- A Doutrina
- 1. Natureza do Texto
- Como muitos outros livros de Evágrio, em especial o Praktikos,
- o Gnostikos, o Kephalaia Gnostica etc., o Tratado Sobre os
- Pensamentos é formado por aquilo que Evágrio denomina kephalaia;
- este termo figura no próprio título do tratado, em grande parte da
- tradição manuscrita; o próprio Evágrio o emprega no presente tratado,
- quando ele se refere ao kephalaion 17 (correspondente ao capítulo 24,
- #4-5). Na falta de melhor, traduzimos kephalaion por “capítulo”, mas
- este termo não deve ser tomado no sentido que lhe damos atualmente.
- Diferentemente de uma obra moderna, os kephalaia não fazem parte
- de um discurso contínuo; cada kephalaion é autônomo, formando um
- todo em si mesmo e consagrado a um único objeto. Os kephalaia aqui
- são de tamanho bastante variável: o mais longo (25) tem um
- desenvolvimento de 56 linhas; os mais curtos (38-40; 42-43) têm
- menos de dez linhas; o mais comum é terem de 15 a 30 linhas. Às vezes
- diversos capítulos referentes a um mesmo tema seguem-se e parecem
- agrupados; é o que acontece com os capítulos 27, 28 e 29 sobre os
- sonhos e visões noturnos; uma fórmula de transição, no início do
- capítulo 27, introduz o assunto. Mas, habitualmente, cada capítulo é
- independente daqueles que o precedem ou seguem, o que é frisado
- pela ausência – salvo raras exceções – de partículas de ligação no
- início dos capítulos. Ao contrário, encontramos às vezes kephalaia
- formados, em parte (26) ou inteiramente (31), de outros kephalaia
- independentes reunidos aqui de modo mais ou menos artificial pelo
- emprego de partículas de ligação.
- Em outras obras formadas por kephalaia, estes, embora
- independentes uns dos outros, vêm organizados segundo certos
- temas, de tal forma que o conjunto pode apresentar algum
- ordenamento das matérias. No presente Tratado não discernimos
- servindo de introdução e de alguns capítulos curtos no final (38-40; 42-
- 43), que fazem as vezes de conclusão, nenhum plano ou ordenamento
- transparece no corpo do Tratado. Quanto à ordem dos capítulos e
- mesmo à sua divisão, existem importantes divergências na tradição
- manuscrita, e o texto apresentado aqui está baseado em algumas
- opções. Esta desordem tem sua origem nas vicissitudes da tradição
- manuscrita, bem como no próprio estado em que Evágrio legou o texto,
- sem tê-lo revisado, ao que parece. Daí a necessidade que
- encontramos, para a exposição da doutrina, em si mesma muito
- coerente, de reagrupar alguns textos que estavam dispersos no corpo
- do tratado.
- 2. Síntese Doutrinal
- O Tratado Sobre os Pensamentos apresenta uma ligação
- estreita com o Tratado Prático: este dirigia-se ao “prático” (praktikos)
- e o ensinava como chegar, por meio da “prática” (praktiké), aos
- umbrais da impassibilidade. O presente tratado está endereçado mais
- especificamente àquele que, tendo franqueado o portal da
- impassibilidade, tornou-se um “gnóstico” (gnostikos), alcançou a
- ciência espiritual ou “gnose”, e intenta elevar-se, através dos
- diferentes graus da contemplação, até a “oração pura” e a visão da luz
- divina. Assim, para o gnóstico, a prática, ou seja, a luta pela
- impassibilidade, deve prosseguir, pois a impassibilidade comporta
- vários níveis e, para progredir na ciência, ele deve progredir na
- impassibilidade, desde o início desta (ou “pequena impassibilidade”,
- capítulo 15) até a “maior e primeira impassibilidade” (capítulo 10). Por
- conseguinte, o combate contra os demônios e os pensamentos que
- estes sugerem, que é a essência da prática, continua na vida gnóstica;
- mas o gnóstico não tem que combater apenas os demônios que se
- opõem à prática, atacando a “parte passional da alma”, mas também
- aqueles que flagelam a parte racional e são adversários da
- contemplação, conforme a distinção que é feita no capítulo 84 do
- Tratado Prático.
