha de Patmos e em Éfeso, foi a revelação do Eu Sou em um corpo, a presença do Ser em uma forma humana, a presença do Infinito no finito, a presença do Eterno no tempo.

A consciência toma corpo para que o corpo tome consciência. A luz se torna matéria para que a matéria retorne à luz. Há esse movimento que, na teologia, é chamado de Kenosis – a descida da luz na matéria; mas há também esse movimento denominado de Teosis, o retorno à luz, o retorno a Deus.

Nesse caso, a vida bem aventurada é deixar existir em nós o ser bem aventurado, o eu sou bem aventurado, eu sou a vida, eu sou o vivente. Deixar que a vida exista mais em nós. Eu sou a luz – são tantas mensagens de Yeshua que estão no interior do seu eu humano.  Ele deixa, a partir do seu eu humano, falar o eu sou divino. Eu sou a liberdade, a verdade, a vigilância, a atenção que liberta. Não identificar-se com o que conhecemos de nós e do outro é a abertura ao infinito, a abertura dos nossos limites.

Somos limitados, mas não estamos fechados em nossos limites. Trata-se de abrir o nosso ego, de abrir o nosso pequeno eu para a presença do Eu Sou, que é livre em mim, que é também o Eu Sou do amor. Deixar existir em nós aquele que ama. Às vezes é preciso saber que aquele que ama em nós, ama aquilo que nós não amamos com o pequeno ego.

Não é o eu que perdoa; é o Self que é capaz de perdoar situações que são imperdoáveis e que não podemos perdoar por meio do nosso próprio poder. Trata-se de se abrir a esse poder do Eu Sou, esse que em mim é mais amoroso, mais inteligente que eu e que pode compreender. É aquele que compreende tudo, perdoa tudo, como afirmava Platão.

Não se deve opor o conhecimento ao coração. O perdão é uma questão de inteligência, mas é também uma questão de saúde. Se houver em nós rancores, a vida não pode mais circular; o rancor ou não perdão é um veneno para o nosso corpo. Perdoar não é algo que é bom somente para o outro a quem perdoamos; sobretudo, é bom para nós mesmos. Então, a energia da vida pode circular e nos tornamos mais livres. O Eu Sou que está em nós nos quer livres com relação às nossas memórias, ao nosso passado. O Eu Sou, que está em nós, nos quer capazes de amar, até mesmo aquilo que não nos agrada. Trata-se de transformar certas situações e fazer delas uma ocasião de transcendência, de ultrapassar a nós mesmos, porque nos realizamos e nos completamos ao nos ultrapassarmos. Eis o que a Comunidade Joanista, ou Evangelista, vai tentar realizar.

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(Extraído do texto de Jean-Yves Leloup: Uma Vasta e Ancestral Herança)

Continua...

sexta-feira, 19 de abril de 2024

A ORDEM DOS TERAPEUTAS 4



Em Atenas, infelizmente, essas escolas [Jardim de Epicuro, Liceu de Aristóteles, Academia de Platão e Estoicos] se opunham umas às outras. Havia uma oposição entre o prazer e o desejo, entre a voz do conhecimento, a da contemplação e a voz da ação. O que interessa é que nós, segundo os terapeutas de Alexandria, tratemos de manter todas essas dimensões juntas.

Então, podemos virar a página, girar a roda e encontrar o eixo da cruz que também gira.

Encontremos a integração das quatro escolas, porque nesse meio tempo há uma revelação do Ser.

Segunda Quaternal


Na tradição dos terapeutas de Alexandria, tudo não se trata, simplesmente, de uma questão filosófica. Trata-se, também, de pessoas que acreditam. Isso quer dizer que, nesta fraternidade, se encontram duas grandes correntes de pensamentos: o grego e o semita. São duas visões do cosmos, duas visões do ser humano completamente diferentes. Então, trata-se de fazer uma síntese.

O cristianismo vai herdar essa síntese entre o mundo semita e o mundo helênico através dos terapeutas de Alexandria, um século antes de Cristo. Na beira do lago Mariotes, onde homens e mulheres se reúnem para viver uma vida bem aventurada, que, para eles, é uma vida em comunhão com o Ser Que É o Que É. Esse “Eu Sou” que se revelou a Moisés. Trata-se de viver em comunhão com o Ser que nos faz ser; tomar consciência do Ser que faz existir todas as coisas.

Cuidar do ser significa cuidar da vida, do vivente, em todas as dimensões da realidade. De início, há o cuidado do ser na natureza. Há também um jardim com legumes, com todo tipo de árvores e frutas, com animais. Vocês se lembram da palavra Éden? É o jardim. Essa mesma palavra, em persa, é o Jardim do Paraíso.

Nesse jardim, encontramos os elementos da sabedoria de Epicuro, o retorno à natureza: cuidar do ambiente do qual nós fazemos parte. [...]

Nosso corpo é composto por todos os elementos, como uma parte do universo. Cuidar do nosso corpo e do corpo do outro, é cuidar do universo, da parte do universo que nos é confiada. E vocês sabem da importância dos alimentos para os terapeutas, que é muito simples. E também a importância das vestimentas. Todos esses detalhes materiais são ocasiões para se lembrar da presença do Ser e, também, uma maneira de viver cada instante, cada momento presente, como algo sagrado. As panelas da nossa cozinha são tão preciosas quanto os vasos do altar. O templo é a vida cotidiana. É preciso cuidar do ser no corpo que somos e no corpo do universo.

