sexta-feira, 23 de abril de 2021

O LIVRO DE MELQUISEDEQUE - segunda parte

Manuscritos do Mar Morto



Segunda parte

A História de Salém

Capitulo I

Esta é a história de Salém segundo ouvi dos lábios de Melquisedeque por ocasião da festa de Sukot, quinze dias depois do livramento de Ló e suas filhas. Tudo começou com um sonho no coração de um homem chamado Adonias; Ele possuía de muitas riquezas, mas a nada prezava mais que a justiça e a paz que nascem da sabedoria e do amor. Cansado com as injustiças que predominavam por toda a terra de Canaã, Adonias resolveu edificar um reino que fosse regido por leis de amor e de justiça.

O nome da capital desse reino seria Salém, a Cidade da Paz. Os súditos de Salém não empunhariam arcos e flechas, mas seriam treinados na arte musical; Cada habitante de Salém teria sempre ao alcance de suas mãos um instrumento musical, para expressar por meio dele a paz e a alegria daquele novo reino. Juntos, formariam uma poderosa orquestra na luta contra a desarmonia que nasce do orgulho e do egoísmo. O primeiro passo de Adonias para a concretização de seu plano, foi elaborar as leis do novo reino, as quais ele as escreveu em um pergaminho. Os súditos de Salém não poderiam mentir, furtar, odiar, nem matar seus semelhantes. O orgulho e o egoísmo eram apontados como causa de todo o mal, portanto, não poderiam existir naquele lugar de paz..

As leis do pergaminho requeriam a prática da humildade, da sinceridade, da amizade, e, acima de tudo, do amor que é a maior de todas as virtudes. Depois de registrar no pergaminho as leis que regeriam aquele reino, Adonias passou a arquitetar Salém. Seria uma cidade a princípio pequena, com habitações para mil e duzentas pessoas. Como lugar de sua edificação, foi escolhida uma região alta de Canaã, ao ocidente do Monte das Oliveiras. Em pouco tempo, a realização de Adonias começou a atrair pessoas de todas as partes que, de perto e de longe, vinham para conhecerem os palácios e as mansões que estavam sendo edificados. Admirados ante a beleza daquela cidade tão alva, os visitantes perguntavam sobre quem seriam os seus moradores. Adonias mostrava-lhes o pergaminho, dizendo que Salém destinava-se aos limpos de coração - aqueles que estivessem dispostos a obedecerem suas leis.

A História de Salém

Capitulo II

A edificação da cidade foi finalmente concluída e Salém revelou-se formosa como uma noiva adornada, à espera de seu esposo. Assentado em seu trono, Adonias examinava agora os numerosos pretendentes a súditos que chegavam de todas as partes. Aqueles que, prometendo fidelidade às leis, eram aprovados, recebiam três dotes do rei: o direito à uma mansão, vestes de linho fino e um instrumento musical no qual deveriam praticar. A cidade ficou finalmente repleta de moradores.

Cheio de alegria, Adonias convocou a todos para a festa de inauguração de Salém, no decorrer da qual proclamou um decreto que determinaria o futuro daquele reino, dizendo: - A partir deste dia, que é o décimo do sétimo mês, seis anos serão contados, nos quais todos os moradores serão provados. Somente aqueles que permanecerem leais, progredindo na prática das leis do pergaminho, serão confirmados como herdeiros deste reino de paz. Aqueles que forem enlaçados por culpas e transgressões, serão banidos pelo juízo. As palavras do rei levou a todos a um profundo exame de coração, e alegraram-se com a certeza de que alcançariam vitória sobre todo o orgulho e egoísmo, que são as raízes de todos os males. Adonias tinha um único filho a quem dera o nome de Melquisedeque. A beleza, ternura e sabedoria desse filho amado, haviam sido sua inspiração para a edificação fundação de seu reino.

Melquisedeque tinha doze anos de idade, quando Salém foi inaugurada. Era plano de Adonias coroá-lo rei sobre os súditos aprovados, ao fim dos seis anos. Este plano, o manteria em segredo até o momento devido. O príncipe, com suas virtudes e simpatia, tornou-se logo muito querido de todos em Salém. Ele tinha sempre nos lábios um sorriso e uma palavra de carinho. Apreciava estar junto aos súditos em seus lares, recitando-lhes as leis do pergaminho em forma de lindas canções que vivia a compor. Sua presença trazia ao ambiente uma atmosfera de felicidade e paz.

Esse amado príncipe possuía, de fato, todas as virtudes necessárias para ser rei de uma Salém vitoriosa. Adonias edificara uma mansão especial junto ao palácio, com o propósito de ofertá-la ao súdito cuja vida expressasse mais perfeitamente as leis do pergaminho. Diariamente ele observava os moradores, procurando entre eles essa pessoa a quem desejava honrar. Passeava pelas alamedas de Salém, quando, por entre o trinar de pássaros, Adonias ouviu uma voz semelhante a de seu filho. Ao voltar-se para ver quem era, encontrou um belo jovem que cantarolava uma canção. Ao contemplar em sua face o brilho da sabedoria e da pureza, Adonias alegrou-se por haver encontrado aquele a quem poderia honrar. Aquele jovem, que era uma cópia fiel do príncipe, chamava-se Samael.

Colocando-lhe um anel no dedo, o rei conduziu-o ao palácio, onde, recebido por Melquisedeque que ofereceu-lhe muitos presentes, entre os quais o direito de estar sempre ao seu lado. Adonias preparou um grande banquete em honra a Samael, para o qual todos foram convidados. Ao contemplá-lo ao lado do rei, os súditos o aclamaram com alegria, acreditando ser o próprio príncipe. Exaltavam com júbilo as virtudes daquele formoso jovem, quando revelou-se Melquisedeque, posicionando-se com um sorriso à direita de seu pai. No banquete, Samael foi honrado por todos. Realmente ele era digno de residir na mansão do monte, pois havia nele um perfeito reflexo das virtudes que coroavam o amado príncipe.

A História de Salém

Capitulo III

Salém crescia em felicidade e paz.Com alegria, os súditos reuniam-se a cada dia ao amanhecer para ouvirem, cantarem e tocarem as sublimes composições de Melquisedeque, que inspiravam atos de bondade e paz. Entre as amizades nascidas e fortalecidas em virtude da música harmoniosa, sobressaia aquela que unia o príncipe a Samael. Desde que passara a residir na mansão do monte, Samael tornara-se seu companheiro constante. Passavam longas horas juntos, meditando sobre as leis do pergaminho.Com admiração, o súdito honrado via o filho de Adonias transformar aquelas leis em lindas canções. As doces melodias nasciam dos seus lábios como o perfume de uma flor. Consciente da importância da música na preservação da harmonia e paz em Salém, o príncipe, além do canto, passou a dedicar-se à música instrumental, sendo o seu instrumento preferido o alaúde.

Era por meio desse instrumento que conseguia expressar com maior perfeição a riqueza de seu íntimo. Dos seis anos de prova, cinco, finalmente, passaram. Adonias, feliz por ver que até ali todos os habitantes de Salém haviam permanecido leais aos princípios contidos no pergaminho, convocou-os para um banquete, no qual faria importantes revelações. Tendo tomado seus lugares diante do trono, os súditos, com alegria uniram as vozes entoando os cânticos da paz, sendo regidos por Samael. 

Depois de ouvi-los, o rei, emocionado, dirigiu-se a seu filho, abraçando-o em meio aos aplausos da multidão agradecida. Todos reconheciam que a paz e a alegria em Salém, eram em grande medida devidas ao amor e dedicação do querido príncipe, que era o autor daquelas doces canções. Naquele momento de reconhecimento e gratidão, Adonias revelou os seus planos mantidos até então em segredo.Com voz pausada, disse-lhes: - Súditos deste reino de paz, minh’alma está repleta de alegria por contemplar nesse dia vossas faces mais radiantes que outrora. Vossas vestes continuam alvas e puras, como quando as recebestes de minhas mãos. A harmonia de vossas vozes e instrumentos, hoje são maiores. 

Tendo dito estas palavras, o rei acrescentou com solenidade: -Um ano de prova ainda resta, ao fim do qual sereis examinados. Permanecendo fiéis como até aqui, sereis honrados confirmados como súditos deste reino de paz. Contudo, se alguém for achado em falta, será banido, ainda que este julgamento nos traga muita tristeza e sofrimento. As palavras do rei levaram os súditos a uma profunda reflexão. Todos, examinandose, indagavam reverentes: - Estaremos aprovados?! Certos de que seriam vitoriosos, pois amavam Salém e suas leis, uniram as vozes num cântico expressivo de fidelidade. 

Ao terminarem o cântico, Adonias reveloulhes seu grande segredo: - Aqueles que forem aprovados, herdando este reino de paz, receberão como rei o meu filho , a quem darei o trono glorificado dessa Salém vitoriosa. A revelação do rei foi aclamada por todos com muito júbilo. Adonias, contudo, ainda não lhes revelara todo o seu plano, por isso pedindo-lhes silêncio, prosseguiu: - O meu filho empunhará um cetro especial, no qual selarei todo o direito de domínio seu cetro , simbolizando toda a harmonia, será um alaúde. 

Diante desta revelação que a todos sensibilizou, o príncipe prostrando-se aos pés de seu pai, chorou motivado por muita alegria. Enquanto isto, todos o aplaudiam com euforia, ansiando ver o raiar desse dia em que a paz seria vitoriosa. Adonias, chamando para junto de seu filho a Samael, concluiu dizendo: - No governo dessa Salém vitoriosa, tenho proposto fazer de Samael o primeiro depois de Melquisedeque. A ele será confiado o pergaminho das leis, devendo ser o guardião da honra desse reino triunfante. 

A História de Salém 

Capitulo IV 

Samael, ao conhecer os planos de Adonias quanto ao futuro de Salém, encheu-se de euforia. Contemplava agora risonho aquela cidade sem igual, imaginando seu futuro de glória. Considerando as palavras do rei, de que ele seria o segundo no reino, deixou ser dominado por um sentimento de exaltação.

Ele, que até ali, em obediência às leis do pergaminho, vivera uma vida de humildade, começava a orgulhar-se de sua posição. Em seu devaneio sentia-se junto ao trono, tendo os súditos de Salém a seus pés, aclamando com louvores sua grandeza. Samael, totalmente dominado por esse sentimento, não dava por conta de que estava sendo conduzido para um caminho perigoso. O orgulho que o seduzira, estava gerando o egoísmo que logo se manifestaria em cobiça. 

Uma semana após a revelação de Adonias, os súditos promoveram uma festa em homenagem a Melquisedeque, o futuro rei de Salém. Vendo-o aclamado por tantos louvores, Samael teve o coração tomado por um estranho sentimento de inveja, fruto do orgulho e do egoísmo. Não podia suportar o pensamento de ser deixado em segundo plano. Não era ele tão formoso e sábio quanto o príncipe?! Era quase impossível disfarçar tal sentimento de infelicidade.