- Esta distinção é retomada, em outros termos, no presente
- tratado. No capítulo 18, Evágrio distingue entre os demônios que nos
- atacam enquanto animais que somos e aqueles que nos atacam
- enquanto homens, seres providos de razão. Estes últimos são os que
- se agarram ao nosso intelecto, instrumento da ciência. Os primeiros
- fazem agir contra a sua natureza as partes concupiscente e irascível,
- cujo conjunto forma aquilo que o Praktikos denomina “a parte
- passional da alma”, parte que temos em comum com os animais. Sobre
- a parte concupiscente agem especialmente o demônio da gula que
- sabe recorrer a truques para quebrar a abstinência já bem adquirida
- pelo gnóstico (35) e, mais violento, o da fornicação que não hesita em
- impor ao espírito daquele que já triunfou sobre seus maus
- pensamentos a visão de cenas eróticas, chegando mesmo a atacar a
- carne, fazendo-a ceder a um “abrasamento animal”; mas estas
- tentações, assegura Evágrio, não duram muito, expulsas por meio de
- uma prece intensa, da ascese e da contemplação (16). Bem mais
- temíveis e duráveis são, para o gnóstico, aqueles que colocam em
- ebulição sua parte irascível; dela provém aquele que é um dos
- principais obstáculos à oração pura: “Se alguém quiser obter a oração
- pura (...) que domine sua irascibilidade e vigie os pensamentos que ela
- engendra, ou seja, aqueles que têm sua origem na suspeita, no ódio e
- no rancor, que mais do que tudo cegam o intelecto...” (5, 16, 32). Como
- no Gnostikos, (cap. 8), Evágrio repreende aqueles que “acendem sua
- irascibilidade” processando seus irmãos sob o pretexto de que os bens
- a que eles renunciaram devem ser distribuídos aos pobres (32); é a
- prova de uma renúncia imperfeita (5).
- Mas, sobretudo, os demônios contra os quais deve lutar o
- gnóstico são aqueles que, atacando-o em sua condição de homem,
- flagelam seu intelecto e se opõem ao progresso na via da
- contemplação; estes demônios são principalmente os da vanglória e
- do orgulho (18). Estão expostos à vanglória aqueles que adquiriram
- “um começo de impassibilidade” (15); ela nasce das próprias práticas
- ascéticas, das renúncias, das esmolas, do jejum, quando são
- cumpridos com o desejo de dar espetáculo aos homens e disto tirar
- alguma glória (3, 30); o demônio da vanglória aproveita-se do fracasso
- dos outros demônios, depois do que ele lhes reabre as portas da alma
- ____________________________
- (14). O pensamento da vanglória é, dentre todos os pensamentos,
- aquele que dispõe de mais matéria: “ele abarca quase toda a terra
- habitada e abre a porta para todos os demônios” (14); é provavelmente
- o demônio da vanglória que Evágrio chama de “vagabundo”, que se
- aproxima dos irmãos sobretudo no início da aurora e “conduz o
- intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa,
- aonde o monge faz muitos reencontros, caindo, seja sob o demônio da
- fornicação, seja sob o da cólera ou o da tristeza (9). Os pensamentos
- persistentes de vanglória entregam aos poucos a alma ao demônio
- “que torna a alma insensível”, o qual faz com que ela não mais
- considere o pecado como pecado, não creia mais no castigo nem no
- julgamento eternos, que permaneça insensível aos argumentos tirados
- da Escritura e à reprovação dos irmãos (11). Do pensamento da
- vanglória nasce o do orgulho (14), vício supremo que “provoca a perda
- do espírito” (21, 26),
- Como pode o gnóstico lutar contra esses demônios e contra os
- pensamentos inspirados por eles, de modo a escapar ao desastre final
- a que conduz o orgulho e, ao contrário, continuar progredindo na
- ciência até alcançar a oração pura?
- Evágrio sugere ao monge que se torna gnóstico os mesmos
- conselhos que lhe dava quando este se dedicava à vida prática; ele
- aconselha inclusive que o gnóstico não deve se preocupar com o que
- comer ou vestir, virtude da despreocupação que ele recomendava aos
- iniciantes em seu Bases da Vida Monástica. Assim como o prático, o
- gnóstico combaterá os maus pensamentos vindos da parte
- concupiscente de sua alma por meio de exercícios ascéticos, como o
- jejum, a vigília e o sono sobre leito duro; ele domará sua parte
- irascível, mais rebelde nele, pela longanimidade, a ausência de rancor,
- as esmolas (3), mas também pela salmodia e, sobretudo, fazendo
- crescer em si a virtude da mansidão (27); com efeito, “quase nenhuma
- virtude é tão temida pelos demônios quanto a mansidão” (13). O
- gnóstico que adquiriu um certo domínio sobre suas paixões tem outros
- meios para lutar contra os demônios; assim ele poderá utilizar, com a
- condição de que tenha suficiente domínio, sua parte irascível contra
- os ataques brutais do demônio da fornicação (16). Do mesmo modo ele
- pode fazer bom uso dos pensamentos da tristeza para destruir os dos
- outros demônios, com a condição de utilizá-los de forma
- “homeopática”, como se usa o veneno das víboras, tomado em
- pequenas doses, para destruir o veneno de outros animais (12).