Há também o cuidar do ser no conhecimento, a importância do estudo para os terapeutas. Vocês se lembram desses campos de estudos? Há o livro da natureza, o livro das escrituras, o livro do coração, o livro do corpo, o livro da noite, o livro dos sonhos. Filon de Alexandria escreveu muito sobre os sonhos, pois em todos esses livros, quer seja o da natureza, o das escrituras, o do corpo ou o do coração humano, é o mesmo logos que fala, a mesma informação criadora.

São João, no prólogo do seu Evangelho, vai se lembrar de toda essa sabedoria de Filon: da Luz que habita todo o ser humano que vem a esse mundo. Cada um de nós é habitado por uma centelha da divindade, não só os seres humanos, mas cada elemento da criação.

Por isso, como na escola de Aristóteles, estudamosa natureza. Descobrimos a inteligência que está nela e tentamos nos harmonizar com essa inteligência [...] descobrir que elas são uma só. Descobrir o logos que nos religa a toda criação. É necessário e importante o estudo da natureza. Não somente ter prazer, mas também buscar compreender.

Há, igualmente, o livro das escrituras. Filon dizia que o que é escrito no livro das escrituras, no livro dos profetas, no livro dos sábios é a mesma coisa que nos diz a espuma, que nos dizem as flores, as nuvens, mas numa linguagem humana. Quer dizer que o vivente nos ama. E o que o vivente busca a nossa consciência, o nosso acordo, a nossa harmonia na união com ele.

Alguns são sensíveis à linguagem da natureza e outros à linguagem das escrituras, ou os textos sagrados, qualquer que seja a tradição. Outros são mais sensíveis à linguagem do corpo, ou à linguagem do coração. Mas em todas essas linguagens é a mesma inteligência criadora que nos fala.

Além da energia da criação, há também a inteligência criadora e, ainda, a imaginação criadora. Um aspecto interessante nos terapeutas de Alexandria é a importância dada aos arquétipos e às imagens. Trata-se de cuidar não somente do nosso corpo, da nossa inteligência, dos nossos pensamentos, mas também das imagens que nos habitam. Essas imagens que, por vezes, nos falam através dos sonhos. É a linguagem dos textos sagrados e do inconsciente.

A linguagem dos conceitos, da análise, não é conveniente para todo mundo. Outros são mais sensíveis à linguagem poética, às imagens dos sonhos. Trata-se também de ouvir os ensinamentos que nos são dados através das imagens, dos arquétipos.

[...]

Por isso, Filon dirá, como Sócrates, que o ser em si mesmo, a realidade absoluta, permanece sempre desconhecida; o real permanece oculto nas realidades que manifesta. O que nós conhecemos não é o real; são as realidades que ele manifesta: a realidade primeira e as realidades intermediárias – o mundo das ideias e dos arquétipos, e o mundo das imagens. E há a realidade material, essa da qual podemos ter consciência. Todas essas são manifestações do real. Mas o real, na sua essência, permanece inacessível.




Daí a importância, para os terapeutas de Alexandria, do silêncio, da meditação silenciosa; porque somente através do silêncio podemos conhecer o silêncio. E o absoluto é o que há de mais silencioso em nós: o que existe antes do mundo das imagens, antes do mundo das ideias, antes do mundo dos pensamentos. Há essa fonte silenciosa e aí se trata de cuidar do ser nessa dimensão.

Não ter medo do vazio e do silêncio, pois é a partir desse silêncio que nascem todas as realidades. É a partir desse espaço que não podemos tocar, que não podemos apreender, que todas as coisas se manifestam; eis a importância do espaço entre nós.

Há também uma quarta dimensão, que podemos chamar de relação criadora. As nossas relações nos transformam. Após encontrarmos essa ou aquela pessoa, se nós nos deixamos tocar por ela, algo em nós é modificado.

O real é o Encontro. Existir é se encontrar. O que, por vezes, nos transforma. Para nós, terapeutas, eis toda a importância da fraternidade. Onde não há a fricção, estamos na ficção. Quer dizer que, se as nossas personalidades não se enfrentarem, não conheceremos quem somos.

O conflito não é o que impede a aliança, desde que nele não nos fechemos. Às vezes nos ocorre um conflito através do qual poderemos descobrir uma maneira de união mais profunda. Nesse caso, vamos ver toda a importância do perdão, para que não nos fechemos no passado, para que reencontremos a nossa liberdade, para que a vida possa circular entre nós.

Nos terapeutas de Alexandria há essa busca da integração do corpo, da inteligência, da contemplação, do imaginal e do mundo relacional; é preciso cuidar de todas essas dimensões.

[...]

(Extraído do texto de Jean-Yves Leloup: Uma Vasta e Ancestral Herança)

Continua...


