terça-feira, 15 de agosto de 2017

Budismo Teísta?

Sendo o incondicionado, perfeito, não nascido, mas sempre onipresente e onisciente, de onde e como surgiu a ignorância? A perfeição suprema não pode gerar a imperfeição, bem como a onisciência não pode gerar a ignorância a não ser por um ato de vontade. Se há ignorância, condições e mundo da ilusão onde antes só havia o incondicionado, não ilusão e não ignorância (e tal mundo tem começo, Buda, a ciência e Jesus afirmam também o mesmo) então tal mundo e seres só podem ter surgido da perfeição incondicionada e por um ato de vontade da mesma. Portanto o mundo foi criado e se foi criado pela plenitude da perfeição deve ter um propósito.
Buda nega um mundo criado por um deus perfeito. Mas o que significa deus na linguagem que Buda falava? Em qualquer dos idiomas da índia antiga não existia a palavra deus equivalente ao conceito que se tem hoje de deus em qualquer religião monoteísta. O único conceito parecido a um deus absoluto e mesmo assim não criador e sim emanador do universo é o definido na palavra Brahman, que não era chamado de deus como Brahma ou outros, mas de Eu supremo. Buda nega a existência de um eu permanente individual e de um eu superior individual, mas silencia quanto a um eu absoluto ou supremo no sentido monoteísta, aliás essa questão sequer foi proposta, nem mesmo a questão de uma personalidade de Deus como foi proposto por Krishna é aventada. Buda nega que Brahma criou criou o universo, ele também conhecia muito bem os conceitos brahmanistas como expostos nos upanishads pois a classe guerreira era instruída com a mesma doutrina dos brahmanes na época em que ele era ainda príncipe. Porém sabendo disso Buda não nega Brahman nem qualquer conceito semelhante a ele, pelo contrário ele se recusa a falar de tal tema. O que ele nega é que haja algum deus ou força criadora, coisa que não se pode dizer que o incondicionado seja a não ser no sentido de latência ou potência, conceito tão abstrato que nem a física esclarece por completo.
A perfeição e o incondicionado não podem produzir ao acaso ou por derivação ou automaticamente ou por qualquer outro meio a imperfeição e o incondicionado. A não ser que haja um ato voluntário. Para que haja um ato voluntário de algo incondicionado é preciso que haja ciência do ato, pois se não houvesse estaríamos retornando à afirmação de que o incondicionado produz mecanicamente ou por derivação natural ou por qualquer outro meio. Então está provado, sem necessidade de citar nenhum teórico ou texto budista zen ou jonangpa ou de qualquer outra tradição ou patriarca, que o budismo só pode ser teísta ou seria ilógico e impossível.

DIÁLOGO ENTRE PSICANÁLISE E ZEN

Diálogo  entre  psicanálise  freudiana  e  zen-budismo  a  respeito  do  eu, da  subjetividade,  e  da  identidade. Pedro  Rodrigo  Peñuela  Sanches;  Gilberto  Safra  (orientador) Instituto  de  Psicologia  -  Universidade  de  São  Paulo 1.  Objetivos A  atual  pesquisa  realizou-se  como continuação  da  pesquisa  apresentada  no  13º SIICUSP,  intitulada  "O  desejo  e  suas implicações  na  constituição  do  eu  conforme  o zen-budismo  e  a  psicanálise  freudiana",  de modo  a  manter  e  aprofundar  a  proposta  de diálogo  teórico  entre  psicanálise  e  filosofia  zenbudista.  Procurou-se,  nela  aprofundar  a investigação  a  respeito  das  noções  de  eu  e  de subjetividade  nos  dois  sistemas,  bem  como discutir  as  implicações  para  a  psicanálise  de um  debate  entre  as  concepções  de  Freud  e  as do  zen-budismo. 2.  