- Sobretudo, o gnóstico possui, para combater os demônios, a
- ciência que ele adquiriu graças a ter alcançado a impassibilidade.
- Daqui para frente ele já não combate, como o fazia o prático, “à noite”,
- mas ele contempla “as razões da guerra” e “reconhece facilmente as
- manobras dos inimigos” (Pr 83). Agora ele sabe como os demônios
- introduzem nele seus pensamentos, o que lhe permite triunfar com
- mais facilidade. Eles o fazem utilizando aquilo que Evágrio denomina
- noémata, termo que designa a “representação”, a imagem, semelhante
- à marca que os objetos percebidos pelos sentidos deixam no intelecto
- (25). Estas representações estão no princípio do conhecimento, que é
- para Evágrio, segundo a tradição estóico-aristotélica, de origem
- sensível. Elas são dadas ao homem, em sua condição presente (em que
- ele está ligado a um corpo) para que, a partir delas, ele possa elevar-
- se a uma ciência mais alta, até a ciência do próprio Deus. Deus
- confiou-as a nós como um rebanho a um pastor, e nos deu a parte
- concupiscente da alma para que as amemos e a parte irascível para
- que as defendamos contra os “lobos”, ou seja, contra as
- representações enviadas pelos demônios (17).
- De fato, é utilizando as representações de objetos sensíveis que
- os demônios agem sobre a alma e introduzem nela seus maus
- pensamentos (2; 24), tentando desviar suas partes concupiscente e
- irascível de sua função natural para fazê-las servir ao seu próprio fim,
- que consiste em impedir o homem de alcançar a ciência. Essas
- representações vindas dos sentidos são conservadas na memória, de
- onde elas podem ser chamadas seja pelo intelecto, seja pelos próprios
- demônios (2), e se o objeto foi percebido com paixão, sua
- representação mantém, mesmo chamada pela memória, um caráter
- passional. Com o monge a quem Evágrio se dirige e que é, por seu
- estado, um solitário, um “anacoreta” – portanto, em princípio,
- afastado dos “objetos” que atingem os sentidos1 – os demônios
- utilizam, sobretudo as representações conservadas na memória; em
- pleno deserto, o encontro, mais ou menos recente, com um irmão,
- pode estar na origem de uma representação passional persistente,
- como no caso do monge que guardava rancor de outro cujo rosto não
- cessava de obcecá-lo durante a prece (37); mesmo na solidão da cela,
- o monge não está ao abrigo das más representações; assim, quando
- ele está aplicado na leitura das Escrituras, os demônios sabem utilizar
- o próprio texto sagrado para sugerir seus maus pensamentos (33). Mas
- no solitário, as representações são feitas principalmente das
- lembranças apaixonadas que alimentam e amplificam as divagações
- da imaginação, às quais a solidão, dia e noite, dá livre curso.
- Como podem os demônios agir sobre a memória e nela buscar
- as representações? Sem dúvida, por intermédio das paixões, supõe
- Evágrio (4). Mas como podem eles conhecer as paixões que estão na
- alma e as representações conservadas na memória? Com efeito,
- Evágrio assegura que somente Deus é “cardiognóstico”, ou seja,
- somente ele conhece o que está dentro do coração dos homens; mas
- os demônios podem conhecê-lo observando os sinais exteriores,
- gestos ou palavras, no que eles são muito hábeis (37). Do mesmo modo
- eles não podem agir sobre nosso espírito senão passando pelo nosso
- corpo. Evágrio descreve de maneira muito precisa e bastante curiosa,
- a partir daquilo que ele próprio observou, como alguns demônios
- fazem adormecer aqueles que leem tocando suas pálpebras e,
- fazendo-os bocejar, insinuam-se no interior de sua boca (33); da
- mesma forma, o demônio da tristeza, agindo sobre a pupila, cria um
- obstáculo à oração evocando a imagem de um pecado há tempos
- cometido (36). Dentre essas representações com as quais nos tentam
- os demônios está a de nosso próprio corpo, que está no campo de
- nossos sentidos com exceção do rosto; por meio desta representação
- nós nos vemos indo e vindo e, quando se apresenta a figura de outra
- pessoa, estendendo a mão para dar ou receber; e é assim que, quando
- surge a tentação, nos imaginamos nos irritando contra um irmão ou
- 1 O termo pragmata pode designar tanto pessoas como coisas; trata-se sempre de “objetos” da percepção sensível.
