quinta-feira, 22 de junho de 2017

NEO-PAGANISMO SOB UMA ÓTICA CRISTÃ


www.universidadedabiblia.com.br

Em 1925, o  lendário  pensador cristão  inglês  G.  K.  Chesterton  (1)  afirmou  que, se não
houvesse sido pelo surgimento e fortalecimento da igreja cristã, a Europa teria continuado
pagã, a  civilização ocidental não teria jamais existido na  forma como a conhecemos, e,
culturalmente, "a Europa  seria hoje muito parecida com a Ásia." (2) Chesterton sugeriu
ainda que, seo paganismo clássico houvesse se prolongado atéhoje [no ocidente]... haveria
ainda  pitagóricos  ensinando  reencarnação,  assim  como  ainda há hinduístas  ensinando
reencarnação na Ásia. Haveria ainda estóicos criando uma religião a partir da razão e  da
virtude, assim comoainda há confucionistas na Ásia criando uma religiãoa partir da razão
e  da virtude. Haveria ainda neo-platonistas estudando verdades transcendentes cujo sentido
seria misteriosopara as outras pessoase disputado até mesmo entre eles, assim como ainda
há budistasna Ásia estudando um transcendentalismo misterioso para os outrose disputado
até  mesmo  entre  eles.  Haveria  ainda apolonianos inteligentes  aparentemente adorando o
deus-sol mas explicando quena verdade elesadoram o princípio divino, assim como ainda
há na Ásia zoroastrianos aparentemente adorandoo sol mas explicando que estão adorando
a divindade. Haveria ainda dionisíacos dançando selvagemente nas montanhas, assim como
ainda há  na Ásia derviches dançando selvagemente no deserto. Haveria ainda multidões
indo às festas dos deuses...e haveria muitos deuses para serem adorados, como há na Ásia,
ainda pagã... Haveria ainda sacrifícios humanos secretos a Moloque, assim como ainda há
na Ásia sacrifícios humanos secretos à deusa Kali. Haveria ainda muita feitiçaria, e  boa
parte dessa feitiçaria seria magia negra. Haveria ainda muita admiraçãopor Sêneca,e muita
imitação de Nero, assim comona Ásiaos elevados epigramasde Confúcio coexistiram com
as torturas chinesas. (3)
Talvez Chesterton nunca tenha chegado a perceber que suas palavras eram proféticas. A
civilização  ocidental  há  muito  já  caminhava a passos  largos  para  um  quadro
impressionantemente semelhante ao pintado por ele, um quadro que  hoje é  a reprodução
fiel da religiosidade  moderna. O  que Chesterton  não  previu  foi  que o  chamado  neo-
paganismo teria características muito piores que as do antigo paganismo —  a cosmovisão
religiosa da  antigüidade que havia  sido  posta  de  lado  com o  surgimento  da  igreja e  a
conversão daEuropa ao cristianismo.A casa foi varrida, mas, como nas palavrasde Cristo
relatadaspor Mateus,o último estado tornou-sepior doque o primeiro (Mt 12.43-45).
I. Ascensãoe Queda do neo-paganismo (e algumas questões metodológicas)
Uma das principais características da chamada Era Moderna (sécs.16–20) foio surgimento
do neo-paganismo, cuja decadência estamos hoje assistindo naquilo que tem-se chamadode
"Nova Era". Esse "movimento" religioso não é, portanto, genuinamente novo, e  nem é  na
verdade um movimento, e, acima de tudo, não é  de  fato pós-moderno, como alguns têm
sugerido. O  pós-modernismo  implica  em ir além do beco  sem  saída  da modernidade e
inclusive da típica religiosidade moderna. (4) A  chamada Nova Era pode ser tudo menos
pós-moderna.  Pelo  contrário,  ela é  moderníssima.  Mas,  nesta  fase  de  transição  em  que
estamos vivendo, ela representa o  modernismo não no seu apogeu, mas sim na  sua mais
completa decadência. (5)
O neo-paganismo não é  novidade. Trata-se, para começo de  conversa, da recuperação e
apropriação da mentalidade religiosa da antigüidade pré-cristã. Como ironicamente sugeriu
Chesterton, "trata-sede uma profunda verdadeque o mundo antigo era mais modernoque o
mundo  cristão."  (6) Isto é, a Idade Moderna  está  mais  próxima do  paganismo que  do
cristianismo.  Além disso,  o  neo-paganismo  não é novo  porque  esta  recuperação e
apropriação tiveram início há seis séculos atrás, no princípio da chamada Idade Moderna.
Os primeirosa estarem envolvidos nesse processo de reapropriaçãodo paganismoforam os
humanistas  dos  séculos  XV e  XVI.  Numa  atividade  genuinamente  arqueológica,  esses
pensadores e filólogos  dedicaram  suas  vidas à recuperação da literatura e cultura da
antigüidade greco-romana. (7) Essa atividade não é condenável per se. Porém, uma vez
levada a cabo,  permitiu a  reapropriação da  mentalidade  pagã por parte  dos  eruditos
europeus da época que  sentiam-se insatisfeitos com o  cristianismo e  a  religiosidade que
lhes era oferecida. Em parte, essa insatisfação é  compreensível, uma vez que a igreja da
época vivia talvez a  maior crise espiritual de  sua  história. Mas nem todos os humanistas
sentiram-se atraídos pela religiosidade pagã. Muitos consideraram mais sensato lutar por
uma reforma eclesiásticae ansiar por um avivamento espiritual. Tantoo avivamento quanto
a reforma vieram por fim a  acontecer, fruto, em grande parte, do  esforço desses mesmos
pioneiros  humanistas.  Nesse  sentido, os  líderes da Reforma  Protestante  também  eram
humanistas, semdeixarem de ser cristãos. (8) A  verdade, porém, é que a sementedo neo-
paganismo foi igualmente lançada nos  campos da  intelectualidade européia,e  os primeiros
frutos maduros dessa semeadura foram colhidos nos séculos subseqüentes, dando por fim
início ao movimento intelectual conhecido pelo nome de Iluminismo.