Material  e  métodos Trata-se  de  pesquisa  bibliográfica  – semelhante  à  anterior  –,  cujo  método  consiste na  leitura  de  textos  e  posterior  articulação crítica  de  suas  idéias  de  acordo  com  o  recorte estabelecido. Concentrou-se  a  leitura  em  textos metapsicológicos  da  obra  de  Freud  (escritos entre  1900  e  1939),  e  em  textos  clássicos  do budismo  primitivo  e  do  zen-budismo. Além disso, foram realizadas entrevistas  com  psicanalistas  e  zen-budistas,  a fim  de  permitir  uma  reflexão  sobre  as implicações  das  noções  estudadas,  no cotidiano  de  pessoas  que  praticam  algum  dos dois  sistemas 3.  Resultados  e  conclusões parciais A  noção  de  eu  ao  longo  da  obra  de Freud  já  aparece  em  seus  primeiros  textos psicológicos  conceituada  principalmente  como uma  das  partes  em  tensão  no  conflito  psíquico. Desde  os  primeiros  textos  analisados, é  parte  fundamental  do  conflito  psíquico  o esforço  do  eu  para  desalojar  da  consciencia tudo  o  que,  ainda  que  também  o  constitua,  é contraditório  com  a  trama  identitária  construída e  amada  no  processo  narcísico.  É  nas  relações com  o  outro  que  em  grande  parte  o  eu  se constitui,  tendo  de  renunciar  ao  lugar  de  objeto narcísico,  erigindo  um  ideal  de  eu  a  perseguir, e  passando  a  ser  instância  defensora  da renúncia  à  satisfação  pulsional  imediata, promotora  do  processo  secundário,  e  do princípio  de  realidade.  Nesse  sentido,  é  à relação  com  os  outros  e  com  a  cultura  que  o  eu deve  sua  gênese  e  também  a  fonte  principal  de seu  conflito  com  sua  raiz  pulsional,  mas  é também  no  campo  dessa  relação  que  pode encontrar  formas  alternativas  de  algum  tipo  de integração  entre  sua  identidade  e  as  pressões pulsionais. No  budismo,  por  sua  vez,  procura-se desmantelar  a  noção  de  eu,  por  ser  entendida como  a  principal  das  ilusões  fontes  de sofrimento.  Na  argumentação  dos  textos clássicos  budistas  escritos  em  páli,  coloca-se que  o  a  ilusão  do  eu  nasce  da  ilusão  de  que algum  ou  todos  os  "cinco  agregados"  –  quais sejam, matéria, sensação, percepção, formações  mentais,  consciência  –,  constituem base  de  uma  identidade  permanente;  o  que,  na argumentação  budista  é  impossível,  na  medida em  que  estes  "agregados"  são  dependentes  de causas  e  condições  constantemente  mutáveis, não  tendo  portanto  nenhuma  solidez  ou  fixidez.   O  zen-budismo  introduz  um posicionamento  mais  paradoxal,  expresso  na frase  de  um  de  seus  fundadores,  Ehei  Dogen, de  que  "estudar  o  budismo  é  estudar  a  si mesmo;  estudar  a  si  mesmo  é  esquecer  de  si mesmo".  O  que  esse  sistema,  como desenvolvimento  histórico  do  budismo  inicial coloca  é  a  possibilidade  de  o  sujeito  constituirse  como  dotado  de  uma  ipseidade  ainda  que destituído  de  identidade  permanente.  Nesse sentido,  seria  possível  pensar  um  sujeito  que possa  agir  no  mundo  de  maneira  mais  livre  do esforço  neurótico  por  manter  a  coerência  com uma  identidade  mormente  imaginária.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O EVANGELHO E SUA AUTORIA

 Apologética do Novo Testamento - Universidade da Bíblia
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No período em que os evangelhos foram escritos, não existia a lei de copyright, que garante o direito exclusivo ao autor da obra de imprimir, reproduzir ou vender, enfim, de deter exclusivamente seus direitos autorais. Naquela época remota, sem o recurso da imprensa, quando os livros eram escritos com tintas em pergaminhos ou códices, mais de uma vez a obra de um autor foi atribuída a outro, devido às muitas semelhanças entre elas. E nem mesmo se fazia questão sobre esse assunto, que só ganhou relevância com o advento da imprensa. Por exemplo, Domenico Grasso fornece uma boa lustração a respeito, quando diz: “Durante séculos, acreditou-se que a obra sobre ‘hierarquia