- fornicando com uma mulher (25). Se o monge se abandona a isto, essas
- imagens se sucedem em seu espírito, sugeridas por vários demônios
- que se seguem ao primeiro; assim, vítima do demônio da avareza, ele
- se vê inicialmente, em imaginação, encarregado da gestão do
- dispensário dos pobres e, para tanto, recolhendo grandes somas de
- dinheiro; logo sobrevêm as imagens da vanglória: ele se vê cercado da
- estima de muitos e promovido, não sem algumas contestações que o
- irritam, à prelazia; surgem então visões provocadas pelo orgulho,
- visões aterradoras, feitas de relâmpagos ininterruptos, de aparições
- de dragões alados na cela, visões que levam o monge à perda do
- espírito e à loucura (21). A este mal estão especialmente sujeitos os
- que se retiram para a solidão, longe dos irmãos, porém ainda
- susceptíveis aos golpes da cólera, da tristeza ou do orgulho (23).
- A essas imagens do dia acrescentam-se as imaginações
- noturnas, chamadas de fantasiai; os demônios sabem provocar
- naquele que dorme e cujas partes concupiscente e irascível não estão
- ainda suficientemente purificadas, imaginações que despertam nele
- as paixões; para tanto, eles sacodem a memória, liberando
- representações que esta guardava à parte; às vezes eles se utilizam de
- percepções que chegam aos sentidos do adormecido, como por
- exemplo o ruído do vento (28), como fazem com o barulho das ondas
- para os navegantes (4). Assim eles provocam sonhos terrificantes, e o
- monge adormecido se vê presa de áspides aladas, cercado por animais
- ferozes carnívoros, estrangulado por serpentes ou atirado do alto de
- montanhas elevadas; às vezes ele vê os demônios se transformarem
- em mulheres com atitudes indecentes e provocantes (27). Quando não
- conseguem sacudir assim as partes concupiscente e irascível, os
- demônios provocam sonhos de vanglória: o monge se enxerga vestido
- com o manto de pastor e apascentando um rebanho, representação
- simbólica da dignidade da qual ele se crê investido; revestido com a
- prelazia, talvez do dom da cura, ele vê afluir para si, de todos os países,
- pessoas trazendo presentes. Às vezes, ao contrário, são as visões da
- tristeza, de infelicidades ocorridas a seus próximos ou de perigos que
- o ameaçam: ele se vê, por exemplo, caindo de altas escadas, símbolo
- de seu naufrágio na vida monástica (28). Às vezes estas imaginações
- da noite prosseguem durante o dia (27); com efeito, os demônios
- sabem combinar as representações do dia com as imaginações da
- noite, pois a parte passional da alma é mais facilmente excitada
- durante o dia quando foi perturbada por visões na noite precedente;
- ou, inversamente, eles procuram humilhar com visões noturnas
- aqueles que foram perturbados no dia anterior.
- Como pode o gnóstico combater esses demônios e os
- pensamentos que eles sugerem e por que meios poderá ele triunfar?
- É preciso, em primeiro lugar, identificar o demônio autor da
- tentação que se apresenta. O gnóstico o identificará a partir da
- natureza da representação que a acompanha; se for a imagem de
- alguém que o ofendeu ou irritou que se apresenta ao seu espírito, é o
- sinal de que é o demônio da cólera que o está tentando; e o mesmo
- ocorrerá com relação aos outros pensamentos (2). Identificado o
- demônio, como expulsar a representação de que ele se serviu para
- tentar introduzir seus pensamentos? Evágrio coloca em princípio que
- nosso espírito não pode receber ao mesmo tempo as representações
- de dois objetos diferentes e que, portanto, ele não pode ser tentado por
- dois demônios simultaneamente. O procedimento a que recorrerá o
- gnóstico consistirá, por conseguinte, em expulsar a representação
- intrometida de um mau pensamento provocando a vinda de uma outra
- representação (24).