O Iluminismo do século XVIII representouo estabelecimento definitivo do neo-paganismo
como o  ideal intelectual por excelência da  modernidade. (9) Todos os mais importantes
pensadores  iluministas  ou  rejeitaram o cristianismo  por  completo,  trocando-o  por uma
mentalidade religiosa pagã (Diderot, D’Holbach, Hume), ou procuraram adaptar a fé cristã
às  concepções  helenistas  recém-recuperadas  e   assimiladas,  produzindo  heterodoxias
gritantes como o deísmo  (John Locke,  John Toland,  Voltaire, La Metrie) e  a  teologia
kantiana. (10)  A  maçonaria é  outra aberração neo-pagã que teve  origem no  iluminismo
francês. Tantoos teóricos da Revolução Francesa quantoos "Pais" federalistas americanos,
teóricos da Revolução Americana, estavam alicerçados na filosofia iluminista e  no  neo-
paganismo.O Modernismo havia chegado ao seu apogeu. Os séculos subseqüentes, XIX e
XX,  assistiriam a partir de então  ao  lento  declínio da  modernidade  (o  marxismo e  o
existencialismo marcam,  por  exemplo, e  de  formas  diferentes,  esse declíno).  Entretanto,
nunca o  declínio  do  neo-paganismo  esteve  tão  evidente  quanto  agora,  em que  ele  se
manifesta  em  suas  formas  mais  cruas e vulgares,  nos  diferentes  componentes  desse
conglomerado de noções religiosas pagãsque chamamosde Nova Era. Cabe-nos, portanto,
enquanto  pensadores  cristãos,  compreender a  natureza do  neo-paganismo, um  aspecto
importanteda história da teologia moderna,e também da realidade diária destes temposde
transição emque estamos vivendo.
A Nova Era é, sem dúvida, um fenômeno cultural, mas não é  propriamente uma religião,
uma  nova  organização  religiosa;  não  possui  líderes  explícitos,  membros,  estrutura
hierárquica, estatutos, confissãode fé, etc. Diferentementedo que muitos livros evangélicos
populares queremnos fazer crer,a Nova Era nãoé tampouco uma conspiração secreta.(11)
Este  tipo de sensacionalismo  evangélico  patrocinado  pela  liderança  de  nossas  igrejas,
estimulado por outra falácia teológica chamada "batalha espiritual", possui um grave efeito
nocivo. (12) Nós, cristãos, passamos a  lutar contra um inimigo inexistente, um fantasma,
uma ficçãoda nossa imaginação, em vez de enfrentarmosa verdadeirahorda que nos cerca.
A miscelânia chamada Nova Era é composta de  manifestações neo-pagãs diferentes umas
das  outras,  que  vão desde  popularizações de  religiões  orientais  como o hinduísmo,  o
budismo e  o  taoísmo,  até  as  mais  crassas  superstições  pagãs  como  astrologia, o poder
curativo  dos  cristais,  adivinhações e necromancia.  Nós,  brasileiros,  muito  antes  de
importarmos dos  Estados Unidos o conceito de  Nova Era, já estávamos há muito tempo
acostumados com as formas mais decadentes da religiosidade moderna, poiso espiritismoé
um excelente exemplo de neo-paganismo. Do ponto de vista apologético, cada uma dessas
manifestações neo-pagãs deve ser combatidae derrotada individualmente, e não como uma
amálgamainforme e uma abstração, como freqüentemente tem acontecido.
Isso não significa, por outro  lado, que  o  fenômeno não possa ser analisado do  ponto de
vista antropológico, filosófico ou  teológico. Sem dúvida, cabe-nos buscar compreender o
neo-paganismo em termos genéricos. Isso nãoé contraditório, pois esta análise não tempor
objetivo a  mistura e  a confusão das diferentes  manifestações neo-pagãs sob  um mesmo
rótulo e  o  subseqüente  confronto  apologético  com  esta  quimera,  este  monstro  de
Frankenstein,  composto de partes  juntadas de diferentes  corpos  e   origens.  Essa
"arqueologia epistemológica" (13) implica em descobrir as pressuposições fundamentais do
fenômeno, e produzir  dessa  maneira  um  arsenal  de  noções  filosóficas e teológicas que
possam de  fato auxiliar no combate específico e  individual dessas diferentes expressões
religiosas neo-pagãs. (14)
II. O Paganismo,o Neo-Paganismoe a Fé Cristã: Esboço de um Estudo Comparativo
A religiosidade pagã nada mais é que o  espírito humano submetido à  força da gravidade,
isto é, limitado a  um estado de mínima resistência. Em outra palavras, é  a religiosidade
humana no seu estado natural, sofrendo a pressão e  o impacto da  Queda em toda  a  sua
inteireza.  (15)  O  termo  "paganismo"  vem  da  palavra  latina  pagani  que  significa
"camponeses" ou "gente do  campo, do interior".O termo pagani ganhou a conotação atual
porque  esses camponeses foram os últimos a  se  converterem  ao cristianismo após sua
instituição  no  século  IV  como  religião  oficial  do  Império  Romano, e os  últimos a
abandonarem as crençase práticasda religiosidade greco-romana. (16)É curioso notarque,
inversamente, o  neo-paganismo teve origem nas cidades, e  até hoje  é  nos  grandes centros
urbanos e nos países mais desenvolvidos que o mesmo encontra maior aceitação e menos
resistência.