celeste’ fosse da autoria de Dionísio Aeropagita, convertido por São Paulo (At 17.34), enquanto se demonstrava pertencer a um filósofo neoplatônico do século 5o, comumente chamado ‘pseudodionísio’. Ainda hoje se discute a autenticidade de algumas obras da antiguidade clássica, conhecidas por Appendix Vergiliana e Epistolae ad Caesarem, atribuídas a Salústio. O problema da autenticidade de um documento é de enorme importância porque dela depende o seu valor”. E Domenico Grasso chega à seguinte conclusão em relação aos escritos sagrados neotestamentário: “O problema também é válido para os evangelhos. Quem são os seus autores?”. Existe alguma maneira de sabermos se esses evangelhos foram escritos pelos apóstolos? É bom frisar (e muitos desconhecem este fato) que nenhum dos evangelhos, como os conhecemos hoje, com os títulos de “Evangelho segundo São Mateus (kata Maththaion), São Lucas ou São João”, veio com a assinatura pessoal de seu autor. E, por conta dessa dificuldade, não podemos, apenas pelo recurso literário, saber quem os escreveu. No começo, os evangelhos eram anônimos. Mas isso não quer dizer que não sabemos, com certeza, quem foram seus autores verdadeiros. Por outro lado, repudiamos a idéia maldosa de que a Igreja tenha escolhido, aleatoriamente, tais nomes com o fim de dar autoridade a essas obras. Além disso, temos outra dificuldade: não possuímos os autógrafos (escritos originais) conforme saíram da pena dos apóstolos. Mas isso não é tão embaraçoso como muitos críticos pensam. Pode ser explicado satisfatoriamente por dois fatores básicos: O material no qual se escrevia, o papiro, era frágil, que logo se desgastava, portanto, os textos tinham de ser recopiados. Tais cópias eram feitas em rolo de papiro (planta) e, mais tarde, em códices (em formato de livro) com letras unciais (escritos em caracteres maiúsculos) ou em códices minúsculos. Os chamados lecionários (antologias de textos para uso litúrgico) vieram depois, também confeccionados em papiro e, posteriormente, em velino e pergaminho (pele de animais). As perseguições sofridas pelos cristãos, quando seus escritos sagrados estavam em constante perigo de ser destruídos. Assim, é provável que os cristãos primitivos tenham lido e relido os originais até que eles se gastassem, desfazendo-se por completo. Os evangelhos, contendo o título-nome dos autores, vieram das cópias dos códices antigos. Os dois códices mais importantes do Novo Testamento são: o códice vaticano e o códice sinaítico. Se levarmos em consideração que tais códices vieram de todas as províncias do Império, desde o século 4o até o 9o, somando um total de mais de 4 mil, é incrível como a Igreja primitiva, em todas as partes, aceitou com unanimidade os autores dos quatro evangelhos sem contestação. Isso só pode ter ocorrido devido ao fato de que os títulos muito cedo foram partes integrantes dessas obras. Grasso ainda afirma: “Ninguém conhece um autor diferente daquele conhecido pelos outros. Se em alguma região viessem a saber que o autor de determinado evangelho não era o mesmo a quem se atribuía sua autoria em outro lugar, era coisa fácil de ser conhecida”. Todavia, nunca houve divergência no seio da Igreja sobre a autoria dos quatro evangelhos. É improvável até que esses livros tenham circulado durante décadas para somente no século 2o serem estereotipados pela Igreja. Poderia ter havido discordâncias, caso ninguém soubesse quem eram os autores de tais obras. O papirólogo Carsten Peter Thiede corrobora com essa opinião: “É inconcebível que alguém tivesse ousado inventar candidatos tão improváveis e tão pouco conhecidos como Marcos e Mateus (ou até mesmo Lucas), se estes não tivessem sido realmente os nomes dos autores — ou se, de alguma forma, não tivessem uma ligação direta com aqueles escritos”.