Outrora, Samael encontrara indizível prazer nos momentos em que, ao lado do príncipe, recitava as leis contidas no pergaminho, que eram transformadas em lindas canções. Agora, tais momentos tornaram-se desagradáveis, pois aqueles princípios contrariavam os seus ideais. Decidiu, contudo, não revelar seus sentimentos de revolta. Suportaria o antiquado pergaminho até que, com sua autoridade, pudesse bani-lo do novo reino que seria estabelecido. Não seria ele o guardião daquelas leis? Essa "vitória" procuraria alcançar mediante sua influência e sabedoria. 

Julgando poder influenciar o filho de Adonias com seus sonhos de grandeza, Samael aproximou-se dele com euforia, e passou a falar-lhe das glórias do reino vindouro, onde os dois, cobertos de honras, desfrutariam dos louvores de uma Salém vitoriosa. Seriam eles os heróis do mais perfeito reino estabelecido entre os homens. As delirantes palavras do súdito honrado trouxeram preocupação e tristeza ao coração do jovem príncipe, pois não refletiam os ensinamentos de amor e humildade do pergaminho. 

Vendo o seu íntimo amigo em perigo, Melquisedeque, com uma ternura jamais revelada, conduziu-o para junto do trono, onde, tomando o pergaminho, passou a ler compassadamente os seguintes parágrafos: - O reino de Salém será firmado sobre a humildade ,pois esta virtude é a base de toda verdadeira grandeza. A humildade é fruto do amor, sendo contrária ao orgulho, que pode manter uma criatura presa ao pó, fazendo-a contentar-se com suas limitações ,iludindo-a como se as mesmas fossem de infinito valor. A humildade consiste no esquecimento de si, e este, numa vida de abnegado serviço pelos semelhantes.

Samael, esforçando-se para encobrir sua indignação ante a leitura do pergaminho que para ele era ultrapassado, disse ao príncipe, em tom de conselho amigo: - Meu bom companheiro, reinaremos numa Salém vitoriosa, que fulgurará muito acima deste pergaminho ,cujos princípios foram cumpridos fielmente nesses anos de prova.

A plena liberdade não será a glória de Salém? Pois saiba que, completa liberdade não coexistirá com estas leis, cujo objetivo encerra-se ao fim dos cinco anos. Caberá a nós dois coroarmos Salém com a honra de uma total liberdade, que gerará uma felicidade sem fim. Tal liberdade é impossível existir sob as limitações do pergaminho. O filho do rei ficou muito abalado ante as palavras de seu amigo, que evidenciavam loucura. Como libertá-lo desse caminho de morte?! Ninguém em Salém, além de Melquisedeque, conhecia a triste condição de Samael. Com paciência, o príncipe procurava conscientizá-lo do real valor do pergaminho, cujas leis não podiam jamais ser alteradas, pois isto seria o fim de toda a paz. Os conselhos do príncipe despertaram finalmente o seu coração.

Meditando sobre suas palavras, conscientizou-se de estar seguindo por um caminho enganoso. Ao ver nos olhos daquele a quem tanto amava as lágrimas do arrependimento, o filho de Adonias alegrou-se com sua vitória sobre o orgulho e o egoísmo. 

Os dias que seguiram-se à libertação, foram cheios de realizações; O príncipe revelava-se ainda mais amigo, disposto a dar tudo de si para que seu companheiro pudesse prosseguir triunfante no caminho da humildade. Naqueles dias de júbilo, foi dada a ele a honra de conhecer o cetro que estava sendo moldado. Num momento de descuido, Samael que voltara a desfrutar paz de espírito, permitiu que seu coração novamente ficasse possuído por um sentimento de grandeza, que fez desencadear nova tormenta em sua alma. Esse sentimento misto de orgulho e cobiça lhe sobreveio no momento em que o príncipe mostrava-lhe o dourado alaúde, no qual estava sendo impresso o selo de todo o domínio. 

A História de Salém 

Capitulo V 

De sua mansão Samael contemplava Salém em seu resplendor matinal. Vendo-a, qual noiva adornada à espera de seu rei, cobiçou-a. Em seu delírio passou a formular planos de conquista. Já podia sentir-se exaltado sobre o seu trono, tendo nas mãos o cetro precioso. Todos aclamariam-no como o libertador da opressão daquelas leis. Salém seria um reino de completa liberdade e prazer. Dominado por esta cobiça, passou a maquinar planos de conquista. Samael decidiu agir sutilmente entre os súditos, levando-os a ver no pergaminho um impecílio à real liberdade.

Em sua missão de engano, agiria com aparente bondade, revelando interesse pelo crescimento da felicidade de todos. Pondo em prática seus planos, passou a visitar os súditos em suas mansões, falando-lhes das glórias do reino vindouro, onde desfrutariam completa liberdade. Grande era a sua influência em Salém. Todos admiravam sua beleza e sabedoria, tendo-o como um perfeito apóstolo da justiça e do amor. Ninguém podia imaginar que em meio àquela atmosfera de júbilo e gratidão uma armadilha sutil estava sendo colocada, nas garras da qual muitos poderiam cair por descuido. 

Em sua sedutora missão, Samael não falava contra o pergaminho, aliás, louvava-o por haver exercido naqueles seis anos prestes a findarem ,uma missão de prova. Em sua lógica, contudo, procurava mostrar que, no reino vindouro, quando todos estivessem aprovados, estariam acima daquelas leis. Seus argumentos, aparentemente corretos, preparavam-lhe o caminho para afirmar abertamente que, no novo reino, a existência do pergaminho, seria um entrave à concretização da verdadeira liberdade. 

As sementes da rebelião lançadas por Samael não tardaram a germinar no coração de muitos em Salém. Isto acontecia a seis meses do Yom Kipur, quando o destino de todos seria selado. Um terço dos habitantes ,seduzido pelo terrível engano, exaltava-o agora, em completo desprezo às leis e ao príncipe, a quem julgavam ultrapassados. 

Adonias, que sofria ao ver o surgimento de toda essa rebeldia, convocou os súditos para uma reunião de emergência. Na face de todos podia-se ver as contrastantes disposições. Com voz compassiva, o rei passou a revelar-lhes, como jamais fizera antes, a grande importância das leis registradas no pergaminho, mostrando que elas eram a base de toda a prosperidade e paz. Se tais leis fossem banidas, toda felicidade e glória se extinguiriam, dando lugar ao caos. 

Depois de mostrar a necessidade das leis, Melquisedeque, movido por um forte desejo de salvar aqueles a quem tanto amava, ergueu diante de todos o pergaminho e, com voz cheia de bondade ofereceu-lhes o perdão e a oportunidade de recomeçarem no caminho da paz. Suas palavras a todos emocionou, ficando até mesmo Samael ficou a princípio motivado, contudo, o orgulho impediu-lhe novo arrependimento.

Desta maneira, o súdito honrado, quando ainda podia olhar arrependido para o pergaminho, endureceu-se em sua rebeldia, decidindo prosseguir até o fim. Esta decisão, todavia, não a manifestaria prontamente, pois idealizara um traiçoeiro plano. 

Ao findar o encontro da oportunidade, Samael convocou seus seguidores para uma reunião secreta, que foi realizada sob o manto da noite, junto ao riacho de Cedrom que ficava fora dos muros de Salém. 

Após maldizer o pergaminho e a todos aqueles que o defendiam, ,começou a falarlhes de seus planos de vingança e traição: - Como vocês sabem, os seis anos da prova estão se esgotando, restando, a partir de hoje, vinte e quatro semanas para o dia da coroação. Se vocês quiserem ter-me como rei em lugar de Melquisedeque, poderei roubar-lhe o cetro, apoderando-me do reino. 

Samael passou a explicar-lhes os lances da traição, dando-lhes as devidas orientações sobre a maneira de agirem a partir daquela data: - Precisamos manter uma aparência de fidelidade ao pergaminho e ao príncipe até que chegue o momento de agirmos. O golpe será dado na noite que antecede o dia da coroação. 

À meia-noite, furtivamente nos ausentaremos de Salém. Roubarei nessa noite o cetro e, juntos, fugiremos para o profundo vale onde estão as cidades de Sodoma e Gomorra. Ali nos armaremos, e marcharemos contra Salém, subjugando nossos inimigos. Acabaremos então com o pergaminho e com todos aqueles que se recusarem prestar obediência ao nosso governo. 

A História de Salém 

Capitulo VI 

Sobrevieram dias de aparente tranqüilidade e paz Samael, fingindo fidelidade, estava sempre ao lado do príncipe, demonstrando admiração pelas suas novas composições que exaltavam as leis do pergaminho. Os seguidores de Samael, da mesma maneira, uniam as vozes em louvores que expressavam a grandeza dos princípios aos quais repugnavam. 

Melquisedeque, cheio de alegria por ver aproximar-se o dia de sua coroação, ensaiava com os súditos os cânticos da vitória, os quais compusera especialmente para aquela ocasião.

Com felicidade falava a todos sobre seus sonhos em tornar Salém cada vez mais honrada por sua beleza e harmonia. Samael, em sua maldade velada, zombava do príncipe. Já previa a dor que lhe traria o golpe da traição. Naqueles dias de aparente paz, o súdito rebelde procurou conhecer o lugar em que o cetro ficaria oculto até o dia da coroação. O príncipe, sem nada desconfiar, revelou-lhe todo o segredo: a sala, o cofre com seu enigma, o rico estojo e, finalmente o tesouro. Contemplando-o o astuto Samael animou-se ao ver estampado em seu bojo o selo do domínio. Compreendeu que, aquele que o possuísse, teria nas mãos o reino de Salém. Somente alguns dias, pensou, e teria sob seu poder aquele instrumento precioso. 

O sol declinou trazendo para Salém o dia que significaria vitória ou derrota. Pouco antes do anoitecer, Samael deixara o palácio onde passara todo o dia ao lado do príncipe, ajudando-o nos preparativos para a cerimônia da coroação. Dirigindose para sua mansão, saudou as trevas com um sorriso maldoso. Como ansiara por aquela noite! 

Enquanto os fiéis, embalados pela emoção da feliz vitória , revisavam sob a luz de candeias os adornos de seus instrumentos, de vestes e mansões, certificando-se que seriam aprovados na manhã seguinte, Samael e seus seguidores faziam seus últimos preparativos para desferirem o golpe. 

À meia-noite, seguindo as instruções de Samael, todos os seus seguidores abandonaram silentemente suas mansões, rumando-se ao profundo vale de Cedrom, onde esperariam pelo seu novo rei. Samael, por sua vez, dirigiu-se aos fundos do palácio, por onde esperava entrar sem ser notado, indo ao encontro do cetro. Evitando qualquer ruído, transpôs o portal, dirigindo-se silentemente à sala que guardava o precioso cetro. Naquele momento, o príncipe que, insone rolava em seu leito, pressentindo algum perigo, dirigiu-se ao quarto de seu pai e o despertou dizendo: - Meu pai, ouvi ruídos de passos no interior do palácio. Afagando a cabeça de seu filho, Adonias, sonolento respondeu-lhe: - Filho, não se preocupe. Deite-se comigo e durma tranqüilamente. Daqui a pouco raiará o alvorecer e você terá nas mãos o alaúde dourado. 