É  um erro pensar que  o  paganismo é uma grande tolice, que  nada tem de aproveitável
(ainda que  o decadente neo-paganismo  às  vezes  nos  deixe  essa  impressão).  Chesterton
resume brilhantemente a história espiritual  da humanidade em uma de  suas  frases  mais
famosas: "O paganismo eraa melhor coisa que haviano mundo;e a fé cristã surgiu,e era
melhor ainda.E tudo o mais depois disso tem sido comparativamentepior e pequeno."(17)
Como sugere Rist, (18) Agostinho, assim como muitos outros intelectuais convertidos ao
cristianismo nos primeiros séculos da era cristã, "viu sua conversão não tanto como uma
substituição mas como uma expansão e um enriquecimento de suas posições anteriores."
(19) Há pelo menos três elementos no paganismo pré-cristão que  o  fazem respeitável: (i)
um senso de  piedade,  (ii)  uma  moralidade  objetiva e absoluta, e (iii)  um  senso de
transcendência, de percepção do divino e  de respeito  em  face do  misterioso.  (20) O
cristianismo resgatouo queo paganismopossuía de melhorà luzda revelação divina,num
lento processoque teve início no primeiro séculoe seguiu-se atéo fimda Idade Média. (21)
No  neo-paganismo do nosso  tempo  esses  elementos  desapareceram, e  o que  sobra é  o
invólucro, a  superfície, a superstição vazia e irracional. O neo-paganismo é, portanto, não
somente  um  anti-cristianismo  mas  também um  anti-paganismo,  por  incrível  que  pareça.
Analisemos cada um destes elementos isoladamente.
A. Piedade
O sensode piedade (latim pietas)a que estamos nos referindo refere-se ao instinto religioso
natural  de  respeito a algo  maior que  o  ser  humano.  Isto  implica na  humildade de se
reconhecer  como parte  subordinada do  grande  processo e esquema  universal.  Vemos o
reflexo dessa mentalidade no neo-paganismo na adoção do chamado modelo newtoniano.
(22)O resultado disso no paganismoda antigüidade era uma religiosidade emque a palavra
de ordem era moderação (grego sophrosyne), (23) expressa na frase "nada em demasia"
inscrita em todos os templos de Apolo, junto ao famoso "conhece-te a ti mesmo" (24) (o
mesmo  sentimento  aparece  na  expressão  aristotélica  in  medio  virtus).  (25)  As  religiões
pagãsda Ásiana sua maioria ainda mantém esta tradição de reverência, de reticênciae de
moderação. A civilização ocidental não pratica nem compreende essa reverência e  o neo-
paganismo, portanto, diferedo seu ancestral neste importante aspecto. Ao contrário,o neo-
paganismo divinizao homem,é a religiãodo homem comoo novodeus, pregando "ovalor
infinito do  ser humano" e "a  autonomia do  pensamento  crítico."  (26) O  neo-paganismo
confunde-se, portanto, com o  humanismo contemporâneo, o qual se transformou em uma
quase-religião.  (27)  No  movimento da Nova  Era,  que  se  trata do  neo-paganismo  em
avançado estado de putrefação,o humanismo se manifestade forma mais crassa, como,por
exemplo, no fato de  que quase todas as práticas, terapias e  crenças  da Nova Era  são
voltadas parao bem-estardo ser humano,para o seu aperfeiçoamento, parao seu confortoe
prazer. Além disso, há o  pressuposto implícito em todas as diferentes manifestações neo-
pagãsde queo serhumano é capazde resolveros seus problemas espirituais por si mesmo,
através de exercícios, meditaçãoou utilização "racional" (ou irracional) de objetos naturais
como plantase cristais.
É evidente queum retorno mais fiel ao paganismo da antigüidade não seriaa solução paraa
busca  religiosa do ser humano moderno, e  muito  menos do  ser  humano pós-moderno.
Apenasa fé cristã possui aquiloque o ser humano necessitae busca.A piedade cristã nãoé
somente superior à piedade pagã (piedade esta que, como dissemos, o neo-paganismo não
possui), masé uma piedade qualitativamente diferente. Um aspecto fundamentalda piedade
cristã está em reconhecer-se como criatura diante do Criador. Qualquer piedade que  torne
opacaa distinção entreo Criadore as criaturasé inerentemente incompatível coma piedade
cristã. Como afirmou Chesterton, a natureza não é minha mãe; na verdade, ela é minha
irmã, como dizia Francisco de  Assis. Mais importante que isso é  o fato de que a piedade
cristã assume como pressupostoa verdade teológicado pecadooriginal. O ser humano não
é apenas um ser corrompido atéo mais profundo do seu ser, masé também corrompido em
todos os aspectosdo seu ser, inclusive sua razão, quesofre os chamados efeitos noéticos do
pecado. Nossa razão não é confiável, somos constantemente condicionados pelos impulsos
recebidos  do  meio  em  que  vivemos,  e somos  igualmente  impulsionados  por  instintos
inconscientes  sobre os  quais  não  temos  qualquer  controle.  Mas a diferença  crucial e
primordial entrea piedade cristãe a piedade pagã estána certeza cristãde que nãohá nada
que um ser  humano possa fazer  para  obter o  favor  divino. A  piedade  pagã  tem  como
elemento fundamentalo esforço humanopara obtero favor divinopor meio de sacrifícios,
rituais e promessas.  Infelizmente muitos cristãos deixam-se iludir pela mentalidade pagã
que continua influenciandoa igreja, levando muitosa abraçar uma cosmovisão pagã, ainda
que sob  o  disfarce de elementos cristãos. A piedade cristã tem, como ponto de partida, o
render-se  diante da soberania  divina, o tornar-se  receptáculo  da  graça  divina
imerecidamente outorgada àquelesque humildemente se aproximamde Deus emum atode
arrependimento pelo pecado, contrição sincerae confiançano perdãodivino.