Para que possamos ter uma idéia de como era certa a tradição de a autoria dos evangelhos ser atribuída aos quatro evangelistas, nos basta tão-somente considerarmos o fato de que até mesmo os heréticos aceitavam, sem contestação, que a autoria dos evangelhos procedia, respectivamente, de Mateus, Marcos, Lucas e João. Irineu, em seu livro apologético, nos assegura que “o valor dos evangelhos é tão grande que recebe o testemunho até dos próprios hereges...”. Prosseguindo, ele diz “que cada um pretendia apoiar suas teorias particulares em um dos evangelhos. Por exemplo, a seita dos ebionitas tinha preferência pelo evangelho de Mateus. O herege Marcião, pelo de Lucas. Já os valentinianos se apegavam ao de João”. Pelo depoimento de Irineu, percebe-se que até mesmo os mais primitivos heréticos aceitavam Mateus, Marcos, Lucas e João como respectivos autores dos quatro evangelhos que levam os seus nomes. Além disso, temos o testemunho de outros pais da Igreja primitiva. O escritor e historiador eclesiástico Eusébio de Cesaréia, em sua obra História eclesiástica, conserva fragmentos dos escritos de Papias, bispo de Hierápolis e escritor cristão do início do século 2o (c. 130 a.D.), que conheceu os discípulos dos apóstolos. Papias nos dá a seguinte informação quanto aos autores dos dois primeiros evangelhos: Mateus e Marcos. Quanto a Marcos, diz o seguinte: “Marcos, sendo o intérprete de Pedro, tudo o que registrou escreveu com grande exatidão, mas não na ordem em que foi falado ou realizado por nosso Senhor, pois ele não ouviu nem seguiu nosso Senhor, mas, conforme disse, esteve em companhia de Pedro, que lhe deu tanta instrução quanto necessária [...] Assim Marcos não errou em nada ao escrever algumas coisas como ele as recordava...”. Quanto a Mateus, escreve: “Mateus compôs sua história em dialeto hebraico e cada um traduzia segunda a sua capacidade”. Em 170, Irineu de Lião, refutando os hereges de seu tempo, menciona Lucas como autor do terceiro evangelho: “Ora, se Lucas, que sempre pregou e evangelizou com Paulo, que teve confiada a missão de sempre nos transmitir o evangelho...”. Por isso, D. A. Carson chega à seguinte conclusão: “... O único evangelho circulou cedo sob quatro formas distintas: ‘Segundo Mateus’ [...], sendo que a preposição apresenta a pessoa que se acreditava ser o seu autor”. Esses dados fornecem provas confiáveis que nos permitem afirmar com segurança que seus autores são verdadeiramente aqueles a quem são atribuídos. 4.1. Por Que Apenas Quatro Evangelhos? Entre os estudiosos da numerologia bíblica (a numerologia bíblica é apenas simbólica), o número quatro representa universalidade. Quatro são os pontos cardeais. Quatro são as estações do ano em todo o mundo. E quatro foram os impérios mundiais. O evangelho de Cristo também é transcultural, não se restringe a nenhuma raça, cor ou cultura específica, mas se estende a toda a criatura debaixo do céu em todos os tempos. Seu alcance é universal. Diz Josh MacDowell que os “quatro evangelhos haviam-se tornado tão axiomáticos no mundo cristão que Irineu pôde se referir a eles como um fato comprovado e reconhecido tal como os quatro pontos cardeais”. Vejamos o que disse Irineu: “Por outro lado, os evangelhos não são, nem mais nem menos, do que esses quatro. Com efeito, são quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro são os ventos [...] Por isso é evidente que o Verbo, Artífice de todas as coisas, que está sentado acima dos querubins [...] nos deu um evangelho quadriforme sustentado por um único Espírito”. Já bem cedo, em 160 d.C, um cristão chamado Taciano separou os quatro evangelhos em seu Diatessaron (expressão que significa “pelos quatro”). Assim se expressa Eusébio de Cesaréia a respeito: “Taciano, tendo formado certo corpo e coleção de evangelhos, não sei como, deu-lhes este título, Diatessaron, que é o evangelho dos quatro, ou o evangelho formado pelos quatro...”. 