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Nikolai Berdiaev - parte 3 - Espírito e Liberdade




Os gnósticos não compreenderam o mistério da liberdade, da liberdade em Cristo, assim como não compreenderam o mistério do amor. Existe aí um dualismo desesperado, que inverte a verdadeira hierarquia do ser. Os gnósticos não entreviram a ordem dos valores sobre a qual repousa o universo cristão, onde o grau supremo está organicamente ligado ao grau mais baixo, servindo assim à causa da transfiguração e da salvação universal. Eles interpretaram falsamente o princípio da hierarquia. A gnose suprema dos homens “espirituais” é necessária para a salvação e a transfiguração dos homens “carnais”. Os homens espirituais não devem permanecer orgulhosamente sobre os cumes, separados do mundo “carnal”, mas devem se consagrar à sua espiritualização, elevá-lo aos graus mais altos. De resto, a fonte do mal é espiritual, não carnal. A Igreja condenou com justiça o orgulho dos gnósticos, seu dualismo desesperado, o sentimento pouco fraterno e desprovido de amor que eles manifestavam contra o mundo e os homens. Mas a consciência da Igreja estava orientada de preferência para o homem médio, o homem da massa, ela estava preocupada em guiá-lo, preocupada com a grande obra de sua salvação. Ao censurar o gnosticismo, ela afirmou e legalizou, de certo modo, o agnosticismo. O mesmo problema que atormentava profunda e sinceramente os gnósticos foi, por assim dizer, reconhecido como ilegal e inadmissível no Cristianismo, as mais altas aspirações do espírito, a sede de um conhecimento profundo dos mistérios divinos e cósmicos, foram adaptados para o nível médio da humanidade. Não apenas a gnose de Valentim, como a de Orígenes, foram consideradas inadmissíveis e perigosas, como o é atualmente a de Soloviev. Um sistema de teologia foi elaborado para se tornar um obstáculo à gnose superior. Somente os grandes místicos cristãos chegaram a abrir para si uma passagem através dessas fronteiras fortificadas.

Devemos reconhecer que o conhecimento dos antigos gnósticos era problemático, que ele não havia se livrado da demonolatria; nele, o Cristianismo estava mesclado a cultos pagãos, à sabedoria pagã. Entretanto, poderia existir um conhecimento cristão superior, mais esclarecido, que não seria mais exclusivamente exotérico e adaptados aos interesses do coletivo, como o é aquele que existe nos sistemas dominantes da teologia oficial. Poderiam existir no Cristianismo não apenas São Tomás de Aguino, como também Jacob Boehme, não apenas o metropolita Filatetes, como Vladimir Soloviev. Se os homens “espirituais” não devem ser vaidosos do grau que atingiram, nem se separar dos homens “psíquicos” e dos carnais, nem por isso devemos concluir que eles não existem, nem rejeitar as aspirações de seu espírito e de sua sede torturante
Afirmando que não existe um conhecimento “espiritual” superior. Isso equivaleria, num sentido oposto, à mesma destruição da hierarquia orgânica que encontrávamos nos gnósticos. O mundo renega e desdenha facilmente de toda via espiritual, de toda aspiração do espírito, de todo conhecimento superior; ele imagina de bom grado que eles o entravam em seu trabalho de organização universal e que ele pode facilmente passar sem eles. Ele proclama isso a torto e a direito, por milhares de milhões de bocas. Ademais, nada pode ser mais penoso do que observar a consciência da Igreja subscrita à negação do espírito professada pelo Estado, negação que, nos confins do mundo, no comunismo ateu, se transforma em extermínio definitivo do espírito, da vida e da aristocracia espirituais.

“Não extingais o espírito[3]”, disseram-nos; ora, negar a problemática da consciência cristã equivale a esquecer esse preceito. O trabalho que objetiva a iluminação do mundo não exige uma diminuição da qualidade do espírito. Assim, o problema, antes de tudo, é aquele do espírito e da vida espiritual.

***


Eu gostaria que ficasse bem entendido aquilo que eu pretendo expressar nesse livro. Eu reconheço que existe algo de essencial que não consigo traduzir em palavras, e que não tenho como desenvolver meus pensamentos íntimos. É muito difícil encontrar uma forma de expressão que transmita exatamente a ideia essencial que vivemos   dentro de nós. Tudo o que eu escrevo nesse livro está ligado à problemática torturante do espírito. Conforme o aspecto de meu espírito, eu revisto minhas questões preocupantes de um modo que é ao mesmo tempo afirmativo e oculto, e coloco meus problemas sob a forma de uma firmação. Mas meu pensamento, em meu ser interior, é o de um homem que coloca problemas para si, sem que eu seja um cético. Para a solução de meus problemas de espírito, ou antes, do único problema que consiste nas relações entre o homem e Deus, eu não posso receber auxílio do exterior. Aqui, nenhum staretz, por avançado que seja na vida espiritual, poderá ser de valia. Todo o problema reside no fato de que eu devo descobrir por mim mesmo o que Deus me escondeu. Deus espera de mim um ato de liberdade, uma criação livre. Minha liberdade e minha criação são minha obediência à vontade secreta de Deus, que espera do homem algo que vai além e que é bem mais do que entendemos habitualmente quando se fala de Sua vontade. Talvez eu devesse me ocupar, não da metafísica abstrata de Deus, mas de Sua psicologia concreta. É possível que Deus chore sangue ao ver como os homens compreendem servilmente Sua vontade e a cumprem de modo puramente formal. A vontade divina deve ser cumprida até o final. Não quis Deus que o homem fosse um livre criador? Não ama Ele até um Nietzsche, que O combate?

Meu livro não é um livro de teologia, nem foi escrito segundo um método teológico; ele não pertence a uma escola filosófica; ele faz parte da filosofia profética, para a distinguirmos da filosofia científica, para empregarmos a terminologia proposta por Jaspers. Eu evite a linguagem de escola, conscientemente. Trata-se de um livro de teosofia[4] livre, escrito dentro de um espirito de filosofia religiosa e de gnose livres. Nele, eu ultrapassei conscientemente os limites do conhecimento filosófico, teológico e místico, que o pensamento ocidental se deleita em estabelecer, tanto quanto nas escolas católica ou protestante, como na filosofia acadêmica.

