A liberdade me levou até Cristo, e eu não conheço outro caminho que conduza a Ele. Não fui o único a ter passado por essa experiência. Todos aqueles que deixaram o Cristianismo-autoridade não podem retornar senão ao Cristianismo-liberdade. Essa é uma verdade da vida experimental e dinâmica, que não podemos ligar a nenhuma concepção das relações da liberdade e da graça. Trata-se de uma questão de ordem totalmente diversa. Admito que a graça me conduziu à fé, mas essa graça, eu a vivi com plena liberdade. Aqueles que chegaram ao Cristianismo pela liberdade, trazem a ele um espírito de liberdade. Seu Cristianismo é necessariamente mais espiritual, por ter nascido do espírito, e não da carne e do sangue. A experiência da liberdade do espírito é indelével, mas o que existe de arbitrário na liberdade é um mal que deve ser superado. Aqueles cuja religiosidade e autoritária ou hereditária sempre haverão de compreender mal os homens que chegaram à religião pela liberdade, pela imanência trágica da experiência vivida.
A vida religiosa passa por três estágios característicos: 1) pelo estágio objetivo, popular e coletivo, natural e social; 2) pelo estágio subjetivo, individual, que pertence à alma e ao espírito; e 3) por aquele que se eleva até superar a oposição entre o objetivo e o subjetivo, e que atinge o mais alto grau da espiritualidade. A aparição do Cristianismo teve como condição a passagem da religião coletiva e popular para a religião subjetiva e individual. Mas em seguida o Cristianismo se rebaixou e se cristalizou numa religião objetiva e popular, social e coletiva. É precisamente essa forma do Cristianismo que atualmente está em crise. A vida religiosa passa por uma fase subjetiva e individual, que não pode ser a última, e que se destina a ser igualmente superada.
Existem dois estados da alma que se enfrentam no decurso da história da humanidade e que têm dificuldade em se compreender mutuamente. O primeiro pertence ao coletivo, à maioria social e , exteriormente, é ele que predomina na história; o outro pertence à individualidade espiritual, a uma minoria eleita, e seu significado ao longo da história é muito mais oculto. Poderíamos denomina-los como estado “democrático” e estado “aristocrático”. Os socialistas afirmam que no curso de toda história das sociedades humanas, a minoria privilegiada explorou a maioria dos deserdados. Mas existe uma outra verdade mais profunda e menos aparente à primeira vista: o coletivo, a maioria quantitativa, sempre oprimiu e perseguiu, na história, a minoria qualitativa, a que possuía o Eros divino, as individualidades espirituais orientadas para as alturas. A história é elaborada para o homem médio, para o coletivo; é para esse que foram criados o Estado, a família, as instituições jurídicas, a escola, o conjunto dos costumes e hábitos, a organização exterior da Igreja; a ele se adaptaram o conhecimento, a moral, os dogmas religiosos e o culto. É ele, esse homem médio, esse homem massificado, que é o mestre da história, que sempre exigiu que tudo fosse feito para ele, que tudo remete a si próprio, ao seu nível e aos seus interesses.
A “direita” e a “esquerda”, os conservadores e os revolucionários, os monarquistas e os socialistas, pertencem igualmente a esse tipo coletivo “democrático”. Os conservadores, os monarquistas os partidários da autoridade, não são menos “democráticos” do que aqueles que se autointitulam “democratas”. É para esse coletivo social, para esse homem da massa, que se criam as monarquias, que é reforçada a autoridade hierárquica, que se conservam as antigas instituições, e é também em seu nome que essas coisas são abolidas e se fazem as revoluções. As monarquias absolutas e as repúblicas socialistas são igualmente necessárias às massas, são igualmente adaptadas ao homem médio. Esse último tanto dominou a nobreza, como domina a burguesia, e as classes baixas e trabalhadoras. Jamais é por intermédio da aristocracia espiritual que são estabelecidos os governos, que são elaboradas as constituições, ou os métodos de conhecimento e de criação.
Os santos, os profetas, os gênios, os homens que possuem uma vida espiritual superior, capazes da criação autêntica, não têm o que fazer com a monarquia, nem com a república, com o conservadorismo, com a revolução, com a constituição ou a escola. A raça da aristocracia espiritual não traz consigo o fardo da história. Ela está submetida às instituições, às reformas e aos métodos antigos e novos, em nome do “povo”, do coletivo, em nome da felicidade do homem médio. Evidentemente, essa raça aristocrata espiritual, esses homens eleitos, que vivem o Eros divino, pertencem à raça decaída de Adão e sofrem, por causa disso, as consequências do pecado que devem expiar. Eles não podem se isolar do “mundo”, e devem carregar seu fardo, eles devem servir à causa universal da libertação e da civilização. Não podemos senão deplorar o orgulho dos homens que, acreditando pertencer à mais alta natureza, consideram com desprezo os menores, e recusam ajudar o mundo a crescer. Mas os homens de tipo aristocrático e espiritual, que não são responsáveis pelas qualidades de sua natureza, têm na realidade um destino amargo e trágico no mundo, pois eles não podem se adaptar a nenhuma convenção social, a nenhum regime de pensamento do homem médio; sua raça é oprimida e perseguida na história.
