sexta-feira, 24 de novembro de 2023

DOSTOIÉVSKI DEMONSTRA ANTIPATIA PELO CATOLICISMO E SOCIALISMO

DOSTOIÉVSKI DEMONSTRA ANTIPATIA PELO CATOLICISMO E SOCIALISMO: UMA CRÍTICA A TODA HARMONIA CUJA BASE SEJA O CONSTRANGIMENTO 

— Nikolai Berdiaev 


Dostoiévski foi dominado pela ideia de que a harmonia

universal não podia ser concebida sem a liberdade do mal e do pecado, sem a provação da liberdade. 

Ele se ergue contra toda harmonia cuja base seria o constrangimento, fosse ela teocrática ou socialista. 

A liberdade do homem não pode ser concebida como o presente obrigatório de uma ordem de coisas dada. Ela deve preceder esta ordem de coisas. 

O caminho que leva a ele, que leva à união universal dos seres, deve passar pela liberdade, e a antipatia de Dostoiévski para com o socialismo e o catolicismo está ligada, como veremos mais tarde, a esta impossibilidade de se dobrar primeiro a uma organização do mundo baseada sobre a necessidade. 


Ele opõe a liberdade do espírito humano juntamente ao catolicismo e ao socialismo. 

É neste sentido que se deve compreender a revolta do "gentil-homem com fisionomia zombeteira e retrógrada". 

Dostoiévski não aceita nem este paraíso onde a liberdade do espírito ainda não é possível, nem aquele onde ela já não o é. 

O homem decaído da ordem antiga do mundo baseado sobre o constrangimento deve, pela liberdade do espírito, chegar à ordem nova. 

A fé, segundo a qual Dostoiévski queria estabelecê-la, era uma fé livre, apoiada sobre a liberdade de consciência. 

"É da fornalha de minhas dúvidas que jorrou meu hosana", escrevia Dostoiévski de si mesmo. E quisera ele que, a exemplo da sua, toda fé fosse temperada no crisol das dúvidas. 

O mundo cristão não conheceu defensor mais apaixonado da liberdade de consciência. 

"A liberdade de tua fé foi mais cara que tudo", diz o Grão Inquisidor ao Cristo. E ele teria podido dizê-lo igualmente a Dostoiévski mesmo. 

E ainda: "Tu desejaste o livre amor do homem". "Em lugar da dura lei antiga, o homem deveria decidir em si mesmo, com coração livre, o que é o bem e o que é o mal, não tendo por guia diante dos olhos senão a tua simples imagem". 

Estas palavras do Grão Inquisidor ao Cristo contêm a profissão de fé do próprio Dostoiévski. 

Ele repele "o milagre, o mistério e a autoridade" como meios de pesar sobre a consciência humana e de privar o homem da liberdade de seu espírito: era contra esta liberdade do espírito humano, contra a liberdade da consciência humana que eram dirigidas três provas pelas quais o demônio tentou ao Cristo no deserto.

Na aparição do Cristo, pelo contrário, nada força a consciência humana: a religião do Gólgota é a religião da liberdade. 

O Filho de Deus, aparecendo no mundo, "sob o aspecto de um escravo, e colocado numa cruz, torturado pelo mundo, dirige-se à liberdade do espírito humano". 

Na imagem do Cristo, nenhum constrangimento, nada que força a crer nele, como em Deus.

Ele não era nem a força nem o poder no reino deste mundo, e o reino que ele anunciava não era daqui de baixo. Eis onde reside o segredo fundamental do Cristo, o segredo da liberdade. 

Era mister, com efeito, uma extraordinária liberdade de espírito, um prodígio de fé livre, um reconhecimento espontâneo das "coisas invisíveis" para perceber seu Deus sob os traços de escravo de Jesus: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo", ele cumpriu um ato de liberdade. 

Estas palavras ressoaram nas profundezas da livre consciência humana, determinando o curso da história universal. 

E, no mundo cristão, todo ser, do fundo de sua consciência, de seu espírito livres, deve repeti-las. Nisto está a dignidade do cristianismo. 

Dostoiévski creu que a ortodoxia oriental tinha salvaguardado esta liberdade cristã mais que o catolicismo ocidental. 

Muitas vezes ele foi injusto com respeito ao catolicismo que não se poderia acusar de ser invadido pelo espírito do Anticristo. 

E, por outro lado, ele não queria ver no mundo ortodoxo as falhas e os desvios. A liberdade cristã não existiu no bizantinismo, na teocracia imperial, mais do que na teocracia papista.

Entretanto, Dostoiévski assinala com razão que a ortodoxia em geral a respeita mais: o que nela havia de inacabado lhe veio lá em auxílio. 


Na sua própria religião da liberdade do espírito, Dostoiévski ultrapassou infinitamente os limites da ortodoxia histórica como do catolicismo; ele se volta para o futuro, e suas descobertas têm um acento profético. 

Mas ele permanece não obstante a carne da carne, o sangue do sangue da ortodoxia russa. 

Ele revelou que o princípio do Anticristo não era outro senão a negação da liberdade do espírito e o constrangimento exercido sobre a consciência humana. 

Para ele, o Cristo era a liberdade, o Anticristo, a obrigação, o constrangimento, a servidão do espírito. 