Eu me reconheço como um teósofo cristão, no sentido daquilo que eram Clemente de Alexandria, Orígenes, São Gregório de Nissa, Jacob Boehme, Saint Martin, Franz Baader, Vladimir Soloviev. Todas as forças de meu espírito e da minha consciência estão orientadas no sentido da penetração absoluta dos problemas que me atormentam. E meu objetivo é menos o de lhes dar uma solução sistemática, do que colocá-los com mais vigor diante da consciência cristã. Não se deve ver nesse livro palavra alguma dirigida contra a santidade da Igreja. Eu posso me enganar muito, mas minha vontade não é de apresentar uma heresia qualquer, ou protesto que possa gerar um cisma. Eu me situo na esfera da problemática cristã; ela exige esforços criativos do pensamento e as mais diversas opiniões estão aí autorizadas naturalmente.

Paris-Clamart, 1927


[1] Monges espirituais, com grandes conhecimentos.
[2] I Coríntios 3: 2.
[3] I Tessalonicenses 5: 19.
[4] Não confundir com o falso “teosofismo”, de Mme. Blavatsky.

domingo, 14 de abril de 2024

Nikolai Berdiaev - parte 2 - Espírito e Liberdade


 A liberdade me levou até Cristo, e eu não conheço outro caminho que conduza a Ele.   Não fui o único a ter passado por essa experiência. Todos aqueles que deixaram o Cristianismo-autoridade não podem retornar senão ao Cristianismo-liberdade. Essa é uma verdade da vida experimental e dinâmica, que não podemos ligar a nenhuma concepção das relações da liberdade e da graça. Trata-se de uma questão de ordem totalmente diversa. Admito que a graça me conduziu à fé, mas essa graça, eu a vivi com plena liberdade. Aqueles que chegaram ao Cristianismo pela liberdade, trazem a ele um espírito de liberdade. Seu Cristianismo é necessariamente mais espiritual, por ter nascido do espírito, e não da carne e do sangue. A experiência da liberdade do espírito é indelével, mas o que existe de arbitrário na liberdade é um mal que deve ser superado. Aqueles cuja religiosidade e autoritária ou hereditária sempre haverão de compreender mal os homens que chegaram à religião pela liberdade, pela imanência trágica da experiência vivida.



A vida religiosa passa por três estágios característicos: 1) pelo estágio objetivo, popular e coletivo, natural e social; 2) pelo estágio subjetivo, individual, que pertence à alma e ao espírito; e 3) por aquele que se eleva até superar a oposição entre o objetivo e o subjetivo, e que atinge o mais alto grau da espiritualidade. A aparição do Cristianismo teve como condição a passagem da religião coletiva e popular para a religião subjetiva e individual. Mas em seguida o Cristianismo se rebaixou e se cristalizou numa religião objetiva e popular, social e coletiva. É precisamente essa forma do Cristianismo que atualmente está em crise. A vida religiosa passa por uma fase subjetiva e individual, que não pode ser a última, e que se destina a ser igualmente superada.

Existem dois estados da alma que se enfrentam no decurso da história da humanidade e que têm dificuldade em se compreender mutuamente. O primeiro pertence ao coletivo, à maioria social e , exteriormente, é ele que predomina na história; o outro pertence à individualidade espiritual, a uma minoria eleita, e seu significado ao longo da história é muito mais oculto. Poderíamos denomina-los como estado “democrático” e estado “aristocrático”. Os socialistas afirmam que no curso de toda história das sociedades humanas, a minoria privilegiada explorou a maioria dos deserdados. Mas existe uma outra verdade mais profunda e menos aparente à primeira vista: o coletivo, a maioria quantitativa, sempre oprimiu e perseguiu, na história, a minoria qualitativa, a que possuía o Eros divino, as individualidades espirituais orientadas para as alturas. A história é elaborada para o homem médio, para o coletivo; é para esse que foram criados o Estado, a família, as instituições jurídicas, a escola, o conjunto dos costumes e hábitos, a organização exterior da Igreja; a ele se adaptaram o conhecimento, a moral, os dogmas religiosos e o culto. É ele, esse homem médio, esse homem massificado, que é o mestre da história, que sempre exigiu que tudo fosse feito para ele, que tudo remete a si próprio, ao seu nível e aos seus interesses.

A “direita” e a “esquerda”, os conservadores e os revolucionários, os monarquistas e os socialistas, pertencem igualmente a esse tipo coletivo “democrático”. Os conservadores, os monarquistas os partidários da autoridade, não são menos “democráticos” do que aqueles que se autointitulam “democratas”. É para esse coletivo social, para esse homem da massa, que se criam as monarquias, que é reforçada a autoridade hierárquica, que se conservam as antigas instituições, e é também em seu nome que essas coisas são abolidas e se fazem as revoluções. As monarquias absolutas e as repúblicas socialistas são igualmente necessárias às massas, são igualmente adaptadas ao homem médio. Esse último tanto dominou a nobreza, como domina a burguesia, e as classes baixas e trabalhadoras. Jamais é por intermédio da aristocracia espiritual que são estabelecidos os governos, que são elaboradas as constituições, ou os métodos de conhecimento e de criação.

