domingo, 14 de abril de 2024

A ORDEM DOS TERAPEUTAS 3

EXEMPLO DE PROSSEGUIMENTO - ORIGENS E MANIFESTAÇÕES HISTÓRICAS

(Extraído do texto de 

Jean-Yves Leloup: Uma Vasta e Ancestral Herança)

(...) Essa fraternidade tem raízes nos terapeutas de Alexandria e eu gostaria de lembrá-los do enraizamento dos terapeutas nas antigas escolas de sabedoria de Atenas. E essa sabedoria é a da integração.

Como Roberto nos lembrava, trata-se de cuidar de todas as dimensões do ser humano. É interessante constatar que, quatro séculos antes de Cristo, nós nos interrogávamos sobre o sentido da vida humana. Qual é a vida bem aventurada? Ou que pudéssemos chamar também, como Nietzsche, “a grande saúde”. A grande saúde – que não significa que não tenhamos uma doença -, mas que é fazer algo com essa doença. Fazer alguma coisa com os obstáculos e com as dificuldades que estão no mundo. Como transformar esse mundo? Esse mundo interior e exterior? É necessário muito caos para fazer uma estrela. Mas é a partir desse caos que ela é feita. É a partir do chumbo que o ouro é feito. Então, os antigos se colocavam a questão: Qual é a vida bem aventurada?

Faz-se necessário desenhar um primeiro quaterno. Hoje, pela liturgia, é a festa da Santa Cruz. Poderíamos fazer a ligação com outro símbolo, o da Roda. E a nossa tarefa, nesta noite, é a de fazer girar essa roda.

Primeira Quaternal


Entrar nesse mundo, o movimento da vida que se dá, é ver na história como nós interpretamos o dom da vida.

Apenas quatro séculos antes de Jesus Cristo, havia quatro grandes escolas: O Jardim de Epicuro, o Liceu de Aristóteles, a Academia de Platão e o Pórtico dos Estoicos (do Zenon) – é chamado pórtico, pois as reuniões deles aconteciam na porta do templo.

Essas quatro grandes escolas podem ainda nos inspirar, atualmente.


I – O Jardim de Epicuro


A primeira escola, o Jardim de Epicuro, se situava um pouco fora da cidade, um lugar de tranquilidade, de retiro. Para esses filósofos a vida bem aventurada é a vida simples. A grande questão: o que é natural e necessário? O que é natural e não necessário? O que não é nem natural e nem necessário? Trata-se de simplificar a sua vida e só se preocupar com aquilo que é natural e necessário. Essa seria a condição para conhecer o prazer.


Para Epicuro, o prazer é algo muito importante. Ele diz que todos os seres humanos buscam o prazer. E que o prazer é o sinal de que um ato é justo, correto e bom: que algo é realizado, é completo. É como o fruto com a flor, uma realização. Mas não se trata de qualquer tipo de prazer, porque o sofrimento pode vir com a multiplicação dos prazeres e, sobretudo, dos desejos.


Então, o que é natural e necessário? A fome, a sede e ter um teto.


Para Epicuro, trata-se de responder a essas necessidades naturais, eis o mínimo para se libertar do sofrimento.


Há coisas que são naturais, mas não necessárias. Eis um exemplo de Epicuro que pode nos surpreender: a sexualidade é natural e não necessária. Há essa possibilidade de estar aberto, sem que essa dimensão esteja presente. Nem todos irão concordar com isso, mas para Epicuro é importante lembrar que há coisas naturais, que são boas, mas que não são necessárias; que podemos adquirir uma certa liberdade de como tratar essas necessidades. E há coisas que não são nem naturais e nem necessárias, das quais precisamos nos livrar, pois isso será uma fonte de preocupações, de problemas e de sofrimentos. A visão de Epicuro é muito próxima da de Buda. A beatitude é deter o sofrimento. É preciso evitar todas as fontes de sofrimento, a exemplo do desejo.


Trata-se de introduzir em nossas vidas mais prazer e menos desejos. Pois o prazer está no presente. Para Epicuro e seus seguidores, a vida bem aventurada é o prazer de existir. Simplesmente existir, na simplicidade, em contato com a natureza; eis a importância do jardim. Veremos que os terapeutas de Alexandria também insistirão sobre a importância da natureza, do meio ambiente, como uma fonte de prazer e de cura. Vamos também encontrar isso na escola da Capadócia. A vida monástica original considera que o monastério é, antes de tudo, um jardim. Antes de se ligar a Deus, é preciso se ligar ao corpo de Deus: a natureza e o cosmos.


Então, Epicuro é a primeira escola que vai inspirar os terapeutas de Alexandria.