O príncipe, tranqüilizado pelas palavras confiantes de seu pai, entregou-se a um sono de lindos sonhos em que vivia ao lado de Samael e de todos os súditos de Salém, os momentos festivos da coroação. Enquanto isso, o rebelde com as mãos trêmulas, apossava-se do cetro. Naquele momento, teve a idéia de levar somente o alaúde, deixando o estojo em seu devido lugar.

Com um sorriso cheio de maldade, imaginou o momento em que o rei entregaria ao seu filho aquele estojo vazio. Levando consigo o cetro, Samael dirigiu-se apressadamente ao lugar em que seus seguidores o aguardavam. 

Ao encontrá-los, deu vazão a todo o seu orgulho proclamando: - Agora eu sou o rei de Salém. Quem possui um cetro como o meu? Com ele domino a terra e o mar.A minha força está nas trevas , pois através dela o conquistei. Festejando a vitória, a turba ruidosa afastou-se para distante de Salém, seguindo rumo às cidades corrompidas da planície, onde pretendiam armarem-se para a conquista de seu reino.

O sol surgiu no horizonte, trazendo a luz do dia da expiação (Yom Kipur). Despertando de seu sono de lindos sonhos, o príncipe apronta-se para a cerimônia do juízo e da coroação. Vestes especiais de linho fino, adornadas com fios de ouro e pedras preciosas, foram-lhe preparadas. Depois de vestir-se, Melquisedeque encaminhou-se para o encontro de seus súditos, na extremidade sul de Salém. Dali os conduziria numa marcha festiva rumo ao palácio situado ao norte, sobre o monte Sião. 

Adonias, fazendo soar um longo chifre, convocou a todos para a reunião do julgamento. Deixando suas mansões, todos os remanescentes dirigiram-se para a praça do portão sul, levando consigo seus instrumentos musicais. Ao encontrar-se com aqueles fiéis, Melquisedeque ficou surpreso pela ausência de muitos. Esse mistério doía-lhe na alma, pois lhe ocultava-lhe a face mais querida de seu amigo Samael. Deixando seus seguidores reunidos, o príncipe saiu à procura dos ausentes. Em sua busca infrutífera, dirigiu-se finalmente à mansão do monte, onde chamou por Samael; Sua voz, contudo, não trouxe nenhuma resposta além de um eco vazio, que traduzia ingratidão. Lendo no triste vazio a traição, sentiu vontade de chorar.

Num só momento veio-lhe à mente todo o passado daquele a quem buscara com tanta dedicação conservá-lo em sua glória, através de conselhos sábios. Recordou daqueles dias que seguiram à sua recuperação. Como se alegrara com a certeza de que seu amigo não mais voltaria a cair! Levando-o a pressentir a tragédia, veio-lhe a lembrança as indagações de Samael sobre o alaúde, o qual mostrou-lhe num gesto de amizade. 

A memória deste fato, somada aos passos ouvidos no interior do palácio naquela noite, deu-lhe a certeza que Salém corria perigo. Não suportando essa possibilidade de traição, prostrou-se em pranto, ferido pela terrível ingratidão daquele a quem dedicara tanto amor. Curvado pela dor, permaneceu por algum tempo procurando encontrar algum consolo. Enxugou finalmente as lágrimas, decidido a fazer qualquer sacrifício a fim de devolver a Salém sua glória e poder, redimindo-lhe o cetro das mãos da rebeldia. Consolado pela certeza da vitória, Melquisedeque retornou para junto dos súditos fiéis. Ocultando-lhes seu sofrimento, bem como o motivo da ausência de tantos, o príncipe guiou-os em marcha triunfal rumo ao palácio. 

A História de Salém 

Capitulo VII 

Ao aproximarem-se do monte Sião, galgaram os alvíssimos degraus da escadaria, sendo seguidos pela multidão exultante. Doía-lhe na alma a expectativa de ver morrer nos lábios dos fiéis, naquela manhã, o seu alegre canto, devido o golpe da traição. Encontravam-se agora no interior do palácio, diante do magnífico trono que esperava pelo jovem rei. 

Na base do trono, jazia aberto, em meio a um arranjo de flores, o pergaminho das leis. Junto dele podia-se ver a linda coroa, feita de ouro e pedras preciosas, bem como o estojo daquele cetro que simbolizava toda a harmonia de Salém. Os súditos estavam felizes, pois sabiam que seriam achados dignos de herdar aquele reino de paz.

Aguardavam agora o momento da coroação, quando o seu novo rei os regeria de seu trono com seu cetro precioso, num cântico triunfal. Em meio aos aplausos das hostes vitoriosas, Melquisedeque dirigiu-se a seu pai, que o recebeu com um carinhoso abraço. O momento era deveras solene. As hostes silenciaram-se na expectativa da coroação. O estojo seria aberto e, todos testemunhariam a exaltação do querido príncipe. 

Com o coração pulsando forte pela alegria, Adonias curvou-se sobre o estojo, abrindo-o cuidadosamente; Ao encontrá-lo vazio, a alegria de seu semblante deu lugar à uma expressão de indizível preocupação e tristeza, pois naquele cetro selara o destino daquele reino de paz. Ao ver seu pai e todos os súditos aflitos pela ausência do cetro e de tantos amigos que deveriam estar com eles naquele momento, Melquisedeque consolou-os com a promessa de que buscaria o cetro. Inconscientes dos riscos e perigos que aguardavam o príncipe em seu caminho, os súditos despediram-se dele, vendo-o partir apressadamente. 

O alvorecer daquele dia que seria o da coroação, alcançou os rebeldes distantes de Salém, a caminho das cidades da planície. Naquele manhã, Samael encheu-se de fúria ao ver que o precioso alaúde estava adornado com inscrições das leis contidas no pergaminho. Tomando uma pedra pontuda, passou a danificar o cetro, raspandolhe todas as palavras de amor e justiça. Suas harmoniosas cordas estavam agora desafinadas sobre o seu bojo ferido, mas continuava sendo precioso, pois sobre ele jazia selado o domínio de Salém. Possuí-lo, significava ser dono de todo o poder. 

Ao chegarem à altura em que o caminho bifurcava-se, Samael ordenou a seus seguidores que prosseguissem rumo a Gomorra, enquanto ele iria até Sodoma, onde permaneceria por dois dias, juntando-se depois a eles. Esperou pela noite para entrar em Sodoma. Quando ali entrou, caminhou pelas ruas estreitas sem ser notado, até encontrar uma casa isolada sobre uma elevação. Fazendo do cetro sua arma, invadiu a casa matando seus moradores, enquanto dormiam. Apossou-se dessa maneira daquela residência onde, solitário, maquinaria seus planos para a tomada de Salém. 

O entardecer daquele dia que seria o da coroação, alcançou o filho de Adonias a caminhar pelo pedregoso caminho rumo ao vale. Seus olhos carregados de tristeza e anseio voltam-se para o solo, em busca dos rastros dos rebeldes. A lembrança da ingratidão daqueles a quem tanto amava, o fez chorar. Suas lágrimas, refletindo os últimos lampejos daquele sol poente, assemelham-se a gotas de sangue jorrando de um coração ferido. Ele chorava não por causa dos perigos que lhe sobreviriam naquela fria noite, mas pela infeliz sorte daqueles que haviam trocado a paz de Salém pela violência daquelas cidades da planície. O seu único consolo era a lembrança daqueles que, apesar de todas as tentações, haviam permanecido fiéis. A eles prometera devolver o cetro, e isto o faria apesar de qualquer sacrifício. Depois de uma longa noite de insônia em que o príncipe ficou recostado ao lado do caminho, raiou a luz de um dia que seria decisivo. Ao aproximar-se de Sodoma naquela manhã, o pensamento de estar tão próximo do cetro de sua amada Salém, fez com que se esquecesse de toda a fadiga, abreviando seus passos rumo ao desafio. Ao abeirar-se do grande portão da cidade, ficou tomado por um temor, ao ouvir ruídos espantosos de desarmonia, que traduziam o orgulho, o egoísmo e a cobiça que ali dominavam todos os corações, fazendo-os explodir na orgia de uma maldade sem fim.

Seria um grande risco expor-se à violência gratuita daquela cidade. Esse pensamento o fez deter-se a um passo do portal, onde estremecido curvou a fronte em indizível luta íntima. Era tentado a recuar, mas lutava com todas as forças de sua alma contra esse pensamento de fracasso. Pensando na triste sorte de Salém, cujo domínio estava sendo pisado no interior daquela cruel Sodoma, Melquisedeque tomou uma firme decisão: como um destemido guerreiro haveria de avançar, e, mesmo que tivesse de enfrentar o acúmulo de todos os perigos, prosseguiria, até erguer em suas mãos vitoriosas o cetro amado.

Resoluto e esperançoso, transpôs o portão de Sodoma, mergulhando naquele mundo estranho. Tudo ali era o oposto de Salém, começando pelas pedras ásperas e sujas de suas construções. Sodoma era um reino de trevas. A presença contrastante do príncipe foi logo notada por muitos que, em tumulto o acercaram. A pureza de caráter expressa em sua meiga face e o esplendor de suas vestes, encheram-nos de espanto, e recuaram como que vencidos por uma força invisível. Dominados pela fúria , passaram a perseguí-lo à distância, decididos a fazê-lo recuar. Jogavam-lhe pedras e lama tentando macular-lhe as vestes, mas não o atingiam, enquanto ele avançava em sua ansiosa busca. Desistiram finalmente de perseguí-lo, ao entardecer. 

A História de Salém 

Capitulo VIII 

O filho de Adonias percorrera todas as ruas e becos à procura do precioso cetro, mas em vão. Ao ver tombar no horizonte o sol, anunciando a chegada de mais uma escura e fria noite, seu coração ficou opresso por uma grande agonia. Ali, naquele último beco, quase que vencido pela exaustão e pelo desespero, inclinou a fronte, desfazendo-se em pranto. Seus lábios, pronunciaram em meio aos soluços as seguintes palavras: - Salém, Salém, você não pode perecer! O seu cetro precisa ser redimido das garras da rebeldia! Mas quando e onde vou encontrá-lo?! Já não restam forças em mim, e a esperança de redimi-lo antes da noite me abandona! 

O príncipe, em sua suprema angústia, não percebia que outro gemido de dor, procedente de cordas arrebentadas de um alaúde humilhado, fazia-se ouvir naquele entardecer. Subtamente, o fraco gemido penetrou seus ouvidos, reanimando-o com a certeza de que o grande momento da redenção havia chegado. 

Enxugando as lágrimas, reuniu as últimas forças correndo em direção à uma pequena casa situada sobre um monte, de onde parecia vir o som. Ao dirigir-se à porta entreaberta, deteve-se ao contemplar uma cena chocante, de humilhante escravidão: Samael, envolvido por um manto sujo, castigava o cetro de Salém. Tanto o rapaz quanto o cetro achavam-se tão desfigurados, que não restavam neles quase que nenhum traço da glória perdida. Aquele cetro, contudo, mesmo arrasado como estava, era muito precioso, pois nele jazia o selo do domínio de Salém. 

A contemplação daquele que fora seu maior amigo e daquele cetro idealizado como símbolo de toda a harmonia, em tão trágica condição, comoveu profundamente o príncipe, fazendo-o chorar em alta voz. Somente então o súdito rebelde percebeu sua presença indesejada. 

