quinta-feira, 14 de agosto de 2025

SOBRE OS PENSAMENTOS DE MALÍCIA - Evágrio o Pôntico


  •  A Doutrina

  • 1. Natureza do Texto
  • Como muitos outros livros de Evágrio, em especial o Praktikos,
  • o Gnostikos, o Kephalaia Gnostica etc., o Tratado Sobre os
  • Pensamentos é formado por aquilo que Evágrio denomina kephalaia;
  • este termo figura no próprio título do tratado, em grande parte da
  • tradição manuscrita; o próprio Evágrio o emprega no presente tratado,
  • quando ele se refere ao kephalaion 17 (correspondente ao capítulo 24,
  • #4-5). Na falta de melhor, traduzimos kephalaion por “capítulo”, mas
  • este termo não deve ser tomado no sentido que lhe damos atualmente.
  • Diferentemente de uma obra moderna, os kephalaia não fazem parte
  • de um discurso contínuo; cada kephalaion é autônomo, formando um
  • todo em si mesmo e consagrado a um único objeto. Os kephalaia aqui
  • são de tamanho bastante variável: o mais longo (25) tem um
  • desenvolvimento de 56 linhas; os mais curtos (38-40; 42-43) têm
  • menos de dez linhas; o mais comum é terem de 15 a 30 linhas. Às vezes
  • diversos capítulos referentes a um mesmo tema seguem-se e parecem
  • agrupados; é o que acontece com os capítulos 27, 28 e 29 sobre os
  • sonhos e visões noturnos; uma fórmula de transição, no início do
  • capítulo 27, introduz o assunto. Mas, habitualmente, cada capítulo é
  • independente daqueles que o precedem ou seguem, o que é frisado
  • pela ausência – salvo raras exceções – de partículas de ligação no
  • início dos capítulos. Ao contrário, encontramos às vezes kephalaia
  • formados, em parte (26) ou inteiramente (31), de outros kephalaia
  • independentes reunidos aqui de modo mais ou menos artificial pelo
  • emprego de partículas de ligação.
  • Em outras obras formadas por kephalaia, estes, embora
  • independentes uns dos outros, vêm organizados segundo certos
  • temas, de tal forma que o conjunto pode apresentar algum
  • ordenamento das matérias. No presente Tratado não discernimos
  • servindo de introdução e de alguns capítulos curtos no final (38-40; 42-
  • 43), que fazem as vezes de conclusão, nenhum plano ou ordenamento
  • transparece no corpo do Tratado. Quanto à ordem dos capítulos e
  • mesmo à sua divisão, existem importantes divergências na tradição
  • manuscrita, e o texto apresentado aqui está baseado em algumas
  • opções. Esta desordem tem sua origem nas vicissitudes da tradição
  • manuscrita, bem como no próprio estado em que Evágrio legou o texto,
  • sem tê-lo revisado, ao que parece. Daí a necessidade que
  • encontramos, para a exposição da doutrina, em si mesma muito
  • coerente, de reagrupar alguns textos que estavam dispersos no corpo
  • do tratado.

 

  • 2. Síntese Doutrinal 

  • O Tratado Sobre os Pensamentos apresenta uma ligação
  • estreita com o Tratado Prático: este dirigia-se ao “prático” (praktikos)
  • e o ensinava como chegar, por meio da “prática” (praktiké), aos
  • umbrais da impassibilidade. O presente tratado está endereçado mais
  • especificamente àquele que, tendo franqueado o portal da
  • impassibilidade, tornou-se um “gnóstico” (gnostikos), alcançou a
  • ciência espiritual ou “gnose”, e intenta elevar-se, através dos
  • diferentes graus da contemplação, até a “oração pura” e a visão da luz
  • divina. Assim, para o gnóstico, a prática, ou seja, a luta pela
  • impassibilidade, deve prosseguir, pois a impassibilidade comporta
  • vários níveis e, para progredir na ciência, ele deve progredir na
  • impassibilidade, desde o início desta (ou “pequena impassibilidade”,
  • capítulo 15) até a “maior e primeira impassibilidade” (capítulo 10). Por
  • conseguinte, o combate contra os demônios e os pensamentos que
  • estes sugerem, que é a essência da prática, continua na vida gnóstica;
  • mas o gnóstico não tem que combater apenas os demônios que se
  • opõem à prática, atacando a “parte passional da alma”, mas também
  • aqueles que flagelam a parte racional e são adversários da
  • contemplação, conforme a distinção que é feita no capítulo 84 do
  • Tratado Prático. 