E, analisando até ao fundo este princípio anticristão, ele denuncia os diversos aspectos que ele revestiu na história, desde a teocracia ocidental e oriental, desde o imperialismo até a anarquia e o socialismo ateu.

sábado, 4 de novembro de 2023

DOSTOIÉVSKI REPUDIA A TEORIA HUMANITÁRIO-POSITIVISTA


DOSTOIÉVSKI REPUDIA A TEORIA HUMANITÁRIO-POSITIVISTA IRRESPONSÁVEL QUE ENCARA O MAL DE UM PONTO DE VISTA SOCIAL, EXTERIOR AO HOMEM

— Nikolai Berdiaev


O problema do mal e do crime estão ligados em Dostoiévski ao problema da liberdade. O mal é inexplicável sem a liberdade. Ele aparece nos caminhos da liberdade. 


Sem este liame, não existiria a responsabilidade do mal: sem liberdade só Deus seria responsável pelo mal. 


Dostoiévski compreendeu isso mais profundamente que outro qualquer. Compreendeu também que, sem liberdade, nem tampouco existiria o bem, que o bem é igualmente filho da liberdade. 


Todo o segredo da vida, o segredo do destino humano depende desta noção. A liberdade é irracional, e por isso ela pode criar simultaneamente o bem e o mal. 


Mas rejeitar a liberdade, sob pretexto de ela poder gerar o mal, é criar o mal duplamente. 


Pois se o bem livre é o único bem, o constrangimento e a servidão que se apresentam como sendo a virtude são o aspecto anticristão do mal. Eis onde reside a antinomia, o mistério e o enigma. 


Dostoiévski não se contenta de colocar diante de nós este enigma; ele contribui poderosamente para resolvê-lo. 


A concepção que teve do mal é tão original que muitos se enganaram nisso: é mister compreender completamente sua maneira de pôr e resolver o problema. 


O caminho da liberdade, segundo ele, degenera em arbitrariedade, a arbitrariedade conduz ao mal, e o mal ao crime.


O problema do crime ocupa na obra de Dostoiévski o lugar central. Ele não é somente antropologista, mas, à sua maneira, criminalista. Sua inquirição sobre as fronteiras e os limites externos da natureza humana levaram-no a inquirir sobre a natureza do crime.


Qual é o destino que sofre o homem que ultrapassou as fronteiras do permitido, e que regeneração para o seu ser lhe pode sobrevir daí? São as consequências antológicas do crime que Dostoiévski desvenda.


Está demonstrado, como vimos, que a liberdade, degenerando em arbitrariedade, conduz ao mal, o mal ao crime, e o crime enfim, — por uma fatalidade interior — ao castigo. 


O castigo espreita o homem nas profundezas extremas de sua própria natureza: por isso Dostoiévski, toda a sua vida, se insurgiu contra a maneira de encarar o mal de um ponto de vista exterior. 


Seus romances e os artigos do "Diário de um Escritor" estão repletos de processos criminais.


Interesse estranho que provém do fato de que, de toda a sua natureza espiritual, Dostoiévski se elevava contra toda explicação deste gênero, motivando o mal e o crime pela influência do ambiente social, e negando, por conseguinte, a oportunidade da punição.


Dostoiévski só alude com ódio a esta teoria humanitário-positivista. Via nela a negação da profundeza da natureza humana, a negação da liberdade do espírito humano e da responsabilidade que lhe é aderente. 


Se o homem é apenas o reflexo passivo do seu ambiente social, se ele não é uma criatura responsável, então não há homem nem Deus, não há liberdade, nem mal nem bem. 


Um tal rebaixamento do homem, uma tal negação de sua primogenitura excitava a cólera de Dostoiévski. Não se podia exprimir com calma sobre esta doutrina, então bastante espalhada. 


Pelo contrário, ele está disposto a defender as penas mais severas, porque elas convêm a seres livres e responsáveis. 


O mal está depositado na profundeza da natureza humana, na sua liberdade irracional, na sua perda de um princípio divino. 


Também os partidários de penas muito pesadas têm uma vista mais justa da natureza do crime e da natureza humana em geral que aqueles que negam o mal de um ponto de vista humanitário. 


É em nome da dignidade do homem, em nome de sua liberdade que Dostoiévski afirma a necessidade de responder a cada crime por um castigo que exige menos uma lei exterior que, nas profundezas, a consciência livre do homem. 


Este não pode consentir mesmo a não ser responsável pelo mal e o crime, a não ser uma criatura livre, um espírito, mas tão somente um reflexo do seu ambiente social. 


A cólera de Dostoiévski, sua crueldade mesma proclamam a dignidade do homem e sua supremacia. 


Ele é indigno de um criador livre e responsável por despojar o fardo da responsabilidade para descarregá-lo sobre circunstâncias exteriores de que ele seria o joguete. 


Toda a obra de Dostoiévski é uma refutação desta calúnia jogada sobre a natureza humana. 


O mal é o sinal de que existe no homem uma profundeza interna. 


Ele está ligado à sua personalidade, só a personalidade pode criar o mal e responde por ele. 


Uma força impessoal não poderia ser responsável pelo mal, não poderia ser um motor primeiro. 


Destarte, a concepção do mal em Dostoiévski está em estreita ligação com sua concepção da personalidade, com seu personalismo. 


O humanitarismo irresponsável nega o mal, porque nega a personalidade, e Dostoiévski lutou contra o humanitarismo em nome do homem. 


Se o homem existe, se a personalidade humana existe em profundeza, então o mal tem fonte interior. Ele não pode ser o resultado de circunstâncias fortuitas criadas pelo ambiente social. 


E convém à dignidade do homem e à sua filiação divina pensar que o caminho do sofrimento resgata o crime e consome o mal. 


O pensamento de que só o sofrimento eleva o homem até seu apogeu é essencial à antropologia de Dostoiévski. O sofrimento, no homem, é indício da profundeza.