- Ser-lhe-á também possível expulsar o mau pensamento por
- meio de um bom pensamento, pois se os maus pensamentos “cortam”
- os bons, inversamente os bons pensamentos podem cortar os maus
- (17). Se, com efeito, em suas obras, Evágrio fala sobretudo dos maus
- pensamentos – a tal ponto que, sob sua pena, a palavra “pensamento”
- empregada sem qualificativo, designa por si só quase sempre, os maus
- pensamentos – nem por isso deixa de ser claro para ele que existem
- também os bons pensamentos, cuja origem e cuja natureza são
- precisamente definidas neste Tratado Sobre os Pensamentos, melhor
- do que em qualquer outro. No capítulo 8 Evágrio distingue, além dos
- “pensamentos demoníacos”, ou seja maus, os “pensamentos
- humanos”, constituídos de representações simples desprovidas de
- paixão, e os “pensamentos angélicos”, que perscrutam a natureza das
- coisas criadas e as suas “razões”; são estes que acompanham a
- contemplação espiritual. Levando mais longe sua análise, Evágrio
- distingue, no capítulo 31, dentre os pensamentos humanos aqueles
- que são bons e os que são maus: os bons são, de um lado, aqueles que
- provêm de nossa natureza, que é boa como tudo o que Deus criou –
- estes pensamentos são os mesmos que fazem com que também os
- pagãos amem seus filhos e honrem seus pais – e, de outro, aqueles que
- provêm de nossa vontade, quando esta, segundo a clássica
- comparação da balança, “inclina-se pelo melhor”; maus são os
- pensamentos que vêm de nossa vontade quando ela “se inclina pelo
- pior”. Assim diz Evágrio que “ao pensamento demoníaco opõem-se
- três pensamentos que o cortam quando ele se demora no espírito” (31):
- o pensamento angélico e os dois pensamentos humanos bons.
- Para cortar os pensamentos diabólicos, os mais eficazes são
- evidentemente os pensamentos angélicos. São estes que, na
- contemplação (theoria) espiritual em que deve progredir o gnóstico,
- formam o que Evágrio chama de “as contemplações” (theorêmata); à
- sua ação juntam-se os “sonhos angélicos” que, à noite, visitam os que
- são puros e impassíveis (4); contrariamente aos sonhos demoníacos,
- “eles trazem uma grande calma à alma, uma alegria inefável” e,
- durante o dia, “a supressão dos pensamentos passionais, a prece pura
- e até algumas razões dos seres, que começam a aparecer sob a ação
- do Senhor e que revelam a sabedoria do Senhor” (28). Os bons
- pensamentos e as contemplações que o gnóstico assim adquiriu são
- semelhantes às pedras que Davi tirou de sua bolsa de pastor para
- abater Golias, imagem do demônio. Eles dizem respeito aos anjos e aos
- demônios, ao modo como eles nos visitam e agem sobre nós, ao modo
- como Lúcifer, em especial, decaído de seu estado original, tenta
- arrastar a todos os outros seres em sua queda. Estas considerações
- “ferem gravemente o demônio e colocam em fuga todo o seu
- acampamento”. O gnóstico poderá então enfrentar o demônio “mano
- a mano” e agir como Davi que cortou a cabeça de Golias com a própria
- espada deste (19).
- O gnóstico pode, realmente, triunfar sobre o demônio
- utilizando as mesmas armas deste, ou seja, os próprios maus
- pensamentos. Ele o fará por meio da análise, decompondo o
- pensamento em seus diversos elementos: assim, “ao longo da sua
- investigação, o pensamento, reabsorvido em seu próprio exame, será
- destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito
- terá sido elevado aos cumes por meio desta ciência” (19).
- Esta análise, que é um procedimento altamente intelectual, ao
- alcance apenas do gnóstico já bastante avançado na impassibilidade e
- na ciência, está fundamentada sobre a observação, que pode ser feita
- tanto no momento mesmo da tentação, seja após um curto período,
- como o demonstra Evágrio ao descrever a conduta a se manter diante
- do demônio que ele chama de “vagabundo”: não lhe dizer nada no
- próprio instante, mas observar o modo como ele procura arrastar o
- intelecto em todas as suas divagações; ele se retirará então por si
- mesmo, “pois ele não admite ser visto enquanto faz das suas”; Evágrio
- aconselha a deixá-lo agir assim inclusive nos dias que se seguem, de
- maneira a “conhecer em detalhe todas as suas maquinações”, após o
- que se pode colocá-lo em fuga “desmascarando-o com uma simples
- palavra”. Como isto pode ser difícil de executar no próprio instante da
- tentação, Evágrio aconselha ao gnóstico remeter-se à memória de tudo
- o que se passou, no dia seguinte, a fim de poder mostrar ao demônio,
- quando este se apresentar novamente, que ele viu e compreendeu todo
- seu jogo; deste modo desmascarado, o demônio fugirá envergonhado
- (9).