B. Moralidade
O  que chamamos, a seguir, de  moralidade objetiva  e absoluta, refere-se ao fato de  que os
antigos pagãos que levavama sérioo seu paganismo insistiam na existênciade leis morais
inquestionáveis, inegociáveis e permanentes. Essas leis morais eram vistas como naturais,
evidentesna natureza das coisas, descobertas e não criadas pelo homem. O neo-paganismo
procurou  resgatar  essa  moralidade  racionalista  pagã,  levá-la  às  últimas  conseqüências e
adaptá-laà realidadeda vida moderna. Esse extremo racionalismo acabou se revertendo em
um irracionalismo, e por fim tornou-se relativista, subjetivista e pragmático, chegando-se
lentamente à  conclusão de que o ser humano cria suas próprias leis morais, e  que  estas
variam conforme o tempo e  a cultura. Os valores morais de  um indivíduo não podem ser
considerados errados, pois não existe um padrão ou norma absolutos que determinem o
certo e  o errado em questões éticas. A grande imoralidade do  ponto de  vista neo-pagão é
justamente dizer que  algo é moralmente errado. O grande erro é  dizer que  algum tipo de
comportamentoé errado.O único absolutoé que nãohá absolutos.A única coisaque deve
levar  alguém  a  sentir-se  culpado  é  essa  mesma  pessoa  sentir-se  culpada por  algo.
Este  relativismo  moral de  hoje em  dia é  o  correspodente  moderno  do  politeísmo da
antigüidade. O  que está verdadeiramente por trás dessa grande variedade de moralidades,
de bens morais, é uma enorme variedade de deuses modernos: o sucesso, a felicidade, o
sexo, o dinheiroe o progresso,por exemplo.O neo-paganismo é, portanto, não apenas uma
forma de humanismo (de divinização do ser  humano),  mas  também  uma  forma  de
politeísmo  idólatra  em que cada  ser  humano  torna-se um deus,  um absoluto  sagrado,
transmissor em vezde receptorda lei moral. (28)
Mas isso não significaque um retornoà moralidade pré-cristãé a resposta. Essa aliás, tem
sido a proposta da filosofia moderna racionalista no  últimos trezentos anos. (29) A  ética
cristã compartilha da objetividade e  da  absolutividade características da ética pagã (que o
neo-paganismo não possui), mas as semelhanças terminam aí. É  bem verdade que a ética
cristã tem sofrido a má influência da  filosofia racionalista, e tem adquirido dessa forma
uma similaridade à ética pagã maior do  que é recomendável. Mas sob  o  prisma correto
percebe-seque os pontos de vista pagãose cristãos são radicalmente diferentes. Enquantoa
ética racionalista encontra seu fundamento na supremaciae na autonomia da razão humana,
a ética cristã fundamenta-se na revelação especial de Deus, nas Escrituras Sagradas.A ética
racionalista,  quando  teísta,  sugere  que  Deus  aprova  certa  atitude ou comportamento
humanos porque eles são bons em si mesmos. Creioque a ética cristã deve opor-se a esta
cosmovisão e sugerir o  oposto, isto é, que uma certa atitude ou  comportamento humanos
são bons porque Deus os  aprova. Essa inversão ilustra a natureza essencialmente diversa e
em certo sentido oposta das éticas cristãe clássica-pagã.
C. Religiosidade
Finalmente, o  senso de  transcendência a  que em seguida nos referimos é  o  maravilhar-se
diantedo mistério,que levavao pagão pré-cristão ao atode adoração. No mundo moderno,
o sentido, o  instinto e  a prática da  adoração per se entraram em declínio. Na civilização
ocidental é  cada vez menor o  número de pessoas que adoram seja quem ou  o  que for.