  • Esta distinção é retomada, em outros termos, no presente
  • tratado. No capítulo 18, Evágrio distingue entre os demônios que nos
  • atacam enquanto animais que somos e aqueles que nos atacam
  • enquanto homens, seres providos de razão. Estes últimos são os que
  • se agarram ao nosso intelecto, instrumento da ciência. Os primeiros
  • fazem agir contra a sua natureza as partes concupiscente e irascível,
  • cujo conjunto forma aquilo que o Praktikos denomina “a parte
  • passional da alma”, parte que temos em comum com os animais. Sobre
  • a parte concupiscente agem especialmente o demônio da gula que
  • sabe recorrer a truques para quebrar a abstinência já bem adquirida
  • pelo gnóstico (35) e, mais violento, o da fornicação que não hesita em
  • impor ao espírito daquele que já triunfou sobre seus maus
  • pensamentos a visão de cenas eróticas, chegando mesmo a atacar a
  • carne, fazendo-a ceder a um “abrasamento animal”; mas estas
  • tentações, assegura Evágrio, não duram muito, expulsas por meio de
  • uma prece intensa, da ascese e da contemplação (16). Bem mais
  • temíveis e duráveis são, para o gnóstico, aqueles que colocam em
  • ebulição sua parte irascível; dela provém aquele que é um dos
  • principais obstáculos à oração pura: “Se alguém quiser obter a oração
  • pura (...) que domine sua irascibilidade e vigie os pensamentos que ela
  • engendra, ou seja, aqueles que têm sua origem na suspeita, no ódio e
  • no rancor, que mais do que tudo cegam o intelecto...” (5, 16, 32). Como
  • no Gnostikos, (cap. 8), Evágrio repreende aqueles que “acendem sua
  • irascibilidade” processando seus irmãos sob o pretexto de que os bens
  • a que eles renunciaram devem ser distribuídos aos pobres (32); é a
  • prova de uma renúncia imperfeita (5).
  • Mas, sobretudo, os demônios contra os quais deve lutar o
  • gnóstico são aqueles que, atacando-o em sua condição de homem,
  • flagelam seu intelecto e se opõem ao progresso na via da
  • contemplação; estes demônios são principalmente os da vanglória e
  • do orgulho (18). Estão expostos à vanglória aqueles que adquiriram
  • “um começo de impassibilidade” (15); ela nasce das próprias práticas
  • ascéticas, das renúncias, das esmolas, do jejum, quando são
  • cumpridos com o desejo de dar espetáculo aos homens e disto tirar
  • alguma glória (3, 30); o demônio da vanglória aproveita-se do fracasso
  • dos outros demônios, depois do que ele lhes reabre as portas da alma
  • ____________________________
  • (14). O pensamento da vanglória é, dentre todos os pensamentos,
  • aquele que dispõe de mais matéria: “ele abarca quase toda a terra
  • habitada e abre a porta para todos os demônios” (14); é provavelmente
  • o demônio da vanglória que Evágrio chama de “vagabundo”, que se
  • aproxima dos irmãos sobretudo no início da aurora e “conduz o
  • intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa,
  • aonde o monge faz muitos reencontros, caindo, seja sob o demônio da
  • fornicação, seja sob o da cólera ou o da tristeza (9). Os pensamentos
  • persistentes de vanglória entregam aos poucos a alma ao demônio
  • “que torna a alma insensível”, o qual faz com que ela não mais
  • considere o pecado como pecado, não creia mais no castigo nem no
  • julgamento eternos, que permaneça insensível aos argumentos tirados
  • da Escritura e à reprovação dos irmãos (11). Do pensamento da
  • vanglória nasce o do orgulho (14), vício supremo que “provoca a perda
  • do espírito” (21, 26),
  • Como pode o gnóstico lutar contra esses demônios e contra os
  • pensamentos inspirados por eles, de modo a escapar ao desastre final
  • a que conduz o orgulho e, ao contrário, continuar progredindo na
  • ciência até alcançar a oração pura?