Estremecido, levantou-se, e, cheio de ira perguntou-lhe: - O que o trouxe a Sodoma? Apontando para o cetro danificado, Melquisedeque exclamou: - A glória de Salém está destruída!!! Com uma gargalhada, Samael zombou de sua tristeza, dizendo: - Agora eu sou o rei de Salém. Vocês que são fiéis ao pergaminho, tornar-se-ão meus escravos. Sem se importar com as palavras de afronta de Samael, o príncipe, movido por uma infinita angústia, lhe disse: - Samael, Salém está ferida por sua traição. Por que você trocou o seu lar de justiça e amor por esse vale de injustiça, ódio e morte?! 

Agora, se não deseja retornar à Salém arrependido, devolva-lhe o cetro. Foi para redimi-lo que, a despeito de todos os perigos, desci a esse vale hostil. Conhecendo o propósito do príncipe, o rebelde encheu-se de raiva e cerrando os punhos disse-lhe : - Eu o odeio Melquisedeque! Tendo dito isto, arremessou o cetro ao chão, e pisando-o acrescentou: - Tenho vontade de fazer o mesmo com você. 

Diante dessa afronta, o príncipe não sentiu nenhum temor, mas compaixão. Transportando-se ao feliz passado, lembrava-se dos momentos felizes em que tinha sempre ao seu lado a Samael; Ele era um jovem puro e humilde de coração; Por que permitira ser escravizado pela ilusão do orgulho e do egoísmo?! Quão doloroso era ver aquele jovem que, por sua beleza e simpatia, havia sido honrado acima de todos os súditos, agora arruinado pela cobiça! Não fora o sonho do príncipe ter junto ao seu trono glorificado, aquele que lhe era o mais precioso amigo?! Essa tragédia feria-lhe a alma. 

Contudo, a triste condição do cetro o atingia ainda mais, pois ele fora feito como o símbolo de toda a harmonia ,e estava sendo desfeito sob os pés da ingratidão. Surpreso por não ver nos olhos de Melquisedeque nenhuma expressão de temor, porém de piedade, Samael sentiu-se frustrado em suas afrontas que visam amedrontá-lo, levando-o desistir de sua missão. Diante da postura digna do príncipe, que em silente dor o contemplava, sentiu-se envergonhado. Essa fraqueza, contudo, foi banida pelo orgulho que dominava o seu coração. Começou então a planejar algo terrível, para humilhar e ferir o príncipe, fazendo-o sofrer ainda mais.Com escárnio disse-lhe: - O cetro de Salém poderá ser seu, se você conseguir pagar-me o preço de seu resgate. Com um brilho nos olhos, o príncipe perguntou-lhe: - Qual é o preço? Samael, com um sorriso maldoso, respondeu-lhe pausadamente: - O preço não é ouro nem prata, mas dor e sangue. Você deverá despir-se completamente de suas vestes, deitando-se ao chão. Deverá suportar nessa condição, espancamentos, até que o sol se ponha. Se você estiver disposto a submeter-me, sem reagir, o cetro será inteiramente seu. 

Estremecido ante tão cruel proposta, o filho de Adonias olhou para o sol que pairava distante sobre uma nuvem. Passou a travar em seu coração uma luta intensa. A princípio, o horror do sacrifício quase o dominou, levando-o recuar, mas o pensamento de ver Salém escravizada pela rebeldia, levou-o finalmente à decisão de pagar o preço do resgate, entregando-se ao humilhante sofrimento. Tendo tomado a firme decisão de resgatar o cetro, o príncipe, tirou as vestes, colocando-as sobre uma pedra. Deitou-se em seguida naquele solo frio, com a fronte voltada para o poente. Impiedosamente, Samael começou a espancá-lo, fazendo uso do próprio cetro como instrumento de tortura. Gemendo pela dor dos golpes que o faziam sangrar, o príncipe mantinha o olhar fixo no sol que parecia deter-se sobre a nuvem. Atordoado pela dor, contemplou finalmente o sol prestes a se pôr. Alentado pela vitória que se aproximava,murmura baixinho: - Salém, Salém, daqui a pouco terei em meus braços o teu cetro precioso que, em minhas mãos, tornar-se-á num instrumento de justiça e paz. Ouvindo a promessa do príncipe feita por entre gemidos, Samael bradou-lhe com fúria: - O teu sofrimento não trará nenhum alvorecer para Salém ,pois tuas mãos jamais serão capazes de tocar no cetro. 

Depois de fazer essa afronta, Samael apossou-se de uma pedra pontuda, preparando-se para desferir os últimos golpes. Enquanto pensava sobre a feliz vitória de Salém, Melquisedeque sentiu seu braço direito sendo comprimido pelos pés de Samael. Seguiu a esse rude gesto um golpe que o fez contorcer-se em agonia. Sua mão fora vazada cruelmente, passando a jorrar abundante sangue da ferida aberta. Essa mesma violência foi descarregada logo depois sobre sua mão esquerda. Não suportando a agonia causada por esses derradeiros golpes, o filho de Adonias, ensangüentado, mergulhou nas trevas de um profundo desmaio. 

A História de Salém

Capitulo IX 

Ao cessar de golpear o príncipe, o súdito rebelde ficou possuído por um estranho horror ao contemplar na face daquele que somente lhe fizera o bem, o torpor da morte. Procurava não recordar o passado, mas, irresistente, sentia ser arrastado aos dias de sua feliz inocência em Salém. Revestido de ricas vestes estava sempre ao lado do príncipe que, com dedicação, ensinava-lhe a cada dia suas canções que falavam de paz. Nas indesejadas lembranças pelas quais era arrastado, reviveu seus primeiros passos no caminho do orgulho e do egoísmo.

Lembrou-se dos incessantes conselhos e rogos daquele que fora seu melhor amigo, para que desistisse daquele caminho que poderia conduzi-lo à infelicidade. Depois de ser arrastado em lembranças por todo aquele passado de felicidade destruída por sua culpa, Samael teve consciência de sua ingratidão. Horrorizado pelo que fizera, curvou-se sobre o corpo ensangüentado de Melquisedeque, e desesperou-se ao vê-lo sem vida. Não suportando o peso da grande culpa, deixou às pressas aquele lugar, desejando ocultar-se distante, sob as trevas da fria noite. 

Depois de um profundo desmaio, o príncipe começou a voltar à consciência; Em delírios que o transportavam ao seio de sua amada Salém, ele revivia momentos vividos e sonhados: Com alegria contemplava a face de seu maior amigo, para quem estendeu a mão com um sorriso. Mas seu gesto foi frustrado por uma profunda dor. Em meio aos aplausos dos súditos vitoriosos, recebe de seu pai o cetro, mas ao tocá-lo, sente uma irresistível dor em suas mãos. Com esses sonhos frustrados pela dor, Melquisedeque despertou para a realidade. Estava nu, ferido e solitário, em um lugar perigoso, longe do abrigo e carinho de Salém. Mais doloroso era pensar que tudo aquilo fora a retribuição de alguém que fora o alvo principal de todas as dádivas de seu amor.

O príncipe, sem poder mover-se, considerando a grande traição passou a chorar sem consolo. Lamentava não por sua dor, mas pela perdição daqueles que haviam trocado o carinho e a justiça de Salém pelo desprezo e ódio que os reduziriam finalmente a cinzas sobre aquele vale condenado. Através das lágrimas, o príncipe contemplava o céu que, semelhante a um manto tinto de sangue, estendia-se banhado na luz do sol poente. Lembrou-se então do alaúde pelo qual pagara tão alto preço. Onde estaria ele? Em sua desesperada fuga, Samael deixara o cetro abandonado junto ao corpo ferido de Melquisedeque. Quando ele o viu, esqueceu-se de toda a dor, e abraçou-o com suas mãos feridas. Acariciando-lhe o bojo arruinado, disse-lhe com um sorriso: - Você é meu novamente. Eu o comprei com o meu sangue". Samael que, dominado pelo estranho horror, fugira após cometer o horrível crime, deteve-se a um passo do portão de Sodoma. 

Ali, impulsionado pelo orgulho, arrependeu-se com indignação de sua fraqueza. Por que fugira depois de conquistar tão grande vitória? Não era seu plano destruir o reino de Salém, para estabelecer seu próprio reino? Lembrando-se do cetro, decidiu retornar para tomá-lo. Por que o deixara abandonado junto ao cadáver daquele odiado príncipe? Reunindo suas poucas forças, Melquisedeque dirigiu-se tropegamente ao lugar em que deixara suas vestes. 

Depois de vestir-se, tendo junto ao peito o cetro amado, o filho de Adonias, com profunda emoção fez um juramento antes de deixar aquele lugar de seu sofrimento. Acariciando o cetro diz-lhe: - Meu querido cetro, você foi criado como um emblema da harmonia que procede da justiça e do amor. Toda a glória de Salém repousava sobre você quando a rebeldia em sua ingratidão escravizou-o, arrastando-o para este vale hostil. Aqui você foi ferido e humilhado, vindo a tornar-se um instrumento de impiedade nas mãos do tirano. Eu, porém, o redimi com o meu sangue. Agora nossas feridas serão restauradas, e em breve seremos entronizados em meio aos louvores de uma Salém vitoriosa. Quando esse sonho se concretizar, testemunharemos juntos o fim daqueles que se levantaram contra nós para nos ferir. Samael e seus seguidores serão devorados pelo fogo que reduzirá às cinzas Sodoma e Gomorra. Concluindo seu solene juramento ,o jovem príncipe, já oculto pelas trevas da noite e deixou aquela colina, e sobre ela as marcas de seu sofrimento.

Desde que o filho do rei partira, prometendo retornar com o cetro, Salém vivia momentos de indizível anseio. Em pranto, o rei e os súditos remanescentes lembravam-se de todo aquele feliz passado desfeito pela ingratidão dos rebeldes. O que mais lhes torturava era a ausência do príncipe e do cetro, sem os quais todo o brilho daquele reino de paz se ofuscaria. Desejando consolar o coração de seus súditos, Melquisedeque avançava em meio à noite rumo aos montes que cercavam Salém. Ainda que enfraquecido e ferido, prosseguia em sua marcha ascendente, esperando alcançar sua pátria pela manhã. Aquela longa e escura noite foi finalmente vencida pelos raios do alvorecer. 

Em Salém a esperança em rever Melquisedeque com o seu cetro estava quase banida quando, ao olharem para o Monte das Oliveiras, viram-no descendo pelo caminho do Getsêmani.

Quando o encontraram no profundo vale de Cedrom, ficaram assustados com sua aparência: sua face estava pálida e seu manto encharcado de sangue. Mesmo assim, ele sorria expressando grande alegria. Ao perguntarem-no sobre o porque daquelas marcas de sangue, Melquisedeque retirou de sob o manto suas mãos feridas, revelando-lhes entre elas o cetro redimido.

Depois de contar-lhes os passos que o levaram ao resgate do cetro, os súditos, emudecidos, prostraram-se reverentes aos seus pés, aclamando-o como seu redentor e rei. Em meio aos louvores das hostes redimidas, o príncipe foi introduzido no palácio real, onde sob os cuidados de seu amoroso pai, deveria restabelecer-se de seu sofrimento. O cetro desfigurado, agora mais precioso, seria também restaurado, devendo tornar-se mais belo que antes. O dia da coroação foi fixado para o próximo Yom Kipur. Naquele dia, Melquisedeque selaria com o cetro restaurado o triunfo de todos os fiéis, bem como a condenação dos rebeldes. 