Mesmo em nossas igrejas temos visto essa influência nefasta do neo-paganismo, levando
nossas  comunidades a  adotar liturgias  em que  o  sentimento  de  reverência cede  lugar à
descontração e  o  bem-estar do  adorador torna-se  mais importante  que sua  contrição e
dedicação. Os efeitos se fazem presentes também na teologia moderna, emque as doutrinas
são  desmitologizadas,  desmiraculizadas e  desdivinizadas.  Assim,  até  mesmo  teólogos
cristãos  tornaram-se  adeptos da mentalidade  moderna  neo-pagã,  uma  vez que  o  neo-
paganismo,  diferentemente  do  velho  paganismo da antigüidade,  abandonou a  crença  no
sobrenatural e  no  transcendente e tornou-se  naturalista e  imanentista.  Aos  poucos a
religiosidade neo-pagã foi-se tornando, portanto, não somente uma forma  de humanismo
disfarçado e uma re-edição  piorada do  politeísmo,  mas  também  uma  forma  popular de
panteísmo. O  panteísmo popular moderno é uma religiosidade muito confortável em que
Deus é transformado numa espécie de "força" à la Guerra nas Estrelas, disponível sempre
que necessário, masque não incomoda. (30)É convenientepara os seres humanos verem-se
como  "bolhas da grande  espuma  divina"  em  vez de  compreenderem-se  como  filhos
rebeldesde um Pai divinoe justo, desesperadamente carentesde se reconciliarem com ele,
e absolutamente impotentes noque se referea essa condição espiritual.O panteísmo rejeita
qualquer idéia que se assemelhe ao conceito bíblico de pecado porque pecado implica em
separação entre Deus e  o  pecador (Rm 3.19-20; 5.12; 8.7-8; 11.32), e  ninguém pode estar
separado  da  totalidade.  Por  isso,  não  pode  haver  temor  de  Deus sob uma  perspectiva
panteísta. Portanto, do  ponto  de vista neo-pagão, o  que  a Bíblia chama de "princípio da
sabedoria"(Pv  1.6)  é  aquiloque precisa  ser  erradicado  das  mentes  acima  de tudo.
A solução, portanto, não se encontra em uma apropriação mais cautelosa ou mais exata do
paganismo clássico pré-cristão. Apenas a fé cristã possui as respostas para  os problemas
práticos, teóricos e religiosos do mundo de hoje. O senso de transcendência do  paganismo
não pode  ser  visto  como  equivalente  ao  senso  de  transcendência  cristão.  Este último é
qualitativamente diferente daquele. Nãoé à toa quea mais explicitamente pagã de todas as
heterodoxias modernas,o deísmo, seja uma teologiaque enfatizea transcendência divina ao
preço  da  imanência divina.  A  fé cristã  ortodoxa  rejeita  ambas  as  opções  radicais  de
transcendência  (deísmo)e  de imanência  (teologia  liberal do século  XIX)  das  correntes
teológicasque buscarama síntese do paganismo como cristianismo.A conclusãoa que se
chegaé que o neo-paganismo acabapor cair, ou no racionalismo, ouno irracionalismo. Os
grandes pensadores cristãos dos últimos séculos,  percebendo essa  terrível  encruzilhada,
insistiram na necessidadede enfatizara totalidade humana,de salientaro fatode queo ser
humano  precisa  ser  compreendido  em sua inteireza,  sem  ser  dividido,  fracionado,
compartimentalizado.O ser humano nãoé apenas razão, ou emoção,ou vontade,ou corpo,
ou espírito. O ser humano  é  um todo, e só pode ser compreendido corretamente se visto
como umtodo. Minha opiniãoé que teorias dicotomistas ou tricotomistas são racionalismos
que  devem  ser  rejeitados.  Afirmando a  unidade  do ser humano,  e  as  simultâneas e
completas  transcendência e imanência  de Deus, o cristianismo não deixa  espaço  para
noções  panteístas,  e  se  mostra superior  tanto  ao  paganismo  quanto  ao  neo-paganismo.
Post-Scriptum
Como afirmei no início, a chamada Nova Era não é  uma conspiração. Mas na unificação
dos  inimigos  da  fé  cristã, a  saber,  panteísmo,  politeísmo e  humanismo,  unificação  esta
levada a  cabo pelo neo-paganismo, pode-se perceber a estratégia do inferno, que todavia
não pode prevalecer contraa igreja. Pelo contrário,é a igrejaque estápor lhe arrombar as
portas (Mt 16.18). No Calvário, quando as forças anti-cristãsdos mundos grego, romanoe
hebreu  se uniram  na crucificação  de  Cristo (fato  este  simbolicamente  representado na
acusação contra Cristo afixada na cruz, escrita em três línguas: Lc 23.38; Jo 19.19-20), o
triunfo do mal foi  também a derrota do mal, e  a morte do  Filho de  Deus significou a
redenção do  ser  humano  (ver Cl  1.13-14).  Nós  estávamos  condenados  pelas  nossas
transgressões, e Deus  nos  deu  vida  em  Cristo,  perdoando-nos  nossos  delitos,  "tendo
canceladoo escrito dedívida que era contranós e que constavade ordenanças,o qual nos
era  prejudicial,  removeu-o  inteiramente,  encravando-o  na  cruz;  e,  despojando  os
principados e  as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na
cruz" (Cl2.13-15). Certamente,o neo-paganismode nossos dias estará em breve tão morto
e enterrado quanto o velho paganismo dos  antigos está hoje. E  o Deus revelado em Jesus
Cristo, aquele que pronuncioua primeira palavra, terá novamentea última palavra. "Eu sou
o Alfa e  o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que  é, que era, e  que  há  de  vir,  o  Todo-
poderoso" (Ap 1.8).
1 G. K. Chesterton (1874-1936)é um autorque precisa ser mais lido no Brasil. Chesterton
era um grande amigo de C. S. Lewis. Seus livros ensinam como se faz filosofia cristã de
primeira  qualidade e foram  algumas  das  melhores  respostas  cristãs  ao  pensamento
moderno. Eu recomendo, por exemplo,os livros Orthodoxy (Nova York: Doubleday, 1990
[1908]), Heretics (Londres: G. Lane, 1905)e The Everlasting Man (San Francisco: Ignatius
Press, 1993 [1925]).