  • Evágrio sugere ao monge que se torna gnóstico os mesmos
  • conselhos que lhe dava quando este se dedicava à vida prática; ele
  • aconselha inclusive que o gnóstico não deve se preocupar com o que
  • comer ou vestir, virtude da despreocupação que ele recomendava aos
  • iniciantes em seu Bases da Vida Monástica. Assim como o prático, o
  • gnóstico combaterá os maus pensamentos vindos da parte
  • concupiscente de sua alma por meio de exercícios ascéticos, como o
  • jejum, a vigília e o sono sobre leito duro; ele domará sua parte
  • irascível, mais rebelde nele, pela longanimidade, a ausência de rancor,
  • as esmolas (3), mas também pela salmodia e, sobretudo, fazendo
  • crescer em si a virtude da mansidão (27); com efeito, “quase nenhuma
  • virtude é tão temida pelos demônios quanto a mansidão” (13). O
  • gnóstico que adquiriu um certo domínio sobre suas paixões tem outros
  • meios para lutar contra os demônios; assim ele poderá utilizar, com a
  • condição de que tenha suficiente domínio, sua parte irascível contra
  • os ataques brutais do demônio da fornicação (16). Do mesmo modo ele
  • pode fazer bom uso dos pensamentos da tristeza para destruir os dos
  • outros demônios, com a condição de utilizá-los de forma
  • “homeopática”, como se usa o veneno das víboras, tomado em
  • pequenas doses, para destruir o veneno de outros animais (12).
  • Sobretudo, o gnóstico possui, para combater os demônios, a
  • ciência que ele adquiriu graças a ter alcançado a impassibilidade.
  • Daqui para frente ele já não combate, como o fazia o prático, “à noite”,
  • mas ele contempla “as razões da guerra” e “reconhece facilmente as
  • manobras dos inimigos” (Pr 83). Agora ele sabe como os demônios
  • introduzem nele seus pensamentos, o que lhe permite triunfar com
  • mais facilidade. Eles o fazem utilizando aquilo que Evágrio denomina
  • noémata, termo que designa a “representação”, a imagem, semelhante
  • à marca que os objetos percebidos pelos sentidos deixam no intelecto
  • (25). Estas representações estão no princípio do conhecimento, que é
  • para Evágrio, segundo a tradição estóico-aristotélica, de origem
  • sensível. Elas são dadas ao homem, em sua condição presente (em que
  • ele está ligado a um corpo) para que, a partir delas, ele possa elevar-
  • se a uma ciência mais alta, até a ciência do próprio Deus. Deus
  • confiou-as a nós como um rebanho a um pastor, e nos deu a parte
  • concupiscente da alma para que as amemos e a parte irascível para
  • que as defendamos contra os “lobos”, ou seja, contra as
  • representações enviadas pelos demônios (17).