Os santos, os profetas, os gênios, os homens que possuem uma vida espiritual superior, capazes da criação autêntica, não têm o que fazer com a monarquia, nem com a república, com o conservadorismo, com a revolução, com a constituição ou a escola. A raça da aristocracia espiritual não traz consigo o fardo da história. Ela está submetida às instituições, às reformas e aos métodos antigos e novos, em nome do “povo”, do coletivo, em nome da felicidade do homem médio. Evidentemente, essa raça aristocrata espiritual, esses homens eleitos, que vivem o Eros divino, pertencem à raça decaída de Adão e sofrem, por causa disso, as consequências do pecado que devem expiar. Eles não podem se isolar do “mundo”, e devem carregar seu fardo, eles devem servir à causa universal da libertação e da civilização. Não podemos senão deplorar o orgulho dos homens que, acreditando pertencer à mais alta natureza, consideram com desprezo os menores, e recusam ajudar o mundo a crescer. Mas os homens de tipo aristocrático e espiritual, que não são responsáveis pelas qualidades de sua natureza, têm na realidade um destino amargo e trágico no mundo, pois eles não podem se adaptar a nenhuma convenção social, a nenhum regime de pensamento do homem médio; sua raça é oprimida e perseguida na história.

Os homens de tipo “democrático”, orientados para as massas, para a organização da vida da coletividade, podem ser dotados de grandes talentos, sua raça pode ter grandes homens, heróis, gênios e santos. E os homens do tipo “aristocrático”, orientados para os outros mundos, para a criação de valores inúteis para o homem médio, podem ser desprovidos de gênio, poder ser-lhe inferiores por sua força e talento. Mas eles possuem uma organização espiritual diferente, que é ao mesmo tempo mais sensível, mais complexa e sutil, do que a dos “paquidermes” da raça democrática. Eles sofrem com o “mundo”, com sua pesandez, sua rudeza e sua decadência, mais do que os homens que estão orientados para as massas, para o coletivo. Mesmo os grandes homens do tipo “democrático” possuem essa simplificação da psique que os coloca ao abrigo do “mundo”, enquanto que o “mundo” fere as personalidades espirituais, que estão menos adaptadas a ele. Cromwell ou Bismarck eram do primeiro grupo, como, em certo sentido, todos os homens de ação, todos os grandes homens de Estado ou os grandes revolucionários. Podemos encontrar também essa simplificação da psique em muitos doutores da Igreja, que muitas vezes pertenceram ao tipo democrático.

Desse ponto de vista, os gnósticos apresentam um interesse especial. Grande parte deles pertencem ao tipo do aristocrata espiritual; eles parecem não ter conseguido se reconciliar com o “democratismo” da Igreja Cristã. A questão não é de saber se eles estão com a verdade; a Igreja tinha razões profundas para lutar contra eles e os condenar, pois, se eles houvessem triunfado, o Cristianismo não teria sido vitorioso na história; ele teria se transformado numa seita aristocrática. Mas a própria questão que está ligada à gnose é preocupante, eterna, e tem sua importância mesmo em nossa época. A verdade absoluta da revelação se refrata e é assimilada de modo diferente, conforme a organização e o nível espiritual daquele que a recebe. Será necessário reconhecer como absoluta e imutável a forma da revelação Cristã, destinada ao homem médio? O homem mais espiritual, mais complexo e sutil, que recebeu sua parte dos grandes dons da gnose, deverá ele se adaptar a esse nível, e rebaixar sua espiritualidade em nome da massa, em nome de uma comunhão com todo o povo cristão? Poderá a visão ecumênica ser a mesma que a visão coletiva do povo fiel? Será a via que conduz à obtenção dos dons do Espírito Santo, à perfeição espiritual, a única medida do nível espiritual e a única fonte da gnose religiosa?

É uma questão angustiante, essa do sentido religioso das aptidões e dos dons humanos. Ela se colocava para os gnósticos, especialmente para Clemente de Alexandria e Orígenes, que eram também gnósticos Cristãos. Essa questão se colocou também para Soloviev, e hoje em dia ela se coloca para a consciência religiosa: ela faz parte dos grandes problemas cristãos. Devem os problemas da consciência e do conhecimento cristãos se resolver num espírito “democrático”, visando o conjunto da humanidade, ou será possível e tolerável uma solução mais íntima, inacessível e inútil às massas? Existirá dentro do Cristianismo uma esfera na qual se possa levantar essas questões, um domínio no qual a gnose seja mais profunda? “Eu vos dei leite, não alimento sólido, que não poderíeis suportar; e mesmo agora não o podeis, porque sois seres carnais[2]”.