2 Chesterton, The Everlasting Man, 237.
3 Ibid., 237-38. Minha tradução.
4  Para  saber  mais  sobre o  chamado  pós-modernismo,  ver  Stanley  J.  Grenz,  Pós-
modernismo: Um Guia para Entendera Filosofia do Nosso Tempo (São Paulo: VidaNova,
1997). Esse livroé uma boa introdução ao assunto. Outros livrosque podem serde auxílio
nesse complicado tema filosóficoe cultural são:Brian D. Ingraffia, PostmodernTheory and
Biblical  Theology  (Cambridge,  Inglaterra:  Cambridge University Press,  1995),
especialmente pp. 167ss.; J. Richard Middleton e  Brian J. Walsh,Truth Is Stranger than It
Used to Be (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1995), especialmente a primeira
parte,  pp. 7-84;  David  S.  Dockery,  ed.,  The  Challenge of Postmodernism  (Wheaton,
Illinois:  BridgePoint,  1995); e Gene  Edward  Veith,  Jr.,  Postmodern  Times  (Wheaton:
Crossway, 1995).  Ver também o meu artigo "A Morte e  a Morte da  Modernidade: Quão
Pós-moderno é  o Posmodernismo?" Fides Reformata 1:2 (Julho-Dezembro 1996), 59-70.
5 O que se chama de  modernismo é  a  cosmovisão que prevaleceu durante  os últimos três
séculos,  caracterizada  pelo  seu  cientificismo,  historicismo,  racionalismo, e otimismo
humanista,  entre  outras  coisas.  Ver  Robert  B.  Pippin,  Modernism  as a Philosophical
Problem (Oxford: Blackwell, 1991).
6 Chesterton, Orthodoxy, 259. Minha tradução.
7 Ver Peter Gay, The Enlightenment: The Rise of Modern Paganism (Nova York: W. W.
Norton& Company, 1966), 256-321. A teoria básica de Peter Gay serviu também de base
para  este  artigo,  isto  é,  que  "o  iluminismo  foi  uma  mistura  volátil de classicismo,
impiedade,  e  ciência;  les  philosophes,  resumindo,  eram  pagãos  modernos."  Ibid.,  8.
8 Os  especialistas  divergem,  contudo,  quanto  ao  relacionamento e envolvimento entre
humanistase reformadores,e se seria historicamente correto considerar estesum sub-grupo
daqueles. Ver, por  exemplo, os estudos do erudito calvinista tcheco Josef Bohatec sobre
esse  assunto:  Die  Religionsphilosophie  Kants,  1938,  reimpresso  em  1966.
9 Confira Gay, The Enlightenment,3-27.
10 Ver Immanuel Kant, Religion within the Limits of Reason Alone (Nova York: Harper
Torchbooks, 1960).
11 Ver, por  exemplo,  as  populares  obras  de  ficção de  Frank Peretti  (e.g.,  Este  Mundo
Tenebroso), e livros como:  John  Bevere,  The  Bait of Satan  (Orlando:  Creation  House,
1994) e  Bob  Larson, Straight Answers on  the New Age (Nashville: Nelson Publishers,
www.universidadedabiblia.com.br
1989). Não que estes livros sejam imprestáveis, ouque seus autores sejam charlatães. Mas
há uma  atitude  que  me  parece  errada  entre  os  chamados  "profetas da desgraça"  do
evangelicalismo americano, uma vontade de  formular teorias místicas e maniqueístas de
conspiraçãoe de uma espécie de "ocultismo cristão"que considero heterodoxoe prejudicial
paraa saúde espiritual da igreja.
12 Para saber mais sobreo tema "batalha espiritual," vero livro de David Powlison, Power
Encounters: Reclaiming Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1995) e  também o  livro
de Augustus Nicodemus G. Lopes,O que Você Precisa Sabersobre Batalha Espiritual (São
Paulo: Editora CulturaCristã, 1997).
13 Aindaque eu esteja aqui fazendouso da expressão cunhada pelopensador pós-moderno
Michel Foucault em Arqueologia do  Conhecimento, isso não significa que  estou adotando
ipsis litteriso métododo filósofo francês, quepor sinal possui boas qualidades.
14 O método aqui adotado enquadra-se melhordentro da tradição estabelecida pelo filósofo
calvinista holandês Herman Dooyeweerd. Ver, por exemplo, Roots of the Western Culture
(Toronto: WedgePublishing Foundation, 1979).
15 Vero capítulo "Christianity and the New Paganism," em Peter Kreeft, Fundamentals of
the Faith: Essays in Christian Apologetics (San Francisco: Ignatius Press,1988), 102.
16 Ibid.
17 Citado por Kreeft, Fundamentals of the Faith, 102. Minha tradução. Vero capítulo "The
Escape from  Paganism,"  em  Chesterton,  The  Everlasting  Man,  232-49, e  o  capítulo
"Authority and the Adventurer," em Orthodoxy, 141-60.
18 John M. Rist, estudiosode Agostinhoe professorna Universidade de Toronto, Canadá,
é uma das maiores autoridades vivas sobreo pensamento do celebradobispo de Hipona.