  • De fato, é utilizando as representações de objetos sensíveis que
  • os demônios agem sobre a alma e introduzem nela seus maus
  • pensamentos (2; 24), tentando desviar suas partes concupiscente e
  • irascível de sua função natural para fazê-las servir ao seu próprio fim,
  • que consiste em impedir o homem de alcançar a ciência. Essas
  • representações vindas dos sentidos são conservadas na memória, de
  • onde elas podem ser chamadas seja pelo intelecto, seja pelos próprios
  • demônios (2), e se o objeto foi percebido com paixão, sua
  • representação mantém, mesmo chamada pela memória, um caráter
  • passional. Com o monge a quem Evágrio se dirige e que é, por seu
  • estado, um solitário, um “anacoreta” – portanto, em princípio,
  • afastado dos “objetos” que atingem os sentidos1 – os demônios
  • utilizam, sobretudo as representações conservadas na memória; em
  • pleno deserto, o encontro, mais ou menos recente, com um irmão,
  • pode estar na origem de uma representação passional persistente,
  • como no caso do monge que guardava rancor de outro cujo rosto não
  • cessava de obcecá-lo durante a prece (37); mesmo na solidão da cela,
  • o monge não está ao abrigo das más representações; assim, quando
  • ele está aplicado na leitura das Escrituras, os demônios sabem utilizar
  • o próprio texto sagrado para sugerir seus maus pensamentos (33). Mas
  • no solitário, as representações são feitas principalmente das
  • lembranças apaixonadas que alimentam e amplificam as divagações
  • da imaginação, às quais a solidão, dia e noite, dá livre curso.
  • Como podem os demônios agir sobre a memória e nela buscar
  • as representações? Sem dúvida, por intermédio das paixões, supõe
  • Evágrio (4). Mas como podem eles conhecer as paixões que estão na
  • alma e as representações conservadas na memória? Com efeito,
  • Evágrio assegura que somente Deus é “cardiognóstico”, ou seja,
  • somente ele conhece o que está dentro do coração dos homens; mas
  • os demônios podem conhecê-lo observando os sinais exteriores,
  • gestos ou palavras, no que eles são muito hábeis (37). Do mesmo modo
  • eles não podem agir sobre nosso espírito senão passando pelo nosso
  • corpo. Evágrio descreve de maneira muito precisa e bastante curiosa,
  • a partir daquilo que ele próprio observou, como alguns demônios
  • fazem adormecer aqueles que leem tocando suas pálpebras e,
  • fazendo-os bocejar, insinuam-se no interior de sua boca (33); da
  • mesma forma, o demônio da tristeza, agindo sobre a pupila, cria um
  • obstáculo à oração evocando a imagem de um pecado há tempos
  • cometido (36). Dentre essas representações com as quais nos tentam
  • os demônios está a de nosso próprio corpo, que está no campo de
  • nossos sentidos com exceção do rosto; por meio desta representação
  • nós nos vemos indo e vindo e, quando se apresenta a figura de outra
  • pessoa, estendendo a mão para dar ou receber; e é assim que, quando
  • surge a tentação, nos imaginamos nos irritando contra um irmão ou
  • 1 O termo pragmata pode designar tanto pessoas como coisas; trata-se sempre de “objetos” da percepção sensível.
  • fornicando com uma mulher (25). Se o monge se abandona a isto, essas
  • imagens se sucedem em seu espírito, sugeridas por vários demônios
  • que se seguem ao primeiro; assim, vítima do demônio da avareza, ele
  • se vê inicialmente, em imaginação, encarregado da gestão do
  • dispensário dos pobres e, para tanto, recolhendo grandes somas de
  • dinheiro; logo sobrevêm as imagens da vanglória: ele se vê cercado da
  • estima de muitos e promovido, não sem algumas contestações que o
  • irritam, à prelazia; surgem então visões provocadas pelo orgulho,
  • visões aterradoras, feitas de relâmpagos ininterruptos, de aparições
  • de dragões alados na cela, visões que levam o monge à perda do
  • espírito e à loucura (21). A este mal estão especialmente sujeitos os
  • que se retiram para a solidão, longe dos irmãos, porém ainda
  • susceptíveis aos golpes da cólera, da tristeza ou do orgulho (23).