A História de Salém 

Capitulo X 

Poucos instantes após a saída de Melquisedeque, Samael chegara ao local onde o deixara aparentemente sem vida, ao lado do alaúde. 

Sem entender aquele misterioso desaparecimento, ele prosseguiu para Gomorra, onde seus seguidores o esperavam. a Ao vê-los, proclamou sua "vitória" sobre o odiado príncipe e sobre o cetro, os quais massacrara em Sodoma, não restando aos seguidores do pergaminho nenhuma esperança. 

Suas palavras agradaram a turba rebelde, que passou a comemorar a "conquista" entregando-se à orgia. Zombavam agora da justiça e do amor, exaltando a Samael como rei vitorioso. Obteriam agora armas, com o propósito de avançarem sobre Salém, desferindo-lhe o último golpe; Juntaram-se a eles em seu maléfico propósito, muitos criminosos que foram recebidos como mestres no manejo de arcos e flechas. 

Em sua loucura, Samael ordenou o banimento de todo calendário, pois em seu reino de "liberdade" não estariam sujeitos a nenhum cômputo de tempo. As leis da moralidade foram também banidas, surgindo com isso um completo caos. Essa desordem, revelou-se de maneira mais patente no barulho estridente e cacofônico, ao qual proclamaram como a nova música. Dominados pelo egoísmo, Samael e seus seguidores alimentavam-se de ilusões, inconscientes de que seus dias estavam contados. Os frutos da rebelião não tardariam em atrair sobre eles o fogo da destruição. Dividindo seus seguidores em pequenos grupos, Samael passou a comandá-los em atos violentos que aterrorizavam os moradores das planícies; Por esse tempo, eles escondiam-se nas cavernas situadas próximas ao mar salgado.

O respeito e o medo dos guerrilheiros de Samael, levou finalmente os reis de quatro cidades a procurarem-no, propondo alianças de paz. Eram eles: Bara, rei de Sodoma, Bersa, rei de Gomorra, Senaab, rei de Adama, Semeber, rei de Seboim e Segor, o rei de Bela. Por essa época, esses reis pagavam tributos a Cordolaomor, rei de Elam que, acompanhado pelos exércitos de quatro outras cidades, os haviam subjugado no vale de Sidim junto ao mar salgado. Fortalecido pelas alianças, Samael tornou-se mais ousado em suas investidas, levando o terror e a destruição aos territórios de cidades distantes. Os exércitos de Cordolaomor e seus aliados que retornavam nesses dias de outras conquistas, enfurecidos pelas provocações de Samael, marcharam contra os quatro reis, vencendo-os novamente no vale de Sidim. Foi nessa ocasião que levaram cativos os habitantes de Sodoma, entre os quais encontrava-se o meu sobrinho Ló.

Acovardados diante do furor dos cinco reis, Samael e seus seguidores esconderamse em suas cavernas, ao norte do mar salgado A História de Salém Capitulo XI Os doze meses contados a partir do grande sacrifício estavam prestes a terminar. O cetro, totalmente restaurado, resplandecia em seu estojo, enquanto o príncipe, igualmente restabelecido das feridas causadas pela rebeldia, alegrava-se ao ver chegar o Yom Kipur de sua coroação. 

Enquanto isso, ele compunha lindas canções que expressavam o seu amor por Salém. Naqueles doze meses, a cidade da paz tornara-se mais bela, sendo adornada qual noiva para o grandioso dia da coroação. À uma semana para o Yom Kipur, Samael, totalmente inconsciente de que o dia de seu julgamento se aproximava, reuniu os seus seguidores, anunciando-lhes que a próxima missão seria a conquista de Salém.

Antes de avançarem, contudo, ele subiria sozinho para verificar os pontos vulneráveis da cidade. Depois de ser aplaudido pela turba, Samael partiu em sua missão de reconhecimento. Enquanto avançava sozinho, procurava não lembrar-se daqueles momentos que trouxeram-lhe terror pela culpa, mas, dominado por uma força superior, foi arrastado em suas lembranças para aquele monte da cruel tortura. Todo o seu passado começou a vir-lhe à lembrança, como um peso esmagador. Quando despertou-se de suas lembranças das quais não conseguiu fugir, já era noite.

A escuridão que o envolvia pareceu-lhe o prenúncio de um triste fim. Esse desânimo, contudo, procurou bani-lo com a lembrança do exército que o esperava, pronto para cumprir suas ordens, na conquista de Salém, onde não haveria lembranças daquele pergaminho. 

O alvorecer o alcançou próximo de Salém. Ao avistar o monte das Oliveiras, veiolhe à lembrança a última vez que o transpôs, deixando para trás a cidade vencida. Quantas noites haviam passado desde então? Ele perdera a noção de tempo, não sabendo que justamente doze meses haviam se passado. Não podia imaginar que, raiava naquela manhã o Yom Kipur, o dia de seu julgamento. Ao chegar ao topo do monte das Oliveiras naquela manhã, Samael surpreendeu-se ao ver que a cidade tornara-se mais bonita que outrora; Toda ela estava adornada de ramos e flores, como uma donzela à espera de seu noivo.

Contudo, Salém estava abandonada, não havendo nenhum sinal de vida em todas as suas mansões. Isto o fez concluir que os golpes que haviam aniquilado o príncipe e o cetro, trouxeram como conseqüência todo aquele abandono. Ele não sabia, contudo, que naquele momento todos os remanescentes daquele reino, encontravam-se ocultos no grande salão do palácio, aguardando pelo momento mais glorioso, da coroação de Melquisedeque.

Imaginando-se exaltado sobre o trono abandonado, tendo a seus pés os exércitos vitoriosos, o rebelde penetrou na cidade, dirigindo-se apressadamente ao palácio. Ao transpor o portal principal que dá entrada ao salão principal, ficou surpreso ao ver ali reunidos uma multidão de fiéis. Sobre um áureo tablado, enfeitado de flores talhadas em pedras preciosas, encontra-se o trono vazio. Na base do trono estava o pergaminho das leis, uma coroa de ouro cheia de pedras preciosas e o estojo que deixara vazio naquela noite de traição. Sem entender o enigma, Samael escondeuse por trás de uma coluna, temendo ser reconhecido, e ficou observando. Os súditos, com expressão de feliz expectativa olhavam para o trono vazio. Onde encontravam eles motivos para toda essa alegria, se haviam perdido o seu rei juntamente com o cetro? Samael questionava sobre esse mistério, quando Adonias, aplaudido pelos súditos, encaminhou-se para junto do trono.

Com voz cheia de emoção pela vitória, o fundador de Salém anunciou que havia chegado o momento tão sonhado da coroação. Um brado de triunfo ecoou pelos ares quando, anunciado pelo seu pai, entrou o amado príncipe encaminhando-se em direção do trono. Ao vê-lo coberto por um manto de glória, Samael ficou possuído por um terrível pavor, e procurou fugir. Descobriu, contudo, que todos os portais do grande salão estavam fechados por fora. Teve início a cerimônia da coroação. Era um momento deveras solene. Adonias, num gesto reverente, tomou a rica coroa, colocando-a na fronte de seu filho. Prostrando-se depois sobre o estojo, abriu-o cuidadosamente, tirando dele o alaúde restaurado, cuja beleza e brilho eram muito superiores à sua primeira condição, ao sair das mãos de Adonias o seu luthier.

Assentando-se no trono em meio às aclamações dos súditos, Melquisedeque passou a dedilhar o cetro, tirando dele acordes de muita harmonia e paz. Todos se aquietaram para ouvirem suas novas composições que expressavam o seu profundo amor pelo cetro e por todo aquele reino de paz. Grande emoção invadia o coração de todos naquele momento, levando-os às lágrimas. Samael, sem forças para reagir, sentia-se torturado por aqueles acordes que torturavam faziam reviver em sua mente suas oportunidades perdidas, numa terrível tortura para sua consciência.

Melquisedeque compusera para aquele momento especial, canções que retratavam os momentos mais marcantes da história de Salém; Quando passou a cantar sobre a amizade que tinha por Samael, sua voz embargava-se pelas lágrimas que não conseguia conter. Triste para ele era cantar sobre a queda daquele que era-lhe o maior amigo! Cantou então sobre o alto preço que teve de pagar pela reconquista do cetro, que representa a honra de Salém. 

Ao contemplarem aquelas mãos marcadas pelas cicatrizes, tocando com tanta maestria e carinho o cetro restaurado, os súditos tomados por forte emoção, prostraram-se em pranto. Ao ver nas nãos de Melquisedeque aquele alaúde que, em suas mãos fora instrumento de tortura, Samael compreendeu, tarde demais o quanto errara, desviando-se dos conselhos do príncipe; Quantas vezes aquelas mãos sobre as quais descarregara toda aquela violência haviam sido estendidas num esforço de salvá-lo, e ele as havia negligenciado. Agora, era tarde demais! Tarde demais!!! 

A História de Salém 

Capitulo XII 

Os súditos triunfantes que, reverentes, haviam sido conduzidos a todo aquele passado de felicidade, traição, dor e triunfo, uniram finalmente as vozes numa jubilosa proclamação: Verdadeiros e justos são os teus princípios, ó rei de Salém. Digno és de reinar em glória e majestade entre os louvores de teus fiéis, porque em teu sacrifício nos livraste das ameaças das trevas, fazendo renascer em nosso coração a alegria do alvorecer. Esse cântico de exaltação foi seguido pela cerimônia de confirmação de todos os fiéis em sua vitória. O filho de Adonias, com o seu cetro redimido, passou a selar com um toque especial do cetro, a vitória de cada um. Formou-se para tanto uma longa fila de fiéis exultantes. Os súditos confirmados, à medida em que iam recebendo o toque de aprovação do rei, posicionavam-se ao lado direito do trono, onde permaneciam aguardando pela confirmação dos outros.

Os olhares que, iluminados de alegria, haviam acompanhado o selamento dos últimos justos, pousaram sobre a figura estranha de Samael que, dominado por uma força irresistível, encaminhava-se cabisbaixo em direção do trono. Seu aspecto era horrível: seu semblante havia sido deformado pelo mal; suas vestes estavam sujas e mal cheirosas; tudo nele repugnava, ao ponto de ninguém reconhecê-lo. 

Em meio ao espanto dos súditos, Melquisedeque ergueu-se de seu trono como que ferido por uma grande dor; De seus lábios os súditos ouvem uma dolorosa exclamação: - Samael, Samael!!! A figura deplorável daquele que fora tão belo, encheu a todos de tristeza, e começaram a prantear. Eles lamentavam por saber que o destino de Samael e de todos aqueles que o seguiram, poderia ter sido muito diferente, se eles houvessem atendido aos rogos de amor de Adonias e de seu filho. Não era o plano do rei e o sonho de Melquisedeque tê-lo como o guardião do pergaminho, sendo o segundo em honra naquele reino? Samael que, reconhecendo sua desventura, aproximara-se cabisbaixo do trono, ao presenciar toda aquela lamentação, é novamente iludido pelo orgulho, julgando tratar-se de uma demonstração de fraqueza de seus inimigos. A lembrança de seu exército que fortalecido o aguarda na planície, ilude-o com a certeza de que será vitorioso sobre Salém.