Eusébio cita, ainda, outro escritor cristão do século 2o, Clemente de Alexandria (150- 215), que fala dos “quatro evangelhos transmitido até nós”, e conhece uma tradição segundo a qual foram escritos primeiramente aqueles que contêm a genealogia do Senhor, isto é, Mateus e Lucas. Clemente também dá a tradição a respeito da ordem dos evangelhos, conforme transmitida pelos presbíteros mais velhos: “Ele diz que os que contêm as genealogias foram escritos primeiro...”. Orígenes, um dos apologistas da fé cristã da segunda metade do século 2o, conhecia o nome dos quatro evangelistas e a ordem em que escreveram, como conhecemos hoje, a saber: Mateus, Marcos, Lucas e João. Tertuliano (160–223), advogado e apologista, ao escrever, no início do século 3o, contra Marcião, atesta o valor dos quatro evangelhos frente à heresia de Marcião, que só admitia o evangelho de Lucas. O Canon muratoriano também nos fala do reconhecimento dos quatro evangelhos pela Igreja romana. No prólogo de seu evangelho, Lucas deixa claro que, em sua época, já existiam outros escritos sobre a vida de Jesus: “Visto que muitos têm empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram” (1.1). Não obstante, cremos que Deus quis preservar somente quatro livros contendo a narrativa verdadeira, fiel e inspirada sobre a vida de Cristo. 4.2. Um ou Quatro Evangelhos? Já vimos o motivo pelo qual o Senhor Deus nos deu um evangelho quadriforme. Agora, estamos diante de outra incógnita: “o evangelho” ou “os evangelhos”? Como devemos denominar? Parece que o termo apresenta a mesma aparente dificuldade tal como aconteceu com a expressão “Escritura” ou “Escrituras”. No começo, era um termo geral, significando simplesmente escritos. Mais tarde, deu-se a designação mais precisa: “a Escritura” ou “as Escrituras”, para distinguir os escritos sagrados dos judeus. O apóstolo Pedro classifica alguns textos do apóstolo Paulo como “Escritura”. Paulo, ao escrever a Timóteo (1Tm 5.18), cita o evangelho de Lucas (Lc 10.7) e o livro de Deuteronômio (Dt 25.4), conferindo a mesma autoridade escriturística a ambos. Com respeito aos evangelhos, Carson elucida a questão ao dizer que “nenhum dos quatro relatos sobre o ministério de Jesus recebe no Novo Testamento o nome de evangelho [...] Talvez, perto do fim do século 1o, ou início do 2o, acrescentaram-se títulos aos relatos oficiais da Igreja sobre o ministério de Jesus. Foi certamente aí que se empregou ‘evangelho’ pela primeira vez para designar uma obra literária. [...] Não o evangelho por Marcos, mas o [único] evangelho, segundo [a versão de] Marcos...”. Parece que o uso que Marcos faz dessa palavra, já no início de sua obra (1.1), serviu para consagrar o termo como obra literária. Justino, o mártir (133 d.C.), foi o primeiro a empregar o termo “evangelho” para designar os relatos canônicos do ministério de Jesus. F. F. Bruce, ao comentar sobre os evangelhos, dá o parecer de que “já em data bem remota vieram os quatro evangelhos a constituir uma unidade integrada. E essa coleção de quatro documentos era originalmente conhecida como ‘o evangelho’, no singular, e não ‘os evangelhos’, no plural. Havia apenas um evangelho apresentado em quatro narrativas [...] Por volta de 115 a.D., Inácio, bispo de Antioquia, refere-se ao ‘evangelho’ como escrito revestido de autoridade, e, visto que conhecia mais de um dos quatro ‘evangelhos’, é provável que o título designe a coleção assim chamada, então”. Geralmente, dá-se o nome de “quatro evangelhos” aos primeiros livros do Novo Testamento. Antes do século 4o, todavia, a coleção era designada apenas pelo nome de “o evangelho”, distinguindo-se as diferentes formas por “segundo Mateus”, “segundo Marcos”, e assim por diante. 