  • A essas imagens do dia acrescentam-se as imaginações
  • noturnas, chamadas de fantasiai; os demônios sabem provocar
  • naquele que dorme e cujas partes concupiscente e irascível não estão
  • ainda suficientemente purificadas, imaginações que despertam nele
  • as paixões; para tanto, eles sacodem a memória, liberando
  • representações que esta guardava à parte; às vezes eles se utilizam de
  • percepções que chegam aos sentidos do adormecido, como por
  • exemplo o ruído do vento (28), como fazem com o barulho das ondas
  • para os navegantes (4). Assim eles provocam sonhos terrificantes, e o
  • monge adormecido se vê presa de áspides aladas, cercado por animais
  • ferozes carnívoros, estrangulado por serpentes ou atirado do alto de
  • montanhas elevadas; às vezes ele vê os demônios se transformarem
  • em mulheres com atitudes indecentes e provocantes (27). Quando não
  • conseguem sacudir assim as partes concupiscente e irascível, os
  • demônios provocam sonhos de vanglória: o monge se enxerga vestido
  • com o manto de pastor e apascentando um rebanho, representação
  • simbólica da dignidade da qual ele se crê investido; revestido com a
  • prelazia, talvez do dom da cura, ele vê afluir para si, de todos os países,
  • pessoas trazendo presentes. Às vezes, ao contrário, são as visões da
  • tristeza, de infelicidades ocorridas a seus próximos ou de perigos que
  • o ameaçam: ele se vê, por exemplo, caindo de altas escadas, símbolo
  • de seu naufrágio na vida monástica (28). Às vezes estas imaginações
  • da noite prosseguem durante o dia (27); com efeito, os demônios
  • sabem combinar as representações do dia com as imaginações da
  • noite, pois a parte passional da alma é mais facilmente excitada
  • durante o dia quando foi perturbada por visões na noite precedente;
  • ou, inversamente, eles procuram humilhar com visões noturnas
  • aqueles que foram perturbados no dia anterior.
  • Como pode o gnóstico combater esses demônios e os
  • pensamentos que eles sugerem e por que meios poderá ele triunfar?
  • É preciso, em primeiro lugar, identificar o demônio autor da
  • tentação que se apresenta. O gnóstico o identificará a partir da
  • natureza da representação que a acompanha; se for a imagem de
  • alguém que o ofendeu ou irritou que se apresenta ao seu espírito, é o
  • sinal de que é o demônio da cólera que o está tentando; e o mesmo
  • ocorrerá com relação aos outros pensamentos (2). Identificado o
  • demônio, como expulsar a representação de que ele se serviu para
  • tentar introduzir seus pensamentos? Evágrio coloca em princípio que
  • nosso espírito não pode receber ao mesmo tempo as representações
  • de dois objetos diferentes e que, portanto, ele não pode ser tentado por
  • dois demônios simultaneamente. O procedimento a que recorrerá o
  • gnóstico consistirá, por conseguinte, em expulsar a representação
  • intrometida de um mau pensamento provocando a vinda de uma outra
  • representação (24).
  • Ser-lhe-á também possível expulsar o mau pensamento por
  • meio de um bom pensamento, pois se os maus pensamentos “cortam”
  • os bons, inversamente os bons pensamentos podem cortar os maus
  • (17). Se, com efeito, em suas obras, Evágrio fala sobretudo dos maus
  • pensamentos – a tal ponto que, sob sua pena, a palavra “pensamento”
  • empregada sem qualificativo, designa por si só quase sempre, os maus
  • pensamentos – nem por isso deixa de ser claro para ele que existem
  • também os bons pensamentos, cuja origem e cuja natureza são
  • precisamente definidas neste Tratado Sobre os Pensamentos, melhor
  • do que em qualquer outro. No capítulo 8 Evágrio distingue, além dos
  • “pensamentos demoníacos”, ou seja maus, os “pensamentos
  • humanos”, constituídos de representações simples desprovidas de
  • paixão, e os “pensamentos angélicos”, que perscrutam a natureza das
  • coisas criadas e as suas “razões”; são estes que acompanham a
  • contemplação espiritual. Levando mais longe sua análise, Evágrio
  • distingue, no capítulo 31, dentre os pensamentos humanos aqueles
  • que são bons e os que são maus: os bons são, de um lado, aqueles que
  • provêm de nossa natureza, que é boa como tudo o que Deus criou –
  • estes pensamentos são os mesmos que fazem com que também os
  • pagãos amem seus filhos e honrem seus pais – e, de outro, aqueles que
  • provêm de nossa vontade, quando esta, segundo a clássica
  • comparação da balança, “inclina-se pelo melhor”; maus são os
  • pensamentos que vêm de nossa vontade quando ela “se inclina pelo
  • pior”. Assim diz Evágrio que “ao pensamento demoníaco opõem-se
  • três pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito” (31):
  • o pensamento angélico e os dois pensamentos humanos bons.