Com esse pensamento, ergue a fronte marcada pelo ódio e, fitando o rei, levanta o punho cerrado e o desafia, desdenhando de sua autoridade, com a ameaça de tomar-lhe o trono. Ainda que condoídos por sua perdição, os súditos de Salém não suportaram a ousada afronta daquele enlouquecido jovem que, depois de causar tanto sofrimento, ainda era capaz de erguer-se com tamanho desafio. O vitorioso rei que com tanto prazer selara com o seu cetro a conquista dos fiéis, ergueu-o dolorosamente para o selamento da triste sorte dos rebeldes. 

Imobilizado por uma força estranha, Samael, sem desviar os olhos do cetro, ouviu dos lábios do rei a proclamação de seu julgamento e de todos os seguidores: Prisioneiros de uma força invisível, ficariam retidos em suas cavernas por seis anos, sendo depois visitados pelo fogo do juízo que os destruiria juntamente com as cidades que a eles se aliaram. 

A História de Salém 

Capitulo XIII 

Ao ir para a cama depois daquele dia de tantas emoções, o jovem rei, imerso nas lembranças daquele passado de felicidade e dor, rolava em sua cama insone. 

Quando finalmente adormeceu, teve um sonho muito significativo. No sonho, apareceu-lhe um anjo luminoso, que saudou-o com um sorriso, dizendolhe que todo o Universo acompanhava com atenção todo aquele drama que estavam vivendo, que o mesmo tinha um sentido prefigurativo, retratando acontecimentos passados e futuros, que envolvia todo o vasto universo. As palavras do anjo despertaram em Melquisedeque um grande desejo de conhecer a história desse drama cósmico. Conhecendo o seu anseio, o anjo arrebatou-o no sonho revelando-lhe um distante futuro. 

Diante de seus olhos manifestaram-se as glórias de uma nova e esplêndida Salém, cujas muralhas e mansões eram feitas de pedras preciosas; Os portais da cidade eram de pérolas. Suas amplas avenidas eram de ouro puro. A cidade era quadrangular e se estendia por centenas de quilômetros. Estava dividida em dois setores distintos: Norte e Sul. Ao Sul elevavam-se incontáveis mansões, habitações eternas de anjos e de seres humanos redimidos; Ao Norte havia um lindo paraíso ao qual o anjo revelou ser o jardim do Éden. 

Ali, em ambas as margens do rio da vida, havia campos repletos de todo tipo de vegetação, com flores e frutos em abundância. Viviam ali em perfeita harmonia, todas as espécies de insetos, aves e animais. No meio do paraíso podia-se ver uma montanha fulgurante, a qual o anjo afirmou ser o monte Sião, o lugar do trono de Deus. Era daquele monte que emanava o rio da vida, fluindo por toda a cidade. Quando alcançaram o topo da montanha sagrada, o rei de Salém ficou deslumbrado com o cenário visto ao seu redor.

Encontrava-se na parte mais elevada de Sião a mais linda de todas as edificações revelado pelo anjo como o palácio de Deus. Aquela magnífica construção era sustentada por sete colunas, todas de ouro transparente, engastadas de lindas pérolas.

Ao redor do palácio, floresciam a mais exuberante vegetação: havia ali o pinheiro, o cipreste, a oliveira, a murta, a romãzeira e a figueira, curvada ao peso de seus figos maduros. Enquanto admirava-se ante a beleza daquele lugar, o anjo disse-lhe que a nenhum ser humano fora dado o privilégio de ver o interior daquele palácio de Deus. A ele seria dada esta honra, pois fora escolhido para ser o portador das mais amplas revelações sobre o reino da luz. 

Ao transporem com reverência um dos portais de pérolas, prostraram-se em adoração, enquanto ouviam o cântico de uma multidão de serafins, que circundavam o trono, em constante louvor Àquele que Era, que É e que Sempre Será. Ao olhar para Aquele que estava assentado sobre o trono, Melquisedeque ficou surpreso ao descobrir a figura de um homem. Ele estava coberto por um manto de linho fino, de uma alvura sem igual, e tinha sobre a cabeça uma coroa formada por sete coroas sobrepostas, repletas de pedras preciosas. 

Ao olhar para as mãos que sustentavam o cetro, o filho de Adonias ficou surpreso ao descobrir nelas cicatrizes de ferimentos, semelhantes àquelas em suas mãos. O anjo afirmou-lhe ser o Messias, a manifestação visível de Yahwéh, o Deus Invisível. Atraído para o cetro resplandecente, com o qual o Messias governava sobre todo o Universo, o rei de Salém viu nele o selo do domínio, e nele escrito o nome: Israel. 

Tomado por profunda emoção, Melquisedeque prostrou-se ante o Rei daquela eterna Salém, e, revivendo ali a história de sua pequena cidade, teve desejo de conhecer o grande drama da história universal. 

Conhecendo o desejo de seu coração, o anjo disse-lhe: - Agora lhe farei conhecer a história desta gloriosa Salém. Tudo o que lhe for mostrado na visão, você deverá registrar fielmente em seis pergaminhos que serão costurados um ao outro, formando um único rolo. Você terá seis anos para escrevêlos. Ao fim dos sete anos, você receberá das mãos de um ancião um vaso contendo um rolo especial, com muitas revelações importantes, destacando-se a história de Salém. Você tomará esse rolo, e o costurará como o primeiro dos sete, formando um único rolo. Depois de selá-lo, você e o ancião o guardarão no vaso, levando-o para uma caverna que eu lhes mostrarei ao norte do mar salgado, onde permanecerá esquecido até que chegue os últimos dias, quando será resgatado e revelado ao mundo por meio de um pequeno beduíno. Depois de falar ao rei de Salém estas palavras, o anjo conduziu-o em visão a um infinito passado, quando o Universo ainda não existia. 

Uma história muito parecida com a de Salém passou a desdobrar-se diante de seus olhos; porém, numa dimensão infinitamente maior, começando pela criação do reino da luz.Com admiração contemplou a formação de bilhões de mundos e estrelas, repletos de vida e felicidade que passaram a girar em torno da Salém Celeste, o paraíso de Deus. Sua atenção voltou-se depois para o mais belo de todos os querubins que, honrado pelo Criador, passou a residir com Ele em Seu palácio. 

Uma eternidade de felicidade e paz parecia embalar aquele reino, quando a mesma experiência de egoísmo e rebeldia vivida por Samael, começou a repetir-se na vida daquele anjo amado. Cenas de uma grande rebelião começaram a ser mostradas a Melquisedeque, envolvendo todos os habitantes do Universo. O querubim honrado, semelhante a Samael, seduzira um terço das hostes que, passaram a reverenciá-lo como rei. 

Em meio às cenas daquele grande conflito, o rei de Salém testemunhou a criação do planeta Terra, sobre a qual surgiu o homem como cetro racional daquele reino disputado. Com agonia viu o momento em que o chefe da rebelião aproximou-se sutilmente do paraíso, apossando-se do ser humano, depois de seduzi-lo com tentações. Ouviu então o seu brado, numa proclamação de vitória. 

A partir daquele momento, o inimigo de Deus passou a arruinar o ser humano, apagando nele todos os traços da glória divina, como Samael fizera com o cetro. A sua própria experiência, ao declarar naquela manhã aos súditos de Salém sua decisão de ir em busca do cetro perdido, começou a repetir-se diante de Seus olhos. Reunindo as hostes que haviam permanecido fiéis ao Seu governo, o Criador passou a revelar um plano de resgate: Ele haveria de ir em busca do homem, e o remiria, ainda que isto lhe custasse infinito sacrifício. Diante desta revelação, o filho de Adonias prostrou-se comovido, ao descobrir que em sua vida tivera a honra de retratara o próprio Messias. 

Todo o drama vivido pelo filho de Adonias em sua angustiante busca, até o momento de seu suplício pela redenção do cetro, foi ganhando amplitude naquela visão que abarcava toda uma eternidade. Diante de seus olhos desfilavam cenas de uma grande batalha que, sem trégua se estenderia até o dia do juízo final, quando o Messias vitorioso empunhará o cetro redimido, selando com ele a condenação de todas as hostes rebeldes. 

A História de Salém 

Capitulo XIV 

Através das revelações recebidas do anjo, Melquisedeque tomou conhecimento do grande livramento alcançado dez dias antes de sua coroação, em Rosh Hashaná, quando diante de trezentos pastores com seus vasos incendiados, exércitos de cinco reis tombaram, saindo livres os cativos.

Conhecendo nossa intenção de subir à Salém por ocasião de Sukot, o rei fez preparativos para uma grande festa, na qual comemoraríamos juntos a vitória sobre toda a desarmonia gerada pelo orgulho e pelo egoísmo. Foi por isso que ao chegarmos a Salém, ficamos surpresos com toda aquela honrada recepção. Ocupar-me com o relato de todos esses acontecimentos, fez-me passar por todo este sétimo ano, quase sem notar os seus dias, que passaram velozes. Estamos hoje às portas de um novo Rosh Hashanah, quando os 300 pastores tocarão os chifres, convocando todos aqueles que possuem as pérolas, para a reunião solene de Yom Kipur. Cinco dias depois seremos recebidos em Salém para a festa de Sukot. 

A certeza de que acontecimentos importantes ainda deverão ser relatados até o momento em que o vaso será deixado na caverna, fez-me reservar um espaço no rolo, no qual registrarei, dia após dia, os fatos, até a consumação desta história. Hoje é Rosh Hashaná, o dia mais feliz de minha vida, pois meus braços puderam envolver finalmente o filho da promessa. A primeira coisa que Sara fez ao recebêlo, foi colocar-lhe em sua mãozinha direita a segunda pérola que o Messias lhe dera no dia de sua conversão, na qual estava escrito nome Isaque que significa "riso", o nome de Melquisedeque e o nome de Salém. Dois dias antes do Yom Kipur, Isaque foi circuncidado, conforme a ordem de Yahwéh. Desde que os pastores começaram a tocar seus chifres em Rosh Hashanah, todos aqueles que possuíam pérolas do vaso, deixaram suas tendas, dirigindo-se em pequenos grupos, para junto do Carvalho de Mambré. 

Ao chegar o Yom Kipur, o dia da reunião solene, meus pastores informaram-me que todos que aqueles que haviam recebido pérolas, haviam comparecido ao encontro, não faltando nenhuma pessoa. Era maravilhoso ver a alegria estampada no semblante de toda aquela multidão, que ansiava pela subida à Salém. Todos tinham uma história para contar, de como foram mal compreendidos e humilhados por aqueles que não receberam a salvação representada pelas pérolas. 