Mas as expressões “evangelho de Mateus”, “evangelho de Marcos” e “evangelho de Lucas” são apenas nomenclaturas externas provenientes do século 2o. Na verdade, como já vimos, há um só evangelho apresentado em quatro formas, como bem atesta Agostinho em seu Sermão sobre a ressurreição de Cristo, segundo São Marcos: “A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos livros do santo evangelho”. 4.3. Os “Problemas” dos Sinóticos Aprendemos, nos tópicos anteriores, o que significam e quais são os evangelhos sinópticos. Abordaremos, agora, algumas dificuldades referentes a esses evangelhos. Os evangelhos sinópticos têm sido alvo de extensa pesquisa durante muito tempo. A crítica textual tem feito uma verdadeira devassa em seus textos com o fito de resolver aquilo que denominara de “O problema sinóptico”.Tais problemas, segundo os críticos, seriam supostas contradições apresentadas em alguns trechos. Mas como observa o comentarista Halley, em sua obra Manual bíblico: “O fato de haver pormenores diferentes e ligeiras variantes na descrição de um mesmo incidente faz que o testemunho dos vários escritores se torne tanto mais digno de fé, visto afastar a possibilidade de terem entrado em combinação prévia”. E, citando as palavras do historiador Paul Barnett, “as diferenças entre as narrativas não apenas indicam que Mateus e Lucas estavam isolados um do outro quando escreveram, mas também que as fontes de que dependeram eram bem separadas”. As dificuldades envolvendo os sinópticos foram apresentadas por Champlin, resumidas em forma de várias perguntas, como seguem:  Os evangelhos foram escritos “independentemente” uns dos outros, sem qualquer fonte comum oral e escrita, sendo narrativas somente feitas de memória?  Se houve fontes comuns escritas ou orais, de que natureza e quantas eram elas?  Qual dos evangelhos sinópticos é primário? E esse evangelho foi usado diretamente como fonte de informação pelos demais evangelistas?  Qual foi a fonte de material usado pelos evangelhos não primários, naquilo em que estão de acordo entre si, nas passagens que não figuram em Marcos?  Quando um evangelho não primário tem material peculiar a si mesmo, qual foi sua fonte informativa?  Quais foram as fontes informativas do evangelho primário? Para dirimir esses problemas, os críticos, ao longo dos anos, foram criando várias teorias. Algumas delas já foram abandonadas por completo. Já outras possuem agora apenas alguns raros defensores. E há aqueles, porém, que continuam gozando de grande popularidade entre os eruditos. A seguir, veremos que, indubitavelmente, não se pode tomar qualquer partido em posição dogmática em relação a nenhuma dessas teorias. No trabalho de desvendar o “mistério” da origem dos evangelhos, destacaram-se, principalmente, ao longo dos anos, três teorias que pretenderam apresentar soluções plausíveis para a questão em pauta. Vejamos: 4.4. A Crítica da Forma Os críticos dessa escola se preocupam não com a parte literária dos evangelhos, mas com o hiato deixado entre a transmissão oral até a composição literária dos mesmos. Seus proponentes tentam descobrir como as comunidades cristãs transmitiram os ensinamentos de Jesus. A crítica, neste caso, solapa, de certa forma, a integridade histórica dos evangelhos, pois os críticos dizem que a comunidade cristã criou as fontes das quais os evangelhos derivaram. Propõem que, de acordo com a necessidade enfrentada, as comunidades locais iam inventando episódios ou ensinamentos acerca de Jesus para sanar tais dificuldades. Essas coleções, na opinião de seus defensores, foram as responsáveis pela composição dos evangelhos. Em suma, o evangelho, conforme temos hoje, não seria histórias verídicas de testemunhas oculares, mas refletiria apenas a crença da Igreja primitiva a respeito de Jesus. Essas unidades isoladas foram costuradas com frases cronológicas pelos evangelistas, tais como: “depois disso”, “poucos dias depois”, “imediatamente”, para dar um tom histórico à obra. O papel crucial dessa escola seria descobrir as leis por trás dessa tradição. Seus principais expoentes são: Martin Dibelius, Rudolf Bultmann e Vicent Taylor, o menos radical deles. 