  • Para cortar os pensamentos diabólicos, os mais eficazes são
  • evidentemente os pensamentos angélicos. São estes que, na
  • contemplação (theoria) espiritual em que deve progredir o gnóstico,
  • formam o que Evágrio chama de “as contemplações” (theorêmata); à
  • sua ação juntam-se os “sonhos angélicos” que, à noite, visitam os que
  • são puros e impassíveis (4); contrariamente aos sonhos demoníacos,
  • “eles trazem uma grande calma à alma, uma alegria inefável” e,
  • durante o dia, “a supressão dos pensamentos passionais, a prece pura
  • e até algumas razões dos seres, que começam a aparecer sob a ação
  • do Senhor e que revelam a sabedoria do Senhor” (28). Os bons
  • pensamentos e as contemplações que o gnóstico assim adquiriu são
  • semelhantes às pedras que Davi tirou de sua bolsa de pastor para
  • abater Golias, imagem do demônio. Eles dizem respeito aos anjos e aos
  • demônios, ao modo como eles nos visitam e agem sobre nós, ao modo
  • como Lúcifer, em especial, decaído de seu estado original, tenta
  • arrastar a todos os outros seres em sua queda. Estas considerações
  • “ferem gravemente o demônio e colocam em fuga todo o seu
  • acampamento”. O gnóstico poderá então enfrentar o demônio “mano
  • a mano” e agir como Davi que cortou a cabeça de Golias com a própria
  • espada deste (19).
  • O gnóstico pode, realmente, triunfar sobre o demônio
  • utilizando as mesmas armas deste, ou seja, os próprios maus
  • pensamentos. Ele o fará por meio da análise, decompondo o
  • pensamento em seus diversos elementos: assim, “ao longo da sua
  • investigação, o pensamento, reabsorvido em seu próprio exame, será
  • destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito
  • terá sido elevado aos cumes por meio desta ciência” (19).
  • Esta análise, que é um procedimento altamente intelectual, ao
  • alcance apenas do gnóstico já bastante avançado na impassibilidade e
  • na ciência, está fundamentada sobre a observação, que pode ser feita
  • tanto no momento mesmo da tentação, seja após um curto período,
  • como o demonstra Evágrio ao descrever a conduta a se manter diante
  • do demônio que ele chama de “vagabundo”: não lhe dizer nada no
  • próprio instante, mas observar o modo como ele procura arrastar o
  • intelecto em todas as suas divagações; ele se retirará então por si
  • mesmo, “pois ele não admite ser visto enquanto faz das suas”; Evágrio
  • aconselha a deixá-lo agir assim inclusive nos dias que se seguem, de
  • maneira a “conhecer em detalhe todas as suas maquinações”, após o
  • que se pode colocá-lo em fuga “desmascarando-o com uma simples
  • palavra”. Como isto pode ser difícil de executar no próprio instante da
  • tentação, Evágrio aconselha ao gnóstico remeter-se à memória de tudo
  • o que se passou, no dia seguinte, a fim de poder mostrar ao demônio,
  • quando este se apresentar novamente, que ele viu e compreendeu todo
  • seu jogo; deste modo desmascarado, o demônio fugirá envergonhado
  • (9).
  • Ao longo de toda essa luta contra os demônios deve crescer no
  • gnóstico a aversão que ele deve sentir em relação a estes: se
  • necessário, o “médico das almas”, Jesus Cristo, que já o assistiu
  • durante todo seu percurso ascético, utilizará o “abandono espiritual”,
  • abandono fingido e provisório, com o fim de estimulá-lo e conduzi-lo à
  • “aversão perfeita” em relação aos demônios, só experimentada por
  • aquele que “não peca nem em ato nem em pensamento”, e que é “o
  • sinal da maior e mais primordial impassibilidade”, acesso à mais alta
  • ciência (10; 3).