O Cristianismo democrático se alimenta “de leite”, porque ele está orientado para o “carnal”. E a Igreja tem suas razões para agir assim. Mas isso não resolve o problema da possibilidade de um outro alimento para uma fome espiritual insaciada. A história do espírito humano dá testemunho do fato de que a qualidade das aspirações e aptidões espirituais não são proporcionais à perfeição e à santidade, conforme o considera a consciência predominante da Igreja. Existe uma hierarquia natural dos temperamentos espirituais e dos dons espirituais. Existem seres nos quais predomina o espírito, em outros a alma. E isso não quer dizer que os primeiros sejam mais perfeitos, que eles tenham obtido mais santidade e mais graça. Os homens “espirituais” não devem se orgulhar e se glorificar diante dos homens “psíquicos”, pois eles não são melhores nem mais merecedores. Na maior parte dos casos, eles são os mais infelizes desse mundo; sobre eles colocamos pesados encargos; as maiores contradições interiores os rasgam e eles adquirem com mais dificuldade a plena harmonia de sua personalidade, bem como o equilíbrio com o mundo que os cerca. Eles são mais solitários. Mas a própria distinção entre os temperamentos espirituais e os dons é determinada por Deus e não pelo homem. O erro dos antigos gnósticos, que a Igreja denunciou, residia em seu orgulho intelectual. Eles não podiam aceitar que a boa nova da salvação e da vinda do Reino de Deus tivesse sido trazida por Cristo para todo o universo, para todos e por tudo. A raça dos “pneumáticos” era, segundo eles, eternamente separada da dos homens “psíquicos” e dos homens puramente carnais. Esse últimos não poderiam se elevar a um mundo espiritual superior, eles estariam condenados a permanecer no “fundo”, para eles a Redenção e a Salvação jamais se realizaria. A ideia da transfiguração do inferior no superior era inacessível à consciência gnóstica. É por isso que eles jamais se tornaram verdadeiros cristãos. Nisso eles se aparentavam ao pagão Plotino, embora esse grande representante do Helenismo os tenha combatido. Soloviev demonstrou bem que o processo universal permaneceu, para os gnósticos, improdutivo, porque eles não conseguiam conceber que o inferior se transfigurasse no superior. O “espiritual”, separado do resto do mundo, se lançaria aos cumes, enquanto que o “carnal” seria precipitado no abismo. Mas nada disso poderia dar resultado, porque o “espiritual” pertenceria ipso facto ao mundo superior, enquanto que o “carnal” pertenceria ao mundo inferior.

CONTINUA...




A ORDEM DOS TERAPEUTAS 3

EXEMPLO DE PROSSEGUIMENTO - ORIGENS E MANIFESTAÇÕES HISTÓRICAS

(Extraído do texto de 

Jean-Yves Leloup: Uma Vasta e Ancestral Herança)

(...) Essa fraternidade tem raízes nos terapeutas de Alexandria e eu gostaria de lembrá-los do enraizamento dos terapeutas nas antigas escolas de sabedoria de Atenas. E essa sabedoria é a da integração.

Como Roberto nos lembrava, trata-se de cuidar de todas as dimensões do ser humano. É interessante constatar que, quatro séculos antes de Cristo, nós nos interrogávamos sobre o sentido da vida humana. Qual é a vida bem aventurada? Ou que pudéssemos chamar também, como Nietzsche, “a grande saúde”. A grande saúde – que não significa que não tenhamos uma doença -, mas que é fazer algo com essa doença. Fazer alguma coisa com os obstáculos e com as dificuldades que estão no mundo. Como transformar esse mundo? Esse mundo interior e exterior? É necessário muito caos para fazer uma estrela. Mas é a partir desse caos que ela é feita. É a partir do chumbo que o ouro é feito. Então, os antigos se colocavam a questão: Qual é a vida bem aventurada?

Faz-se necessário desenhar um primeiro quaterno. Hoje, pela liturgia, é a festa da Santa Cruz. Poderíamos fazer a ligação com outro símbolo, o da Roda. E a nossa tarefa, nesta noite, é a de fazer girar essa roda.

Primeira Quaternal


Entrar nesse mundo, o movimento da vida que se dá, é ver na história como nós interpretamos o dom da vida.

Apenas quatro séculos antes de Jesus Cristo, havia quatro grandes escolas: O Jardim de Epicuro, o Liceu de Aristóteles, a Academia de Platão e o Pórtico dos Estoicos (do Zenon) – é chamado pórtico, pois as reuniões deles aconteciam na porta do templo.

Essas quatro grandes escolas podem ainda nos inspirar, atualmente.


I – O Jardim de Epicuro


A primeira escola, o Jardim de Epicuro, se situava um pouco fora da cidade, um lugar de tranquilidade, de retiro. Para esses filósofos a vida bem aventurada é a vida simples. A grande questão: o que é natural e necessário? O que é natural e não necessário? O que não é nem natural e nem necessário? Trata-se de simplificar a sua vida e só se preocupar com aquilo que é natural e necessário. Essa seria a condição para conhecer o prazer.


Para Epicuro, o prazer é algo muito importante. Ele diz que todos os seres humanos buscam o prazer. E que o prazer é o sinal de que um ato é justo, correto e bom: que algo é realizado, é completo. É como o fruto com a flor, uma realização. Mas não se trata de qualquer tipo de prazer, porque o sofrimento pode vir com a multiplicação dos prazeres e, sobretudo, dos desejos.


Então, o que é natural e necessário? A fome, a sede e ter um teto.


Para Epicuro, trata-se de responder a essas necessidades naturais, eis o mínimo para se libertar do sofrimento.


Há coisas que são naturais, mas não necessárias. Eis um exemplo de Epicuro que pode nos surpreender: a sexualidade é natural e não necessária. Há essa possibilidade de estar aberto, sem que essa dimensão esteja presente. Nem todos irão concordar com isso, mas para Epicuro é importante lembrar que há coisas naturais, que são boas, mas que não são necessárias; que podemos adquirir uma certa liberdade de como tratar essas necessidades. E há coisas que não são nem naturais e nem necessárias, das quais precisamos nos livrar, pois isso será uma fonte de preocupações, de problemas e de sofrimentos. A visão de Epicuro é muito próxima da de Buda. A beatitude é deter o sofrimento. É preciso evitar todas as fontes de sofrimento, a exemplo do desejo.