4.5. A Crítica da Redação Em verdade, os críticos dessa escola não se preocupam com a origem dos evangelhos e, tampouco, importam-se com quem foram seus autores. O que menos importa é a parte histórica. Seu principal objetivo é o motivo teológico com que cada autor escreveu e por que escreveu, concentrando-se apenas no texto em si. A crítica da redação depende muito da crítica da forma. A maioria dos críticos da redação se baseia na teoria das duas fontes, tendo o evangelho de Marcos como base para os outros dois. Os principais difusores dessa teoria foram: Gunther Bornkamm, Hans Conzelmann e Willi Marxsen. 4.6. A Crítica das Fontes Uma dessas dificuldades nutridas pelos críticos é saber sobre as fontes dos evangelhos. Em virtude de muitos versos nos três primeiros evangelhos serem idênticos, eruditos, por muitos anos, têm debatido o seu relacionamento. A crítica das fontes visa identificar as fontes escritas usadas para compor os evangelhos. E as soluções que apresenta foram dadas em forma de algumas teorias. A seguir, suas principais teorias:  A teoria da dependência de um evangelho original, único o Propõe que houve um único evangelho em aramaico do qual os outros três se abeberaram.  A teoria da dependência comum de fontes orais o Propõe a existência de um evangelho baseado em fontes orais transmitido pela Igreja, no qual os outros três se basearam.  A teoria da dependência de vários fragmentos escritos o Baseando-se no depoimento de Papias, seu proponente asseverava que existiram vários fragmentos sobre a vida de Jesus, os quais foram evoluindo em sua forma até serem inseridos nos evangelhos sinópticos.  A teoria do não-documento o Alega que não houve uma fonte comum aos três evangelhos, mas que todos eles se desenvolveram de modo independente. Seus defensores alegam, ainda, que os evangelistas escreveram somente o que viram e ouviram de Jesus.  A teoria da interdependência o É a mais aceita atualmente pela maioria dos eruditos da crítica das fontes. Seus críticos defendem a tese de que entre os evangelhos havia uma interdependência, ou seja, um deles foi a fonte dos outros dois. Dentro dessa teoria se desdobram mais algumas hipóteses das quais analisaremos apenas quatro:  Hipótese agostiniana,  Agostinho, bispo de Hipona, propôs, baseado na tradição, que Mateus foi o primeiro evangelho a ser escrito e que Marcos, posteriormente, serviu-se dele para coletar dados e compor seu evangelho. Lucas, por sua vez, seria uma compilação tanto de Marcos como de Mateus.  Hipótese das duas fontes o Segundo muitos, parece ser a que fornece melhor explicação para as similaridades entre os evangelhos. O ponto de vista preponderante, na atualidade, é que o evangelho de Marcos foi escrito primeiro e Mateus e Lucas usaram Marcos como fonte para os seus evangelhos. Visto que Mateus e Lucas são mais extensos que Marcos, é claro que eles contêm materiais que não se encontram em Marcos. Mateus contém material que não se encontra em Lucas e Lucas contém material que não se encontra em Marcos. Mateus e Lucas contêm algum material idêntico que não se encontra em Marcos. Mais tarde, foi acrescentada uma certa fonte “Q” (da língua alemã Queller = fonte). Segundo essa mesma teoria, Mateus e Lucas teriam escolhido apenas o que lhes era conveniente dessas duas fontes.  Hipótese dos dois evangelhos o Alguns críticos, como Willian Farmer e C. S. Mann, sustentam a hipótese de Griesbach. E, apesar de sustentarem a crença de que o evangelho de Mateus foi o primeiro a ser escrito, colocam, diferentemente de Agostinho, Lucas em segundo lugar e fazem Marcos depender tanto de Mateus como de Lucas.  Hipótese dos quatro documentos o Foi proposta como solução alternativa aos resquícios de problemas deixados pela hipótese das duas fontes. Como resultado do trabalho de B. H. Streeter, a maioria dos eruditos contemporâneos aceita a teoria dos quatro documentos. Esses documentos seriam um proto-evangelho para cada um deles, que são:  Marcos foi escrito primeiro e foi usado por Mateus e Lucas. Seu local de origem seria a Igreja em Roma.  