  • É no capítulo 40 que Evágrio trata mais especificamente da
  • contemplação espiritual e dos seus diferentes graus, aos quais chega
  • paulatinamente o gnóstico. Ele procede também por “representações”
  • (noèmata), mas aqui surge uma distinção fundamental: Evágrio
  • distingue entre as representações que deixam uma marca no intelecto
  • e as que não deixam (41); as que deixam uma marca são, como vimos,
  • aquelas que procedem da percepção, por intermédio dos sentidos do
  • corpo, de um objeto corporal; mas quando o gnóstico se eleva à
  • contemplação de sua “razão” – seu logos, termo que designa aquilo
  • que é a um tempo sua razão de ser e seu princípio explicativo – a
  • representação não possui marca nem figura ; e quando intelecto passa
  • à contemplação das naturezas incorpóreas, quer se trate destas em si
  • ou de suas “razões”, as representações também não deixarão nem
  • marca nem figura nele; a bem dizer, só podemos falar em
  • “representações” (noèmata) aqui por pura analogia; trata-se, na
  • realidade, de “contemplações” (theorèmata); os theorèmata, termo
  • empregado por Evágrio geralmente no plural, correspondem, na
  • contemplação (theoria) espiritual, àquilo que são os noèmata para o
  • conhecimento sensível. Com mais razão ainda, quando se trata da
  • ciência de Deus, na expressão to noema tou Theou (41), o termo
  • noema, empregado de maneira analógica, não significa mais a
  • “representação”, mas a ideia, o conceito, ou melhor, o pensamento, a
  • lembrança de Deus, ê mnème tou Theou, como diz Evágrio em um
  • contexto análogo em Discípulos, 61; com efeito, este estado não
  • poderia implicar nenhuma vacuidade de espírito. Ao progredir na
  • ciência, elevando-se de contemplação em contemplação, o intelecto
  • chega, num momento privilegiado, à “oração pura”: ele vê então a si
  • próprio como “lugar de Deus”, “semelhante à safira e à cor do céu”,
  • conforme o relato da teofania do Sinai em Êxodo, XXIV, 10-112
  • 2 Javé disse a Moisés: “Suba até mim com Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos de Israel, e adorem de longe. Só Moisés se aproximará de Javé; os outros não se aproximarão, nem o povo
  • subirá com ele’. Moisés desceu e contou ao povo tudo o que Javé lhe havia dito e todas as leis. O povo respondeu unânime: ‘Faremos tudo o que Javé disse’. Moisés colocou por escrito todas as
  • palavras de Javé. Depois levantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze
  • estelas para as doze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de Israel oferecerem
  • holocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de comunhão. Moisés pegou a metade do
  • sangue e colocou em bacias; a outra metade do sangue, ele a derramou sobre o altar. Pegou o
  • livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram: ‘Faremos tudo o que Javé mandou e passagem na qual a Septuaginta substituiu o “Deus” do texto hebraico
  • pelo “lugar de Deus” (39). Esta visão é caracterizada por uma luz, que
  • é a própria luz de Deus (15), luz que de certo modo é refletida pelo
  • intelecto e da qual Evágrio diz paradoxalmente que “modela o lugar de
  • Deus” (40). Nesta visão, o intelecto deve não apenas estar desprovido
  • de toda e qualquer representação de objetos sensíveis, mas deve ainda
  • elevar-se acima da contemplação espiritual das naturezas criadas,
  • tanto das corpóreas como das incorpóreas (40).
  • O Tratado Sobre os Pensamentos termina com aquilo que
  • constitui o cume da vida espiritual, ele que havia iniciado com a
  • lembrança dos exercícios da vida prática; desta forma ele retraça,
  • malgrado o aspecto desordenado da matéria que o constitui, todo o
  • itinerário espiritual da alma desde sua condição presente até seu término, a visão da luz divina.

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