II – O Liceu de Aristóteles


A segunda escola é o Liceu de Aristóteles. Para Aristóteles e seus discípulos, a vida bem aventurada não é somente uma vida simples e despojada, em harmonia com a natureza. A beatitude humana é uma vida de conhecimento: não somente estar em harmonia com a natureza, mas conhecê-la. Conhecer as plantas, as árvores, as pedras, os animais, sobretudo as estrelas. Há todo um conhecimento cosmológico. É com Aristóteles que teve início a ciência no Ocidente. A observação – o prazer de observar e conhecer. Não somente estar em fusão com a natureza, mas reconhecê-la como um habitat. Em Aristóteles há uma visão importante, além da científica, que é a metafísica. A vida bem aventurada é uma vida metafísica. Trata-se de conhecer a causa de tudo o que existe. Há um encadeamento das causas e efeitos, o que os orientais chamam de carma, mas se trata de conhecer a causa de tudo o que existe, a fonte de tudo que respira, o princípio de toda a vida e de todo o amor. Para Aristóteles, a felicidade é contemplar a causa primeira. Eis uma maneira filosófica de falar de Deus. Para ele, o espírito humano não conhece a paz e o repouso se não conhece a origem e a fonte de todas as coisas.


A felicidade do ser humano consiste nessa contemplação. Não somente da natureza, não somente dos homens e mulheres que estão à nossa volta, mas da fonte invisível de tudo o que existe. No Liceu, a filosofia, assim como a ciência, deveria conduzir à contemplação. O silêncio do maravilhamento, do contentamento. E por vezes, esta é uma dimensão que foi perdida em nossas escolas. Ao lado de estudos científicos e filosóficos há também essa prática da contemplação, da meditação. Para Aristóteles, todos os conhecimentos que possamos adquirir deveriam nos conduzir a esse silêncio do maravilhamento, que se encontra além da razão – e não contra.


Para buscar a vida divina não é necessário renunciar à razão, às ciências humanas, à filosofia; a tarefa é a de realizar tudo isso. E essa também é uma dimensão da qual os terapeutas de Alexandria irão se lembrar.


III – A Academia de Platão


A terceira escola é a Academia de Platão. A palavra escola – escala em latim – quer dizer também escada. Para Platão há uma escada dos desejos. Contrariamente a Epicuro, para ele o desejo é algo bom; é o que chamamos de Eros, na linguagem platônica. É o desejo do belo, da luz, da paz; é o desejo da verdade. E a felicidade do ser humano é estar à escuta desses desejos, que não nos permitem nos satisfazer com certo número de desejos. O que faz com que, quando logramos aquilo a que desejávamos e agora possuímos, há algo em nós que deseja ir além. Para Platão isto não é um sofrimento, mas é a própria energia da vida que nos conduz de profundidade a profundidade, de conhecimento a conhecimento, de início a início. De conexões a inícios sem fim.


Todos conhecemos O Banquete onde, a partir da beleza de um corpo, ao mesmo tempo o corpo humano e o corpo da natureza, nos elevamos à beleza da alma invisível que habita esses corpos. A vida é invisível; o que conhecemos dela é a sua manifestação corporal. A própria vida, entretanto, nunca a vemos. O que habita a nossa alma é uma beleza invisível.


Há também a beleza das belas ações. E tudo isso nos faz reportar em direção à beleza primeira. A beleza do mundo, dos corpos, das ações, dos pensamentos, são participações nessa única beleza. O desejo em nós só pode ser acalmado com a visão dessa beleza infinita.


Na escola platônica há também a dimensão contemplativa, por vezes com a tentação de desprezar um pouco o mundo material, por ser transitório. O mundo das ideias, ou o mundo dos arquétipos, para Platão, é provido de mais realidade. O plano ou o desenho do arquiteto tem mais realidade do que a casa que é feita a partir dele. Porque a casa pode ser destruída pelo tempo, mas as ideias, o desenho, o seu plano permanece.


Na visão dos terapeutas de Alexandria veremos também a importância de Platão, como a de Sócrates: conhece-te a ti mesmo.


O método de Sócrates é o do questionamento: quem é você? Quem eu sou? O que é verdadeiro? O que é falso? O que é bom? Através do questionamento, Sócrates nos ajuda a tomar consciência de que não sabemos nada: “Só sei que nada sei”. Esse é o conhecimento supremo. Sócrates nunca afirmava nada, mas questionava todas as nossas respostas. Para ele, há o perigo da manifestação do orgulho da verdade, ou seja, pensarmos na verdade como um ídolo. Trata-se de não considerar um estado de consciência como se fosse a própria consciência, ou uma explicação do mundo como se fosse o próprio mundo, ou uma autorrepresentação como se fosse nós mesmos.


Conhecer-se a si mesmo é descobrir o desconhecido que está em nós e no outro. Não nos fecharmos e nem ao outro naquilo que conhecemos, já que somos e o outro é sempre mais do que tudo aquilo que podemos conhecer. Essa é a condição para que possamos viver bem juntos.