O documento “Q” era uma fonte que supriu os ensinos ou as atividades de Jesus comuns a Mateus e Lucas, mas que não se encontram em Marcos. Seu local de origem seria Antioquia.  “L” era uma fonte usada por Lucas para seu material especial com origem na Igreja de Cesaréia.  “M” era uma fonte usada por Mateus para seu material especial e teve origem na Igreja de Jerusalém ou Antioquia. O erudito John P. Meier procura também estender essa questão ao evangelho de João, e nos informa que ainda há muita discussão se o evangelho de João dependeu de Mateus e Lucas ou foi produto de fontes independentes como a fonte “Q” e “Marcos”. Entre os críticos que sustentam a primeira hipótese, está o exegeta Frans Neirynck, que acredita que João se baseou nos três evangelhos sinópticos. Mas essa teoria foi contestada por P. Gardner-Smith, que sustentava uma fonte independente para João. Depois, essa mesma teoria foi mais bem desenvolvida por H. Dodd e aceita por gabaritados comentadores, como, por exemplo, Raymond Brown. Entretanto, é bom lembrar que nenhuma dessas hipóteses favorece uma explicação satisfatória à rica complexidade da origem dos evangelhos. F. F. Bruce diz acertadamente que a crítica da fonte “conduz necessariamente a resultados muito menos precisos [...] porquanto tem de incluir porção bem mais avultada de elemento especulativo”. Até mesmo a mais popular delas não consegue responder a muitas questões da problemática envolvendo os evangelhos sinópticos. Por exemplo, uma das críticas levantadas contra a teoria das duas fontes é que não existe cópia alguma dessa suposta fonte “Q”. Alguns apelam para Lucas 1.1-3 como meio de provar essa teoria. Todavia, Lucas não diz que copiou ipsis litteris das fontes existentes, mas que fez acurada investigação e consultou as testemunhas oculares ainda existentes. Lucas esteve com muitas pessoas, inclusive com as testemunhas oculares que eram ministros da Palavra e poderiam ter perfeitamente fornecido informações fidedignas envolvendo a vida de Cristo. Há grande possibilidade de Lucas ter tido contato pessoal com os três evangelistas ou algum dos apóstolos. Além disso, existe o fato de Paulo, em 57 d.C., citar uma passagem de Mateus 10.10 e Lucas 10.7 (“Digno é o obreiro de seu salário”) em 1 Timóteo 5.18. Tudo indica que um desses evangelhos já estava circulando naquela época. Ainda sobre Paulo, devemos atentar para o fato de que quando esse apóstolo instrui a Igreja em Corinto, lançou mão de vários ensinamentos proferidos pelo próprio Cristo, tais como: o divórcio, o sustento do obreiro, a santa ceia e a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus. Paulo parece invocar uma antiga tradição apostólica (1Co 15.1-7) para fundamentar esta última doutrina. Pelo fato de ele citar esses ensinamentos como dignos de crédito e observância, pressupõe que já havia alguns ensinamentos circulando nas igrejas paulinas sobre Jesus Cristo. E o mais interessante é que a maioria desses ensinamentos encontra paralelo nos sinópticos. Na verdade, como já tivemos a oportunidade de citar, a voz dos pais da Igreja do século 2o era unânime em professar a crença que diz ter sido Mateus o primeiro evangelho a ser escrito e não Marcos. De fato, os quatro evangelhos, nos primeiros códices, aparecem na mesma seqüência de que se dispõe hoje em dia. Ocasionalmente, João foi posto na frente de Mateus, mas nunca Marcos. Segundo o testemunho de Papias, Marcos compôs seu evangelho usando as informações de Pedro, por isso não havia a necessidade de copiar de Mateus e muito menos de Lucas. Além disso, se Marcos copiou de Mateus e Lucas, por que então seu evangelho foi tão resumido no tocante aos ensinamentos de Cristo? É justo crer que ele iria omitir episódios importantes da vida de Jesus, como, por exemplo, o seu nascimento ou o sermão do Monte? Outro ponto que deve ser considerado é o seguinte: por que Mateus dependeria de Marcos, que, diga-se de passagem, não foi testemunha ocular, para compor seu evangelho? Será que as memórias de Mateus e sua íntima experiência com Cristo, além de sua relação com os demais apóstolos, não seriam suficientes para tal tarefa? São justamente estas algumas dificuldades que se impõem quando confrontamos tais teorias.