- Ao longo de toda essa luta contra os demônios deve crescer no
- gnóstico a aversão que ele deve sentir em relação a estes: se
- necessário, o “médico das almas”, Jesus Cristo, que já o assistiu
- durante todo seu percurso ascético, utilizará o “abandono espiritual”,
- abandono fingido e provisório, com o fim de estimulá-lo e conduzi-lo à
- “aversão perfeita” em relação aos demônios, só experimentada por
- aquele que “não peca nem em ato nem em pensamento”, e que é “o
- sinal da maior e mais primordial impassibilidade”, acesso à mais alta
- ciência (10; 3).
- É no capítulo 40 que Evágrio trata mais especificamente da
- contemplação espiritual e dos seus diferentes graus, aos quais chega
- paulatinamente o gnóstico. Ele procede também por “representações”
- (noèmata), mas aqui surge uma distinção fundamental: Evágrio
- distingue entre as representações que deixam uma marca no intelecto
- e as que não deixam (41); as que deixam uma marca são, como vimos,
- aquelas que procedem da percepção, por intermédio dos sentidos do
- corpo, de um objeto corporal; mas quando o gnóstico se eleva à
- contemplação de sua “razão” – seu logos, termo que designa aquilo
- que é a um tempo sua razão de ser e seu princípio explicativo – a
- representação não possui marca nem figura ; e quando intelecto passa
- à contemplação das naturezas incorpóreas, quer se trate destas em si
- ou de suas “razões”, as representações também não deixarão nem
- marca nem figura nele; a bem dizer, só podemos falar em
- “representações” (noèmata) aqui por pura analogia; trata-se, na
- realidade, de “contemplações” (theorèmata); os theorèmata, termo
- empregado por Evágrio geralmente no plural, correspondem, na
- contemplação (theoria) espiritual, àquilo que são os noèmata para o
- conhecimento sensível. Com mais razão ainda, quando se trata da
- ciência de Deus, na expressão to noema tou Theou (41), o termo
- noema, empregado de maneira analógica, não significa mais a
- “representação”, mas a ideia, o conceito, ou melhor, o pensamento, a
- lembrança de Deus, ê mnème tou Theou, como diz Evágrio em um
- contexto análogo em Discípulos, 61; com efeito, este estado não
- poderia implicar nenhuma vacuidade de espírito. Ao progredir na
- ciência, elevando-se de contemplação em contemplação, o intelecto
- chega, num momento privilegiado, à “oração pura”: ele vê então a si
- próprio como “lugar de Deus”, “semelhante à safira e à cor do céu”,
- conforme o relato da teofania do Sinai em Êxodo, XXIV, 10-112
- 2 Javé disse a Moisés: “Suba até mim com Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos de Israel, e adorem de longe. Só Moisés se aproximará de Javé; os outros não se aproximarão, nem o povo
- subirá com ele’. Moisés desceu e contou ao povo tudo o que Javé lhe havia dito e todas as leis. O povo respondeu unânime: ‘Faremos tudo o que Javé disse’. Moisés colocou por escrito todas as
- palavras de Javé. Depois levantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze
- estelas para as doze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de Israel oferecerem
- holocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de comunhão. Moisés pegou a metade do
- sangue e colocou em bacias; a outra metade do sangue, ele a derramou sobre o altar. Pegou o
- livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram: ‘Faremos tudo o que Javé mandou e passagem na qual a Septuaginta substituiu o “Deus” do texto hebraico
- pelo “lugar de Deus” (39). Esta visão é caracterizada por uma luz, que
- é a própria luz de Deus (15), luz que de certo modo é refletida pelo
- intelecto e da qual Evágrio diz paradoxalmente que “modela o lugar de
- Deus” (40). Nesta visão, o intelecto deve não apenas estar desprovido
- de toda e qualquer representação de objetos sensíveis, mas deve ainda
- elevar-se acima da contemplação espiritual das naturezas criadas,
- tanto das corpóreas como das incorpóreas (40).
- O Tratado Sobre os Pensamentos termina com aquilo que
- constitui o cume da vida espiritual, ele que havia iniciado com a
- lembrança dos exercícios da vida prática; desta forma ele retraça,
- malgrado o aspecto desordenado da matéria que o constitui, todo o
- itinerário espiritual da alma desde sua condição presente até seu término, a visão da luz divina.
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