Para todas essas escolas a amizade é muito importante. A amizade muito despojada e simples, no Jardim de Epicuro, onde os amigos, homens e mulheres, compartilham o gosto da vida simples e sóbria. O que chamaríamos de uma sobriedade feliz.


Há também a amizade no Liceu de Aristóteles, onde os amigos, homens e mulheres, estimulam-se uns aos outros, em sua busca pela verdade. Eles compartilham suas descobertas e seus conhecimentos, mas compartilham também a sua meditação e contemplação.


Na Academia de Platão, estimula-se o gosto pelo belo. Impedimos uns aos outros de dormir na normose da autossatisfação. Estimulamo-nos, mutuamente, para entrarmos nessa busca, porque há em nós um desejo de infinito. Esse infinito do qual Pierre Weil falava tão bem. Esse desejo de infinito que só o infinito pode satisfazer. Então, trata-se de ter prazer no momento presente e manter em nós, também, essa nostalgia: do coração do nosso ser finito para o infinito de onde viemos. Nossa inspiração vem do infinito e a nossa expiração retorna ao infinito. Nosso lugar está entre esses dois infinitos; somos um ponto precioso entre dois infinitos. É o nosso centro, que deve permanecer aberto em todas as dimensões.


IV – A Escola dos Estoicos


A quarta escola é a dos estoicos, que se preocupavam mais com um comportamento justo. Para eles, o importante não é somente o conhecimento, ou o desejo do absoluto, mas é levar uma vida justa, correta e equilibrada, em harmonia com a natureza. Com a inteligência criadora e a harmonia com o Logos, que está no interior da natureza. Trata-se de uma sabedoria do comportamento. Os estoicos, como Zenão de Cítio, colocavam a questão: o que depende de mim e o que não depende de mim? A felicidade para o ser humano encontra-se nesse discernimento. Eu sou responsável por aquilo que depende de mim, mas não por aquilo que independe. Há muitas coisas que não dependem de nós: coisas que acontecem no universo, o movimento das estrelas, o próprio ritmo de nossos corações, o jogo das sinapses em nossos cérebros… As coisas acontecem como acontecem e isso não depende de nós.


Enfim, o que depende de nós? A maneira como vivemos os acontecimentos, isso depende de nós. A maneira como consideramos a doença, os acontecimentos do universo ou certos encontros. O que depende de nós é o como.


Haveria muitas frases de Epíteto ou de Marco Aurélio a serem citadas, que dizem que as coisas nos perturbam não pelo que elas são, mas pela opinião que nós formamos sobre elas. Nós somos responsáveis pela maneira de considerar as coisas, algo que podemos mudar.


Há também uma frase de Epíteto que diz: “Não queiram que as coisas aconteçam como vocês gostariam, mas queira que as coisas sejam como elas são”. Eis uma sabedoria da equanimidade.


Não buscar o prazer, pois onde há o prazer, há a dor, mas se trata de acolher, com igualdade de ânimo, tanto o prazer quanto a dor, tanto a felicidade quanto a infelicidade. No estoicismo, essa liberdade interior é a verdadeira felicidade humana.


Podemos nos sentir mais ou menos em harmonia com uma ou outra destas quatro escolas. Ao darmos mais importância ao prazer de existir, estaríamos mais em um clima sensorial e sensível, onde residiria a felicidade. Outros são mais sensíveis ao conhecimento: essa necessidade de saber, de conhecer, de compreender e de contemplar a causa das causas. Outros são mais sensíveis ao desejo da beleza, da verdade, do amor e da saúde: estar mais próximo possível do desejo infinito. Saber que aquilo que buscamos não se trata da ordem de coisas que possamos possuir. Nós não podemos ter Deus, assim como não podemos ter a verdade e o amor. Quanto ao amor, nós só o temos quando o doamos. Deus, nós não podemos tê-lo, mas podemos estar com ele. Nós podemos substituir nosso ser finito nesse infinito. Para outros entre nós, como em Atenas, quatro séculos antes de Cristo, o mais importante é ter um comportamento justo e correto. Ajustar-nos uns aos outros, em sintonia com a vontade do universo: que a minha vontade seja uma com a vontade do Ser; que o meu desejo se harmonize com o infinito desejo do Ser.

Jesus retomará a fala dos estoicos, quando afirma: Seja feita a vossa vontade. Que a vontade da vida seja feita, permitindo-me ir além do meu pequeno eu; abrir-me àquilo que, em mim, é maior, mais inteligente e mais amoroso do que eu mesmo. É essa abertura ao Ser que vai me dar a paz, além de uma tranquilidade material ou de uma certeza intelectual. Uma paz profunda, que não depende das circunstâncias, nem do tempo: a minha participação no Ser eterno.

Continua...





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