domingo, 14 de junho de 2020

Dondindaque e Logômacos

Discutir a existência e características de Deus não é sempre perda de tempo como parece a princípio mostrar o texto. Porém para muitos poder ser, e até perigoso.

Mas o que algumas discussões que tenho visto, tanto na convivência comum quanto na acadêmica é que Deus se revela mais perfeitamente aos humildes e ignorantes do que aos sábios e arrogantes. Não porque a ignorância seja melhor que a sabedoria, não! Mas porque a arrogância destroi a perspicácia e o saber na mente de muitos, ao invés de mostrar o quanto ainda ignora e torná-lo humilde, é tomando como uma riqueza pessoal que o coloca acima dos outros e acima até das limitações do próprio saber.

O conhecimento de Deus é um tipo de conhecimento que deixa isso bem claro, pois o que julga conhecer a Deus por instrução, erudição, estudo, muitas vezes não tem sequer uma experiência com Deus, que se dirá de uma vivência ou conhecimento direto?!


Deus...

Imperante Arcádio, Logômacos, teologal de Constantinopla, empreendeu uma viagem à
Cítia, e deteve-se ao pé do Cáucaso, nos férteis plainos de Zefirim, nos términos da
Cólchida. Estava o bom velho Dondindaque em sua ampla sala baixa, entre seu grande
aprisco e a vasta granja. Estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e cinco
filhas, seus pais e seus criados, e cantavam os louvores a Deus após ligeiro repasto.
 — Que fazes, idólatra? – perguntou-lhe Logômacos.
 — Não sou idólatra – retorquiu Dondindaque.
 — Claro que o és, pois és cita e não grego. Que cantavas em tua bárbara geringonça da
Cítia I
 — Todas as línguas soam da mesma forma aos ouvidos de Deus. Cantávamo-lhe os
louvores.
 — Eis uma coisa extraordinária! Uma família cita que ora a Deus sem ter sido instruída
por nós!
 Seguiu-se um diálogo entre o grego Logômacos e o cita Dondindaque, pois o teologal
sabia um pouco de cita e o outro um pouco de grego. Encontrou-se esse diálogo num
manuscrito conservado na biblioteca de Constantinopla
Logômacos
 Vejamos se sabes teu catecismo. Por que oras a Deus?
Dondindaque
 Justo é que adoremos o Ser Supremo que tudo nos deu.
Logômacos
 Oh! Para um bárbaro não está mal. E que lhe pedes?
Dondindaque
 Agradeço-lhe os bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me. Abstenho￾me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós sabe ele o que nos falta. Demais
poderia dar-se que quando eu pedisse bom tempo meu vizinho pedisse chuva.
Logômacos
 Ah! Logo vi que ia dizer alguma asneira. Passemos a plano mais elevado. Bárbaro, quem
te disse que Deus existe?
Dondindaque
 Toda a natureza.
Logômacos
 Não basta. Que idéia tens do Ser Supremo?
Dondindaque
 Que é o meu criador, meu soberano, que me recompensará quando praticar o bem e me
castigará quando cometer o mal.
Logômacos
 Que frioleiras! Vamos ao essencial – Deus é infinito secundum quid ou segundo a
essência?
Dondindaque
 Não vos entendo.
Logômacos
 Sujeito tapado! Deus está algures ou ao mesmo tempo em tudo e fora de tudo?
Dondindaque
 Não sei... Como quiserdes.
Logômacos
 Ignorante! Pode Deus demover o acontecido? Pode fazer que um bastão não tenha duas
pontes? Como verá o futuro: como futuro ou como presente? Como faz para tirar o ser do
nada e para aniquilar o ser?
Dondindaque
 Tais coisas nunca me passaram pela cabeça.
Logômacos
 Que sujeito bronco! Bem, vejo que preciso baixar a trave. Dize-me, meu amigo, achas
que a matéria possa ser eterna?
Dondindaque
 Que me importa que seja eterna ou não? Eu, posso afirmar que não o sou. De qualquer
forma, Deus é o meu senhor. Deu-me a noção de justiça, devo segui-la. Não quero ser
filósofo, quero ser homem.
Logômacos
 São o diabo, essas cabeças duras! Vamos aos poucos: Que é Deus?
Dondindaque
 Meu soberano, meu juiz, meu pai.
Logômacos
 Não é isso o que pergunto. Qual é sua natureza?
Dondindaque
 Ser poderoso e bom.
Logômacos
 Mas é corporal ou espiritual?
Dondindaque
 Como quereis que o saiba?
Logômacos
 Arre! Não sabes o que é um espírito?
Dondindaque
 Nem imagino: de que me serviria isso? Tornar-me-ia acaso mais justo? Seria melhor
marido, melhor pai, melhor amo, melhor cidadão?
Logômacos
 É absolutamente necessário ensinar-te o que seja espírito. Escuta: é, é, é... Bem, fica para
outra ocasião.
Dondindaque
 Muito receio que me fôsseis dizer o que ele não é. Permiti-me fazer-vos a meu turno uma
pergunta. Vi há muito um de vossos templos: por que motivo pintais Deus com uma longa
barba?
Logômacos
 É questão muito complexa, que requer instruções preliminares.
Dondindaque
 Antes de receber vossas instruções, vou contar-vos o que me aconteceu certo dia. Eu
acabava de fazer construir uma privada no fim de meu jardim, quando ouvi uma toupeira
conversando com um besouro:
 — Eis uma bela fábrica! – dizia a toupeira. – Deve ser uma toupeira bem poderosa o
autor dessa obra.
 — Gracejais – respondeu o besouro. – Bem sabeis que foi um besouro, um besouro
genial o arquiteto desse edifício.
 Desde então resolvi nunca discutir.

Dicionário Filosófico - Voltaire