19 John M. Rist, Augustine: Ancient Thought Baptized (Cambridge, Inglaterra: Cambridge
University  Press,  1994),  12.  Minha  tradução.  Eu  creio,  todavia, que  é inadequado
interpretar a experiência de conversão  dessa  forma.  Ainda que haja  uma  inegável
continuidade, a conversão implica numa completa transformação do indivíduo  no mais
www.universidadedabiblia.com.br
íntimo do seu ser, e  toda continuidade que ocorrer tem que ser interpretada à  luz dessa
transformação essencial. Na vidado próprio Agostinho podemos ver como todaa bagagem
trazida do paganismo recebeu em suas mãos uma nova significação. Mas a continuidade
existe,e talveza melhor forma de explicá-laé perceberque a conversão representa, não um
giro de  180  graus, mas sim um  giro de 360  graus, isto é, a  vida prossegue, e  o  indivíduo
inicia, após sua conversão, um longo processo de reavaliação de suas idéias e concepções
atravésdo qual ele redimensiona sua existência.
20 Kreeft, Fundamentalsof the Faith, 102-106.
21 Uma das questões mais controvertidas da  história da  teologia refere-se justamente ao
graude penetraçãoe influência das idéias pagãs durantea construçãodo edifício teóricoda
teologia cristã. Não existem respostas fáceis para esse complexo problema. Muito do  que
há de melhorna teologia conservadora dos últimos trezentos anos representaum esforço no
sentido de procurar uma aproximação maiore mais pura ao ensino das Escrituras, livre dos
preconceitos e  distorções  provocados  pela influência pagã na  igreja e  na teologia  cristã
desdeo primeiro século atéos nossos dias.
22 John  Locke e  Isaac  Newton  foram os  mais  importantes  mentores  do  iluminismo.
Todavia, eles funcionaram mais como ícones, símbolos de uma revolução do  pensamento
que propriamente uma influência concreta em termos de idéias que muitas vezes não eram
conhecidas ou eram mal compreendidas. Ver, por exemplo, o excelente estudo de  Gerd
Buchdahl, The  Image of Newton  and  Locke in  the Age  of Reason (Londres: Sheed &
Ward, 1961).  A física  newtoniana  teve de  qualquer  modo  um  papel  importante  no
iluminismo servindode inspiração e paradigma para todas as áreasdo conhecimento. Boas
introduções para  os  aspectos  gerais do  pensamento  newtoniano, e  boas  biografias  de
Newton (o método biográfico ajuda bastante aqueles que, como eu, têm dificuldades de
compreender  as  nuances da física  newtoniana),  são  Louis  T.  More,  Isaac  Newton: A
Biography  (Nova  York:  Dover,  1962);  J.  D.  North,  Isaac  Newton  (Oxford:  Oxford
University Press, 1967); Richard S. Westfall, The Life of Isaac Newton (Cambridge, Ingl.:
Cambridge University Press, 1993); A. Rupert Hall, Isaac Newton: Adventurer in Thought
(Oxford:  Blackwell,  1992);  Frank  E.  Manuel,  The  Religion of  Isaac  Newton  (Oxford:
Clarendon Press, 1974) e  I. Bernard Cohen, The Newtonian Revolution (Cambridge, Ingl.:
CambridgeUniversity Press).
23 Veros diálogosde Platão, especialmente Mênone Êutifron.
24 O famoso gnothi seautonde Sócrates.
www.universidadedabiblia.com.br
25 Ver Aristóteles, Ética a  Nicômaco. Como sugere Chesterton, "o paganismo declarava
quea virtude estava no equilíbrio;o cristianismo declarou quea virtude estáno conflito:a
colisão de duas paixões aparentemente opostas". Orthodoxy, 92. "São Francisco, ao louvar
tudo  que é bom,  conseguia  ser um otimista  mais  exagerado  que  Walt  Whitman.  São
Jerônimo, ao condenartoda maldade, era capaz de pintar um quadro ainda mais escuro do
que Schopenhauer." Ibid., 96. "O leão se deitará com o  cordeiro. Mas note que este texto
tem sido interpretado de  forma muito suave. Nós somos constantemente assegurados por
nossas tendências tolstoyanas que,quando o leão se deita como cordeiro, ele se tornaigual
a  um cordeiro. Mas isso é  uma anexação brutal e  um imperialismo da  parte  do cordeiro.
Isso é apenas o  cordeiro absorvendo o leão em vez de o  leão comendo o  cordeiro. O
verdadeiro enigma é: pode  o  leão se deitar ao lado do  cordeiro e todavia manter toda sua
ferocidade real? Esse é  o enigma que a igreja tentou resolver; esse é  o  milagre que ela
alcançou." Ibid., 98.
26 Gay, The Enlightenment, 226.
27 O conceito de quase-religiões foi criadonos anos60 pelo teólogo neoliberal Paul Tillich
para referir-se a fenômenos secularistas, como, por exemplo, o  marxismo, o  nazismo, o
humanismoe o cientificismo.
28 Ver, por exemplo, o volume de  ensaios sobre cristianismo e cultura editado por Os
Guinness e  John Seel, No God but  God: Breaking with the Idols of  our Age (Chicago:
Moody Press, 1992).
29 A ética moderna em geral tem privilegiado uma metodologia racionalista. Tantoa ética
deontológica de  Kant e seus seguidores, quanto  a  ética utilitarista dos ingleses Bentham e
Stuart Mill são calcadas na ética pagã, e desconhecem a noção de uma ética baseada na
revelação especial de Deus. Os pressupostos básicos por trás das éticas racionalistas são a
supremaciae a autonomia da razão humana.