Os homens de tipo “democrático”, orientados para as massas, para a organização da vida da coletividade, podem ser dotados de grandes talentos, sua raça pode ter grandes homens, heróis, gênios e santos. E os homens do tipo “aristocrático”, orientados para os outros mundos, para a criação de valores inúteis para o homem médio, podem ser desprovidos de gênio, poder ser-lhe inferiores por sua força e talento. Mas eles possuem uma organização espiritual diferente, que é ao mesmo tempo mais sensível, mais complexa e sutil, do que a dos “paquidermes” da raça democrática. Eles sofrem com o “mundo”, com sua pesandez, sua rudeza e sua decadência, mais do que os homens que estão orientados para as massas, para o coletivo. Mesmo os grandes homens do tipo “democrático” possuem essa simplificação da psique que os coloca ao abrigo do “mundo”, enquanto que o “mundo” fere as personalidades espirituais, que estão menos adaptadas a ele. Cromwell ou Bismarck eram do primeiro grupo, como, em certo sentido, todos os homens de ação, todos os grandes homens de Estado ou os grandes revolucionários. Podemos encontrar também essa simplificação da psique em muitos doutores da Igreja, que muitas vezes pertenceram ao tipo democrático.
Desse ponto de vista, os gnósticos apresentam um interesse especial. Grande parte deles pertencem ao tipo do aristocrata espiritual; eles parecem não ter conseguido se reconciliar com o “democratismo” da Igreja Cristã. A questão não é de saber se eles estão com a verdade; a Igreja tinha razões profundas para lutar contra eles e os condenar, pois, se eles houvessem triunfado, o Cristianismo não teria sido vitorioso na história; ele teria se transformado numa seita aristocrática. Mas a própria questão que está ligada à gnose é preocupante, eterna, e tem sua importância mesmo em nossa época. A verdade absoluta da revelação se refrata e é assimilada de modo diferente, conforme a organização e o nível espiritual daquele que a recebe. Será necessário reconhecer como absoluta e imutável a forma da revelação Cristã, destinada ao homem médio? O homem mais espiritual, mais complexo e sutil, que recebeu sua parte dos grandes dons da gnose, deverá ele se adaptar a esse nível, e rebaixar sua espiritualidade em nome da massa, em nome de uma comunhão com todo o povo cristão? Poderá a visão ecumênica ser a mesma que a visão coletiva do povo fiel? Será a via que conduz à obtenção dos dons do Espírito Santo, à perfeição espiritual, a única medida do nível espiritual e a única fonte da gnose religiosa?
É uma questão angustiante, essa do sentido religioso das aptidões e dos dons humanos. Ela se colocava para os gnósticos, especialmente para Clemente de Alexandria e Orígenes, que eram também gnósticos Cristãos. Essa questão se colocou também para Soloviev, e hoje em dia ela se coloca para a consciência religiosa: ela faz parte dos grandes problemas cristãos. Devem os problemas da consciência e do conhecimento cristãos se resolver num espírito “democrático”, visando o conjunto da humanidade, ou será possível e tolerável uma solução mais íntima, inacessível e inútil às massas? Existirá dentro do Cristianismo uma esfera na qual se possa levantar essas questões, um domínio no qual a gnose seja mais profunda? “Eu vos dei leite, não alimento sólido, que não poderíeis suportar; e mesmo agora não o podeis, porque sois seres carnais[2]”.
O Cristianismo democrático se alimenta “de leite”, porque ele está orientado para o “carnal”. E a Igreja tem suas razões para agir assim. Mas isso não resolve o problema da possibilidade de um outro alimento para uma fome espiritual insaciada. A história do espírito humano dá testemunho do fato de que a qualidade das aspirações e aptidões espirituais não são proporcionais à perfeição e à santidade, conforme o considera a consciência predominante da Igreja. Existe uma hierarquia natural dos temperamentos espirituais e dos dons espirituais. Existem seres nos quais predomina o espírito, em outros a alma. E isso não quer dizer que os primeiros sejam mais perfeitos, que eles tenham obtido mais santidade e mais graça. Os homens “espirituais” não devem se orgulhar e se glorificar diante dos homens “psíquicos”, pois eles não são melhores nem mais merecedores. Na maior parte dos casos, eles são os mais infelizes desse mundo; sobre eles colocamos pesados encargos; as maiores contradições interiores os rasgam e eles adquirem com mais dificuldade a plena harmonia de sua personalidade, bem como o equilíbrio com o mundo que os cerca. Eles são mais solitários. Mas a própria distinção entre os temperamentos espirituais e os dons é determinada por Deus e não pelo homem. O erro dos antigos gnósticos, que a Igreja denunciou, residia em seu orgulho intelectual. Eles não podiam aceitar que a boa nova da salvação e da vinda do Reino de Deus tivesse sido trazida por Cristo para todo o universo, para todos e por tudo. A raça dos “pneumáticos” era, segundo eles, eternamente separada da dos homens “psíquicos” e dos homens puramente carnais. Esse últimos não poderiam se elevar a um mundo espiritual superior, eles estariam condenados a permanecer no “fundo”, para eles a Redenção e a Salvação jamais se realizaria. A ideia da transfiguração do inferior no superior era inacessível à consciência gnóstica. É por isso que eles jamais se tornaram verdadeiros cristãos. Nisso eles se aparentavam ao pagão Plotino, embora esse grande representante do Helenismo os tenha combatido. Soloviev demonstrou bem que o processo universal permaneceu, para os gnósticos, improdutivo, porque eles não conseguiam conceber que o inferior se transfigurasse no superior. O “espiritual”, separado do resto do mundo, se lançaria aos cumes, enquanto que o “carnal” seria precipitado no abismo. Mas nada disso poderia dar resultado, porque o “espiritual” pertenceria ipso facto ao mundo superior, enquanto que o “carnal” pertenceria ao mundo inferior.
CONTINUA...
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