Trata-se de introduzir em nossas vidas mais prazer e menos desejos. Pois o prazer está no presente. Para Epicuro e seus seguidores, a vida bem aventurada é o prazer de existir. Simplesmente existir, na simplicidade, em contato com a natureza; eis a importância do jardim. Veremos que os terapeutas de Alexandria também insistirão sobre a importância da natureza, do meio ambiente, como uma fonte de prazer e de cura. Vamos também encontrar isso na escola da Capadócia. A vida monástica original considera que o monastério é, antes de tudo, um jardim. Antes de se ligar a Deus, é preciso se ligar ao corpo de Deus: a natureza e o cosmos.


Então, Epicuro é a primeira escola que vai inspirar os terapeutas de Alexandria.


II – O Liceu de Aristóteles


A segunda escola é o Liceu de Aristóteles. Para Aristóteles e seus discípulos, a vida bem aventurada não é somente uma vida simples e despojada, em harmonia com a natureza. A beatitude humana é uma vida de conhecimento: não somente estar em harmonia com a natureza, mas conhecê-la. Conhecer as plantas, as árvores, as pedras, os animais, sobretudo as estrelas. Há todo um conhecimento cosmológico. É com Aristóteles que teve início a ciência no Ocidente. A observação – o prazer de observar e conhecer. Não somente estar em fusão com a natureza, mas reconhecê-la como um habitat. Em Aristóteles há uma visão importante, além da científica, que é a metafísica. A vida bem aventurada é uma vida metafísica. Trata-se de conhecer a causa de tudo o que existe. Há um encadeamento das causas e efeitos, o que os orientais chamam de carma, mas se trata de conhecer a causa de tudo o que existe, a fonte de tudo que respira, o princípio de toda a vida e de todo o amor. Para Aristóteles, a felicidade é contemplar a causa primeira. Eis uma maneira filosófica de falar de Deus. Para ele, o espírito humano não conhece a paz e o repouso se não conhece a origem e a fonte de todas as coisas.


A felicidade do ser humano consiste nessa contemplação. Não somente da natureza, não somente dos homens e mulheres que estão à nossa volta, mas da fonte invisível de tudo o que existe. No Liceu, a filosofia, assim como a ciência, deveria conduzir à contemplação. O silêncio do maravilhamento, do contentamento. E por vezes, esta é uma dimensão que foi perdida em nossas escolas. Ao lado de estudos científicos e filosóficos há também essa prática da contemplação, da meditação. Para Aristóteles, todos os conhecimentos que possamos adquirir deveriam nos conduzir a esse silêncio do maravilhamento, que se encontra além da razão – e não contra.


Para buscar a vida divina não é necessário renunciar à razão, às ciências humanas, à filosofia; a tarefa é a de realizar tudo isso. E essa também é uma dimensão da qual os terapeutas de Alexandria irão se lembrar.


III – A Academia de Platão


A terceira escola é a Academia de Platão. A palavra escola – escala em latim – quer dizer também escada. Para Platão há uma escada dos desejos. Contrariamente a Epicuro, para ele o desejo é algo bom; é o que chamamos de Eros, na linguagem platônica. É o desejo do belo, da luz, da paz; é o desejo da verdade. E a felicidade do ser humano é estar à escuta desses desejos, que não nos permitem nos satisfazer com certo número de desejos. O que faz com que, quando logramos aquilo a que desejávamos e agora possuímos, há algo em nós que deseja ir além. Para Platão isto não é um sofrimento, mas é a própria energia da vida que nos conduz de profundidade a profundidade, de conhecimento a conhecimento, de início a início. De conexões a inícios sem fim.


Todos conhecemos O Banquete onde, a partir da beleza de um corpo, ao mesmo tempo o corpo humano e o corpo da natureza, nos elevamos à beleza da alma invisível que habita esses corpos. A vida é invisível; o que conhecemos dela é a sua manifestação corporal. A própria vida, entretanto, nunca a vemos. O que habita a nossa alma é uma beleza invisível.


Há também a beleza das belas ações. E tudo isso nos faz reportar em direção à beleza primeira. A beleza do mundo, dos corpos, das ações, dos pensamentos, são participações nessa única beleza. O desejo em nós só pode ser acalmado com a visão dessa beleza infinita.


Na escola platônica há também a dimensão contemplativa, por vezes com a tentação de desprezar um pouco o mundo material, por ser transitório. O mundo das ideias, ou o mundo dos arquétipos, para Platão, é provido de mais realidade. O plano ou o desenho do arquiteto tem mais realidade do que a casa que é feita a partir dele. Porque a casa pode ser destruída pelo tempo, mas as ideias, o desenho, o seu plano permanece.


Na visão dos terapeutas de Alexandria veremos também a importância de Platão, como a de Sócrates: conhece-te a ti mesmo.