30 Vera críticaque o celebrado pensador cristão inglêsC. S. Lewis já fazia nos anos 40a
essa mentalidade em seu livro Miracles(Nova York: Macmillan, 1947).

www.universidadedabiblia.com.br

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Geração Perdida

Jornal da Tarde, São Paulo, 3 de agosto de 2000
Hyppolite Taine conta que, aos 21 anos, vendo-se eleitor, percebeu que nada sabia do que era bom ou mau para a França, nem das ideologias em disputa na eleição. Absteve-se de votar e começou a estudar o país. Décadas depois, vieram à luz os cinco volumes das Origines de la France Contemporaine (1875), um monumento da ciência histórica e um dos livros mais esclarecedores de todos os tempos. O jovem Taine não votou, mas o Taine maduro ajudou muitas gerações, na França e fora dela, a votar com mais seriedade e conhecimento de causa, sem deixar-se iludir pelas falsas alternativas da propaganda imediata. Saber primeiro para julgar depois é o dever número um do homem responsável — dever que o voto obrigatório, sob a escusa de ensinar, força a desaprender.
Taine foi muito lido no Brasil, e seu exemplo deu alguns frutos. Entre os que tiveram seu caminho de vida decidido pela influência dele contou-se o jovem Affonso Henriques de Lima Barreto. Ele aprendeu com Taine que as coisas podem não ser o que parecem. Como romancista, ele fixou a imagem da ambiguidade constitutiva das atitudes humanas no duelo de personalidades do major Quaresma com Floriano Peixoto, onde o passadista se revela um profeta e o progressista um ditador tacanho e cego. Mas a mensagem dessa história, ainda que consagrada pelo cinema, não se impregnou na mente das novas gerações. Talvez não venha a fazê-lo nunca, precisamente porque, amputada da ética taineana da prioridade do saber, que lhe serve de moldura, ela se reduz a uma observação casual que pode ser dissolvida numa enxurrada de lugares-comuns. Hoje, de fato, raramente se encontra um jovem que não queira, antes de tudo, “transformar o mundo”, e que, em função desse parti pris, não adie para as calendas gregas o dever de perguntar o que é o mundo. Sim, no Brasil, cultura e inteligência são coisas para depois da aposentadoria. Quando todas as decisões estiverem tomadas, quando a massa de seus efeitos tiver se adensado numa torrente irreversível e a existência entrar decisivamente na sua etapa final de declínio, aí o cidadão pensará em adquirir conhecimento — um conhecimento que, a essa altura, só poderá servir para lhe informar o que deveria ter feito e não fez. Antevendo as dores inúteis do arrependimento tardio, ele então fugirá instintivamente do confronto, abstendo-se de julgar sua vida à luz do que agora sabe.
Embalsamado num nicho de diletantismo estético, o conhecimento perderá toda a sua força iluminante e transfiguradora, reduzindo-se a um penduricalho inócuo, adorno inofensivo de uma velhice calhorda. Eis onde termina a vida daquele que, na juventude, em vez de esperar até compreender, cedeu à tentação lisonjeira do primeiro convite e se tornou um “participante”, um “transformador do mundo”.
Eu também caí nessa, mas tive a sorte de minha carreira de transformador do mundo ser detida, logo no início, por uma chuva de perplexidades paralisantes que me forçaram a largar tudo e a ir para casa pensar. Acossado de perguntas que ultrapassavam minha capacidade de resposta, fui privado, pelo bom Deus, da oportunidade de tentar moldar o mundo à imagem da minha própria idiotice. Mas essa sorte é rara. O Brasil é o país do gênio prematuro, degradado em bobalhão senil logo na primeira curva da maturidade. Quando contemplo esse circo decrépito da revista Bundas¹, onde cômicos enferrujados se esforçam para repetir as performances de trinta anos atrás, que na sua imaginação esclerosada se petrificaram em emblemas estereotipados de “vida” e “juventude”; quando, lendo Caros Amigos, vejo homens de cabelos brancos se esfalfando para recuperar sua imagem idealizada de patota juvenil dos “Anos Dourados”, não posso deixar de notar que em todas essas pessoas que falam em nome do futuro o sentimento dominante é a saudade de si mesmas. Não falta a esses indivíduos a consciência de que suas vidas falharam.

Mas atribuem a culpa aos outros, ao governo militar que impediu sua geração de “chegar ao poder”. No entanto, a desculpa é falsa, porque, mal ou bem, eles estão no poder. Eram jovens militantes, hoje são deputados, são catedráticos, são escritores de sucesso, são formadores de opinião. Por que, então, lambem com tanta nostalgia e ressentimento as feridas da sua juventude perdida? É porque foi perdida num sentido muito mais profundo e irremediável que o da mera derrota política. E agora é tarde para voltar atrás.

Olavo de Carvalho

1. Nota do Organizador: A revista Bundas, uma sátira à revista Caras, foi lançada em junho de 1999 pela Editora Pererê. À frente da iniciativa, que buscava retomar a linguagem despojada do antigo Pasquim, lançado trinta anos antes e extinto havia menos de dez, estava o cartunista Ziraldo. Os colaboradores eram Luis Fernando Verissimo, Chico e Paulo Caruso, Frei Betto, Aldir Blanc e outros. Millôr Fernandes se afastou logo nos primeiros números. Com a venda nas bancas diminuindo a cada semana e a falta de publicidade, a revista teve de encerrar suas atividades em dezembro de 2000, após 77 edições e três almanaques especiais.