O único consolo que tinham naquele tempo, vinha da certeza de que subiriam a Salém para a festa de Sukot. No primeiro dia da festa de Sukot, a multidão foi subdividida pequenos grupos de doze pessoas, para subirmos em ordem à Salém. Tendo o vaso com o rolo em minhas costas, posicionei-me à frente da multidão, sendo seguido por Sara e Isaque, que vinham montados num camelo. Logo atrás vinha Ló e suas filhas; um pouco atrás, os trezentos pastores seguidos por todos os fiéis. Iniciávamos nossa escalada quando, acompanhado por todos os seus súditos, surgiu Melquisedeque vindo ao nosso encontro, fazendo vibrar pelos ares o som festivo de muitos instrumentos musicais, comemorando a grande vitória. 

Depois de saudar-nos, o filho de Adonias conduziu-nos numa marcha festiva até adentrarmos os portais de Salém, que encontra-se agora mais bonita que outrora. Diante do trono, todos os remidos foram coroados por Melquisedeque,começando em seguida o grande banquete. Grande foi a alegria do rei de Salém quando entreguei-lhe o vaso com o meu manuscrito. Levando-me para uma sala especial do palácio, ele mostrou-me os seis manuscritos nos quais registrara a história do Universo, segundo fora-lhe mostrada em sonho. Ao receber o meu manuscrito, ele o costurou aos demais, vindo a ser o primeiro do grande rolo. No último dia da festa de Sukot, o rolo foi aberto diante de toda a multidão de fiéis.

 Depois de ler uma boa parte do meu manuscrito, o filho de Adonias, tomando em seus braços o pequeno Isaque, afirmou: - Na descendência desta criança haverá de cumprir-se todas as coisas escritas neste manuscrito. Tendo dito isto, o rei o abençoou, devolvendo-o à Sara. Depois de abençoar Isaque, Melquisedeque passou a falar sobre o futuro do rolo que permaneceria por quase quatro milênios ocultos em uma caverna, sendo finalmente encontrado por um beduíno da tribo de Taamireh. 

Ao sair de sua caverna, o rolo enfrentaria a oposição de muitos eruditos que o declarariam apócrifo. Viria, contudo, o momento, em que suas revelações seriam confirmadas, e muitos seriam transformados pelas suas mensagens, preparando-se para o dia do juízo final.

http://www.mucheroni.hpg.com.br/

Libertários e conservadores: uni-vos... Parte 2, final e mais importante

  Por Murray Rothbard

Podemos ver como os regentes do estado se beneficiam dessa sua aliança com os intelectuais; mas o que os intelectuais ganham com esse arranjo?  Intelectuais são pessoas que acreditam que, em um livre mercado, auferem uma renda muito aquém de sua sabedoria.  Para se aproveitar disso, o estado, para favorecer estes egos tipicamente hiperinflados, está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios.  O estado está disposto a pagar a esta gente tanto para tecerem apologias ao poder estatal quanto para preencher a miríade de postos de trabalho nas universidades, na burocracia e no aparato regulatório do estado.  Com efeito, o estado democrático moderno criou uma maciça superabundância de intelectuais.

Em séculos passados, as igrejas formavam a classe exclusiva de formadores de opinião da sociedade.  Daí a importância para o estado e seus burocratas de formar uma aliança entre o estado e a igreja, e daí a importância para libertários da separação entre estado e igreja, o que na prática significa não permitir que o estado conceda a um grupo o monopólio da tarefa de moldar as opiniões da sociedade.  No século XX, obviamente, a igreja foi substituída, e o papel de moldar opiniões — ou, naquela adorável frase, de "fabricar o consentimento" — foi entregue a um enxame de intelectuais, acadêmicos, cientistas sociais, tecnocratas, cientistas políticos, assistentes sociais, jornalistas e a toda a mídia em geral. 

Portanto, para resumir o problema: na social-democracia, as elites dominantes — políticos, burocratas e grandes empresários — se uniram aos intelectuais e à mídia, e, com o apoio e o trabalho destes, conseguiram iludir e confundir as massas, doutrinando-as com uma "falsa consciência", como diriam os marxistas, fazendo-as aceitar passiva e alegremente seu domínio.  Aquilo que em arranjos mais honestos seria visto como espoliação e exploração, na social-democracia é visto como "bem comum", "desenvolvimentismo" e "justiça social".

Sendo assim, o que nós, da oposição libertária e conservadora, podemos fazer a respeito? 

Uma estratégia endêmica aos libertários e aos liberais clássicos é aquela que pode ser chamada de modelo hayekiano, em homenagem a F.A. Hayek.  Eu chamo de "educacionismo".  Ideias, segundo este modelo, são cruciais; e ideias perpassam toda uma hierarquia, começando com os filósofos do alto escalão, de onde descem para os filósofos menos proeminentes, depois para os acadêmicos, e finalmente chegam aos jornalistas e políticos, de onde então atingem as massas.  Por essa estratégia, o que deve ser feito é converter os filósofos do alto escalão para as ideias corretas.  Ato contínuo, eles irão converter os outros filósofos menos proeminentes, e daí por diante, em uma espécie de "efeito-goteira", até que as massas inevitavelmente serão convertidas e a liberdade será finalmente alcançada.

O problema com essa estratégia do gotejamento é que ela é muito suave e refinada, dependente de mediações e persuasões serenas nos austeros corredores da intelectualidade.  Essa estratégia combina bem com a personalidade de Hayek, que nunca foi exatamente um combatente intelectual agressivo.

É claro que ideias e persuasão são importantes, mas há várias falhas cruciais nesta estratégia hayekiana.  Em primeiro lugar, obviamente, essa estratégia irá, na melhor das hipóteses, levar várias centenas de anos para surgir algum efeito, e muitos de nós estamos um tanto impacientes para isso.  Mas o tempo não é de modo algum o único problema.  Várias pessoas já observaram os misteriosos bloqueios neste gotejamento feitos pela mídia.  Por exemplo, vários cientistas sérios têm uma visão bem distinta a respeito das questões ambientalistas que hoje estão em voga; no entanto, são sempre os mesmos histéricos de esquerda que são exclusivamente citados nas reportagens da mídia.  O mesmo ocorre às enfadonhas abordagens sobre racismo, homofobia e "direitos das minorias".  Sendo assim, por que esperar que uma mídia que invariavelmente distorce as coisas para o lado politicamente correto irá repentinamente vir para o lado da razão?  Já está cristalino que a mídia, principalmente a 'mídia respeitável e influenciável', possui e sempre terá uma forte inclinação progressista.

De modo geral, o modelo hayekiano do gotejamento ignora um ponto crucial: o fato de que — e eu espero não estar retirando seu prazer de viver — intelectuais, acadêmicos e a mídia não são exatamente motivados pela verdade.  É verdade que as classes intelectuais podem fazer parte da solução, mas elas também são uma grande parte do problema.  Como vimos, os intelectuais fazem parte da classe dominante, e seus interesses econômicos, bem como seus interesses em termos de prestígio, poder e admiração dependem inteiramente da continuidade do atual sistema social-democrata.

Outra estratégia é aquela comumente perseguida por vários institutos conservadores e liberais: a persuasão silenciosa feita diretamente nos corredores do poder, sem passar pela comunidade acadêmica.  Tal estratégia é chamada de estratégia fabiana, e os institutos saem divulgando relatórios pedindo uma redução de 5 pontos percentuais na alíquota de importação e de 2 pontos percentuais na alíquota do imposto de renda, além de uma pequena redução das regulamentações e da burocracia.  Os defensores dessa estratégia apontam para o sucesso da sociedade fabiana, a qual, por meio de suas detalhadas pesquisas empíricas, suavemente submeteu o estado britânico a um gradual crescimento do poder socialista.

O defeito desta estratégia, no entanto, está no fato de que aquilo que funciona para aumentar o poder estatal não funciona para fazer o inverso.  Afinal, os fabianos estavam estimulando as elites dominantes a aumentar seu poder, que era exatamente o que elas queriam.  Por outro lado, tentar encolher o estado vai fortemente contra sua natureza, e o resultado mais provável é que o estado acabe cooptando e 'fabianizando' os institutos que tentem reduzir seu poder.  Esse tipo de estratégia pode, é claro, ser pessoalmente muito agradável para os membros desses institutos, e pode acabar garantindo alguns contratos lucrativos ou até mesmo alguns confortáveis empregos na máquina pública para essas pessoas.  E esse é exatamente o problema.

Portanto, além de se esforçar para converter os intelectuais para a nossa causa, a ação mais adequada a ser empreendida por uma coalizão entre conservadores e libertários tem necessariamente de ser uma estratégia baseada na confrontação, na coragem e na ousadia.  Uma estratégia que gere dinamismo e entusiasmo; uma estratégia que agite as massas, que as desperte de sua letargia e que exponha as elites arrogantes que estão nos subjugando, nos controlando, nos tributando e nos espoliando.

Logo, a estratégia adequada tem de se basear naquilo que chamo de "populismo liberal": um movimento intelectual empolgante, dinâmico, tenaz, obstinado e confrontador; um movimento que continuamente desafie e chame para o debate público os principais quadros da social-democracia, para expô-los pelo que realmente são; um movimento que desperte e inspire não apenas as massas exploradas, mas também todos os poucos quadros intelectuais da direita.  Nesta era em que as elites intelectuais são todas social-democratas e hostis a uma genuína direita, é necessário um movimento carismático e dinâmico, cujos membros tenham a habilidade de contornar a mídia e saibam se comunicar diretamente com as massas exploradas que dão sustentação ao regime.

Conclusão

Em todas as questões cruciais, os social-democratas se opõem à liberdade e à tradição, posicionando-se sempre a favor do estado interventor, regulador e controlador.  No longo prazo, social-democratas são mais perigosos do que comunistas, e não apenas porque eles são mais resistentes e protegidos, mas também porque seu programa e seu apelo retórico são muito mais insidiosos, dado que eles sabem combinar o charme das ideias socialistas com as atraentes "virtudes" da democracia, tudo cuidadosamente envolto em uma linguagem politicamente correta que promete liberdade de expressão e proteção aos credenciados membros de todos os tipos de grupos vitimológicos, aquela gente que se diz perseguida e que vive lutando por "direitos iguais" — sendo que o 'iguais' significa na verdade 'superiores'. 

democracia.jpg
R$19,90
Por muito tempo, os social-democratas obstinadamente se recusaram a aceitar a lição libertária de que liberdades civis e econômicas são indissociáveis; porém, agora, mais maduros e experientes, eles polidamente fingem defender a existência de algum tipo de "mercado", desde que este seja devidamente tributado, regulado e restringido por um maciço estado interventor e assistencialista.  Em suma, há pouca distinção entre os atuais social-democratas e os antigos "socialistas de mercado" da década de 1930, que alegavam ter solucionado aquele defeito fatal do socialismo apontado por Ludwig von Mises: a impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo, que impedia que os planejadores socialistas calculassem preços e custos, impossibilitando-os de planejar uma economia moderna e funcional.