O método de Sócrates é o do questionamento: quem é você? Quem eu sou? O que é verdadeiro? O que é falso? O que é bom? Através do questionamento, Sócrates nos ajuda a tomar consciência de que não sabemos nada: “Só sei que nada sei”. Esse é o conhecimento supremo. Sócrates nunca afirmava nada, mas questionava todas as nossas respostas. Para ele, há o perigo da manifestação do orgulho da verdade, ou seja, pensarmos na verdade como um ídolo. Trata-se de não considerar um estado de consciência como se fosse a própria consciência, ou uma explicação do mundo como se fosse o próprio mundo, ou uma autorrepresentação como se fosse nós mesmos.


Conhecer-se a si mesmo é descobrir o desconhecido que está em nós e no outro. Não nos fecharmos e nem ao outro naquilo que conhecemos, já que somos e o outro é sempre mais do que tudo aquilo que podemos conhecer. Essa é a condição para que possamos viver bem juntos.


Para todas essas escolas a amizade é muito importante. A amizade muito despojada e simples, no Jardim de Epicuro, onde os amigos, homens e mulheres, compartilham o gosto da vida simples e sóbria. O que chamaríamos de uma sobriedade feliz.


Há também a amizade no Liceu de Aristóteles, onde os amigos, homens e mulheres, estimulam-se uns aos outros, em sua busca pela verdade. Eles compartilham suas descobertas e seus conhecimentos, mas compartilham também a sua meditação e contemplação.


Na Academia de Platão, estimula-se o gosto pelo belo. Impedimos uns aos outros de dormir na normose da autossatisfação. Estimulamo-nos, mutuamente, para entrarmos nessa busca, porque há em nós um desejo de infinito. Esse infinito do qual Pierre Weil falava tão bem. Esse desejo de infinito que só o infinito pode satisfazer. Então, trata-se de ter prazer no momento presente e manter em nós, também, essa nostalgia: do coração do nosso ser finito para o infinito de onde viemos. Nossa inspiração vem do infinito e a nossa expiração retorna ao infinito. Nosso lugar está entre esses dois infinitos; somos um ponto precioso entre dois infinitos. É o nosso centro, que deve permanecer aberto em todas as dimensões.


IV – A Escola dos Estoicos


A quarta escola é a dos estoicos, que se preocupavam mais com um comportamento justo. Para eles, o importante não é somente o conhecimento, ou o desejo do absoluto, mas é levar uma vida justa, correta e equilibrada, em harmonia com a natureza. Com a inteligência criadora e a harmonia com o Logos, que está no interior da natureza. Trata-se de uma sabedoria do comportamento. Os estoicos, como Zenão de Cítio, colocavam a questão: o que depende de mim e o que não depende de mim? A felicidade para o ser humano encontra-se nesse discernimento. Eu sou responsável por aquilo que depende de mim, mas não por aquilo que independe. Há muitas coisas que não dependem de nós: coisas que acontecem no universo, o movimento das estrelas, o próprio ritmo de nossos corações, o jogo das sinapses em nossos cérebros… As coisas acontecem como acontecem e isso não depende de nós.


Enfim, o que depende de nós? A maneira como vivemos os acontecimentos, isso depende de nós. A maneira como consideramos a doença, os acontecimentos do universo ou certos encontros. O que depende de nós é o como.


Haveria muitas frases de Epíteto ou de Marco Aurélio a serem citadas, que dizem que as coisas nos perturbam não pelo que elas são, mas pela opinião que nós formamos sobre elas. Nós somos responsáveis pela maneira de considerar as coisas, algo que podemos mudar.


Há também uma frase de Epíteto que diz: “Não queiram que as coisas aconteçam como vocês gostariam, mas queira que as coisas sejam como elas são”. Eis uma sabedoria da equanimidade.


Não buscar o prazer, pois onde há o prazer, há a dor, mas se trata de acolher, com igualdade de ânimo, tanto o prazer quanto a dor, tanto a felicidade quanto a infelicidade. No estoicismo, essa liberdade interior é a verdadeira felicidade humana.


Podemos nos sentir mais ou menos em harmonia com uma ou outra destas quatro escolas. Ao darmos mais importância ao prazer de existir, estaríamos mais em um clima sensorial e sensível, onde residiria a felicidade. Outros são mais sensíveis ao conhecimento: essa necessidade de saber, de conhecer, de compreender e de contemplar a causa das causas. Outros são mais sensíveis ao desejo da beleza, da verdade, do amor e da saúde: estar mais próximo possível do desejo infinito. Saber que aquilo que buscamos não se trata da ordem de coisas que possamos possuir. Nós não podemos ter Deus, assim como não podemos ter a verdade e o amor. Quanto ao amor, nós só o temos quando o doamos. Deus, nós não podemos tê-lo, mas podemos estar com ele. Nós podemos substituir nosso ser finito nesse infinito. Para outros entre nós, como em Atenas, quatro séculos antes de Cristo, o mais importante é ter um comportamento justo e correto. Ajustar-nos uns aos outros, em sintonia com a vontade do universo: que a minha vontade seja uma com a vontade do Ser; que o meu desejo se harmonize com o infinito desejo do Ser.

Jesus retomará a fala dos estoicos, quando afirma: Seja feita a vossa vontade. Que a vontade da vida seja feita, permitindo-me ir além do meu pequeno eu; abrir-me àquilo que, em mim, é maior, mais inteligente e mais amoroso do que eu mesmo. É essa abertura ao Ser que vai me dar a paz, além de uma tranquilidade material ou de uma certeza intelectual. Uma paz profunda, que não depende das circunstâncias, nem do tempo: a minha participação no Ser eterno.

Continua...