No arsenal coletivista que dominou o cenário mundial do século XX, havia vários programas estatistas concorrentes: dentre eles, o comunismo, o fascismo, o nazismo e a social-democracia.  Os nazistas e os fascistas estão mortos e enterrados; o comunismo ainda existe apenas em alguns países sem nenhuma importância.  Restou somente a mais insidiosa forma de estatismo: a social-democracia.  Em meio a uma cultura capturada por ideias progressistas e programas sociais esquerdistas, somente uma coalizão entre conservadores e libertários pode frustrar os planos dos social-democratas de alcançarem uma completa e irreversível tomada do poder.



autor

Murray N. Rothbard
(1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

domingo, 18 de abril de 2021

Libertários e conservadores: uni-vos... Parte 1

 Libertários e conservadores: uni-vos contra o verdadeiro inimigo

Embora haja algumas divergências pontuais, libertários e conservadores possuem, em termos gerais, o mesmo objetivo: reduzir o tamanho do estado e sua interferência na economia e na sociedade.  Conservadores e libertários moderados defendem um governo estritamente limitado à defesa dos direitos de propriedade.  Libertários mais radicais querem ir além e abolir todo o governo. 

Caso houvesse uma coalizão entre libertários e conservadores, haveria inevitáveis diferenças de opinião em relação aos meios e aos fins.  No entanto, todas estas diferenças podem ser reduzidas à seguinte questão: quanto do governo atual você estaria disposto a abolir?  Até que ponto você reverteria e encolheria o governo? 

Há outras diferenças mais filosóficas.  Alguns conservadores se consideram hobbesianos (tradicionalistas).  Alguns libertários se consideram lockeanos (defensores dos direitos naturais).  E ambos têm um quê de burkeanos (utilitaristas).  Há também divergências quanto ao arcabouço político: devemos ser monarquistas, federalistas ou radicais descentralizadores?

Não obstante essas indefinições, o fato é que, uma vez definido que o objetivo principal é encolher o estado, divergências pontuais sobre o que fazer após isso podem ser perfeitamente deixadas para depois.  Uma coalizão entre libertários e conservadores é essencial para a derrubada do principal inimigo da atualidade.  Qual é este inimigo que libertários e conservadores têm em comum?

Trata-se justamente daquele arranjo que ascendeu vigorosamente com a derrocada do comunismo, e que representa uma ameaça tanto às liberdades individuais e econômicas quanto à família e à tradição: a social-democracia. 

Não apenas a social-democracia, em todos os seus formatos e disfarces, é onipresente e já demonstrou ser mais longeva que o seu parente mais violento, o comunismo, como também os social-democratas — agora que Stalin e seus herdeiros estão fora do caminho — são implacáveis em sua avidez para a conquista do poder total.  Por serem defendidos pela "Mídia Respeitável" e por adornarem seus reais objetivos de poder absoluto em uma linguagem polida e politicamente correta, os social-democratas são inimigos traiçoeiros e lisos.  Exatamente por isso eles têm de ser combatidos vigorosamente — e o maior objetivo de uma coalizão entre conservadores e libertários é colocar um freio nesta gente.

Mas apenas apontar o dedo para a social-democracia não basta.  Uma coisa é reconhecer o arranjo inimigo; outra coisa, tão essencial quanto, é reconhecer os integrantes deste arranjo.

E esta é uma questão que não pode de modo algum ser deixada para depois.  Ao contrário, aliás: ela deve ser abordada antes de qualquer plano de ação.  Os marxistas, que sempre dedicaram uma enorme quantidade de tempo pensando em uma estratégia para seu movimento, sempre se fizeram a seguinte pergunta: quem é o agente da mudança social?  O marxismo clássico encontrou uma resposta fácil: o proletariado.  Porém, com o passar do tempo — e com a recusa do proletariado em ser este agente da mudança —, as coisas foram se tornando menos definidas, e o agente da mudança social passou por sucessivas alterações: camponeses, mulheres oprimidas, minorias, e todos os tipos de grupos vitimológicos (negros, feministas, gays, deficientes, índios, cegos, surdos, mudos etc) que aceitassem este papel.

Para nós, libertários e conservadores, a questão relevante está do outro lado da moeda: quem são os vilões que dão sustento à social-democracia?  Quem são os agentes das mudanças sociais negativas?  Mais ainda: quais grupos da sociedade representam as maiores ameaças para a liberdade?  Basicamente, sempre foram apresentadas duas respostas: (1) as massas que vivem do assistencialismo e que, por isso, são apologistas do estado; e (2) as elites que controlam o poder.

Ainda em minha juventude, concluí que o maior perigo sempre foi a elite dominante, e pelos seguintes motivos.

Em primeiro lugar, mesmo que as massas dependentes do estado assistencialista tenham o potencial para se rebelar de forma violenta e passar a agir como se seu sustento fosse um direito inalienável ("direito", no caso, nada mais é do que um dever impingido aos pagadores de impostos), o fato é que tais massas simplesmente não têm tempo para se dedicar à política e às peripécias e trapaças do jogo político.  O cidadão pertencente a este grupo passa a maior parte do seu tempo cuidando de seus afazeres rotineiros, interagindo com seus amigos e se divertindo com a família.  Apenas muito esporadicamente ele irá se interessar por política ou se engajar politicamente em uma causa.

As únicas pessoas que têm tempo para se dedicar à política são os profissionais: burocratas, políticos e grupos de interesse (como lobistas e grandes empresários) que dependem diretamente das regras estipuladas por políticos e burocratas.  Dado que tais pessoas ganham muito dinheiro com o jogo político — como, por exemplo, quando conseguem subsídios e protecionismos —, elas são intensamente interessadas no assunto, e dedicam vinte e quatro horas de seus dias pensando em novas maneiras de espoliar a população em benefício próprio.  Sendo assim, estes grupos de interesse sempre representarão um perigo muito maior para a nossa liberdade e propriedade do que as massas desinteressadas.

Esta foi a constatação básica dos seguidores da Escolha Pública.  Os únicos outros grupos interessados em política em tempo integral são aqueles que se interessam em estudar o assunto, ideólogos como nós, um segmento nada volumoso da população.  Portanto, o problema está tanto na elite que controla o aparato estatal quanto na elite cuja riqueza depende diretamente das políticas implantadas por este aparato estatal. 

Um segundo ponto crucial é que a social-democracia, com seu estado fiscalmente voraz e obeso, divide a sociedade em dois grupos: a elite dominante, que necessariamente é a minoria da população, e que é sustentada pelo segundo grupo — nós, o resto da população.  Neste quesito, sempre recomendo um dos mais brilhantes ensaios já escritos sobre filosofia política: Disquisition on Government, de John C. Calhoun.  Segundo Calhoun:

[O] inevitável resultado desta iníqua ação fiscal do governo será a divisão da sociedade em duas grandes classes: uma formada por aqueles que, na realidade, pagam os impostos — e, obviamente, arcam exclusivamente com o fardo de sustentar o governo —, e a outra formada por aqueles que recebem sua renda por meio do confisco da renda alheia, e que são, com efeito, sustentados pelo governo.  Em poucas palavras, o resultado será a divisão da sociedade em pagadores de impostos e consumidores de impostos.

Porém, o efeito disso será que ambas as classes terão relações antagonistas no que diz respeito à ação fiscal do governo e a todas as políticas por ele criadas.  Pois quanto maiores forem os impostos e os gastos governamentais, maiores serão os ganhos de um e maiores serão as perdas de outro, e vice versa.  E, por conseguinte, quanto mais o governo se empenhar em uma política de aumentar impostos e gastos, mais ele será apoiado por um grupo e resistido pelo outro.

O efeito, portanto, de qualquer aumento de impostos será o de enriquecer e fortalecer um grupo [os consumidores líquidos de impostos] e empobrecer e enfraquecer o outro [os pagadores líquidos de impostos].

Logo, quanto mais inchado se torna o governo, maior e mais intenso passa a ser o conflito entre essas duas classes sociais.

No entanto, dado que uma elite minoritária é capaz de governar, tributar e explorar a maioria do público sem sofrer retaliações, isso nos leva ao principal problema da teoria política: o mistério da obediência civil.  Afinal, por que a maioria do público aceita se submeter a estes fracassados, sem oferecer resistência?  Esta indagação foi respondida por três grandes teóricos políticos: Étienne de la Boétie, teórico libertário francês de meados do século XVI; David Hume e Ludwig von Mises.  Eles demonstraram que, exatamente pelo fato de a elite dominante estar em minoria, a coerção por si só não pode funcionar no longo prazo.  Até mesmo na mais despótica das ditaduras, o governo irá se manter apenas se contar com o apoio da maioria da população.  No longo prazo, o que é preponderante são as ideias, e não a força — e qualquer governo tem de ter legitimidade na mente do público.

Esta verdade foi perfeitamente demonstrada durante o colapso da União Soviética.  Quando os tanques foram enviados para capturar Boris Yeltsin, eles foram persuadidos a apontar suas armas para o outro lado e a defender Yeltsin e o Parlamento russo.  Em linhas gerais, estava claro que o governo soviético havia perdido toda a legitimidade e apoio entre a população.  Para um libertário, foi particularmente fantástico assistir à morte de um estado, particularmente um estado monstruoso como a União Soviética.  Até o final, Gorbachev continuou emitindo decretos, como sempre fez, mas a diferença é que ninguém mais prestava atenção e nem dava a mínima.  O antes todo poderoso Supremo Soviético (a legislatura da URSS) continuava se reunindo frequentemente, mas ninguém se dava ao trabalho de comparecer.  Glorioso!

Mas ainda não resolvemos o mistério da obediência civil.  Se a elite dominante está tributando, espoliando e explorando o público, por que o povo não se rebela?  Por que ele tolera tudo isso?  Por que ele simplesmente não retira seu consentimento?

Resposta: não se deve jamais ignorar o papel crucial dos intelectuais, a classe que molda as opiniões da sociedade.  Se as massas soubessem como o estado realmente opera, elas imediatamente retirariam seu consentimento.  Elas rapidamente perceberiam que o rei está nu, e que elas estão sendo espoliadas.  É para evitar essa "tragédia" que os intelectuais entram em cena.

A elite dominante, seja ela os monarcas de antigamente, os comunistas de pouco tempo atrás ou os social-democratas da atualidade, necessita desesperadamente de exércitos de intelectuais que teçam apologias para o poder estatal.  O estado governa por determinação divina; o estado assegura o bem comum e o bem-estar geral; o estado nos protege dos bandidos que estão sempre à espreita; o estado garante o pleno emprego; o estado ativa o multiplicador keynesiano; o estado garante a justiça social.  Como demonstrou Karl Wittfogel em sua grande obra, Oriental Despotism, nos impérios asiáticos, os intelectuais lograram êxito com a teoria de que o imperador ou o faraó era uma entidade divina.  Se o soberano é Deus, poucos se atreverão a desobedecer ou a questionar suas ordens.

Podemos ver como os regentes do estado se beneficiam dessa sua aliança com os intelectuais; mas o que os intelectuais ganham com esse arranjo?  Intelectuais são pessoas que acreditam que, em um livre mercado, auferem uma renda muito aquém de sua sabedoria.  Para se aproveitar disso, o estado, para favorecer estes egos tipicamente hiperinflados, está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios.  O estado está disposto a pagar a esta gente tanto para tecerem apologias ao poder estatal quanto para preencher a miríade de postos de trabalho nas universidades, na burocracia e no aparato regulatório do estado.  Com efeito, o estado democrático moderno criou uma maciça superabundância de intelectuais.

Continua...


Fonte: 

https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1583