terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Psicologia da Evolução Possível ao Homem - Primeira Conferência

 


[Sobre definições e procedimentos fundamentais]

PRIMEIRA CONFERÊNCIA


[Notas: 

1. Como essa primeira conferência é um tanto extensa, ela será dividida em partes aqui no blog.

2. Todas as notas aqui são de Fra. J..] 


Vou falar do estudo da psicologia, mas devo preveni-los de que a psicologia a que me refiro é muito diferente do que possam conhecer por esse nome. Antes de tudo, devo dizer que nunca, no curso da história, a psicologia se encontrou em nível tão baixo. Perdeu todo contato com sua origem e todo o seu sentido, a tal ponto que hoje é difícil definir o termo “psicologia”, isto é, precisar o que é a psicologia e o que ela estuda. E isto, apesar de, no curso da história, jamais se ter visto tantas teorias psicológicas nem tantos livros sobre psicologia. A psicologia é, às vezes, chamada uma ciência nova. Nada mais falso. Ela é, talvez, a ciência mais antiga; infelizmente, em seus aspectos essenciais, é uma ciência esquecida. Como definir a psicologia? Para compreender isso, é preciso dar-se conta de que, exceto nos tempos modernos, a psicologia jamais existiu com seu próprio nome. Por vários motivos, sempre foi suspeita de apresentar tendências falsas e subversivas, de caráter religioso, político ou moral, e sempre teve que se ocultar sob diferentes disfarces. Durante milênios, a psicologia existiu com o nome de filosofia. Na Índia, todas as formas de Ioga, que são essencialmente psicologia, são descritas como um dos seis sistemas de filosofia. Os ensinamentos sufis, que são, antes de tudo, de ordem psicológica, são considerados em parte religiosos, em parte metafísicos. Na Europa, até pouco tampo atrás, nos últimos anos do século XIX, muitas obras de psicologia eram citadas como obras de “filosofia”. E embora quase todas as subdivisões da filosofia, tais como a lógica, a teoria do conhecimento, a ética e a estética, refiram-se ao trabalho do pensamento humano ou ao dos sentidos, considerava-se a psicologia inferior à filosofia e relacionada somente com os aspectos mais baixos ou mais triviais da natureza humana. Ao mesmo tempo que subsistia com o nome de filosofia, a psicologia permaneceu por mais tempo ainda associada a uma ou outra religião. Isso não significa que religião e psicologia jamais tenham sido uma única e mesma coisa, nem que a relação entre religião e psicologia tenha sido sempre reconhecida. Mas não há dúvida de que quase todas as religiões conhecidas – evidentemente não falo das pseudo-religiões modernas – desenvolveram esta ou aquela espécie de ensinamento psicológico, acompanhado, muitas vezes, de certa prática, de modo que freqüentemente o estudo da religião comportava, já por si mesmo, o da psicologia. Na literatura religiosa mais ortodoxa de diferentes países e diversas épocas encontram-se excelentes obras sobre psicologia. Por exemplo, esta compilação de autores que datam dos primeiros tempos do cristianismo e que se conhece pelo título geral de Philokalia, livros que ainda hoje estão em uso na igreja oriental, onde são reservados principalmente para a instrução dos monges. No tempo em que a psicologia estava ligada à filosofia e à religião, ela existia também sob a forma de Arte. Poesia, Tragédia, Escultura, Dança, a própria Arquitetura, eram meios de transmissão do conhecimento 5 psicológico. Certas catedrais góticas, por exemplo, eram essencialmente tratados de psicologia. Na antiguidade, antes que a filosofia, a religião e a arte adotassem as formas independentes sob as quais as conhecemos hoje, a psicologia encontrava sua expressão nos Mistérios, tais como os do Egito e da Grécia antiga. Mais tarde, desaparecidos os Mistérios, a psicologia sobreviveu a eles sob a forma de ensinamentos simbólicos, que ora se encontravam ligados à religião da época, ora não, tais como a Astrologia, a Alquimia, a Magia e, entre os mais modernos, a Maçonaria, o Ocultismo e a Teosofia. Aqui é indispensável observar que todos os sistemas e doutrinas psicológicos, tanto os que existiram ou existem abertamente, como aqueles que permaneceram ocultos ou disfarçados, podem dividir-se em duas categorias principais. 

 Primeira: as doutrinas que estudam o homem tal como o encontram ou tal como o supõem ou imaginam. A “psicologia científica” moderna, ou o que se conhece por esse nome, pertence a essa categoria. Segunda: as doutrinas que estudam o homem não do ponto de vista do que ele é ou parece ser, mas do ponto de vista do que ele pode chegar a ser, ou seja, do ponto de vista de sua evolução possível.*

[Nota: Lembre da visão  oriental. No ocidente as pessoas dão significados, no oriente admite-se que tudo tem significado próprio e as pessoas devem descobrir o verdadeiro; no ocidente lida-se apenas com o que todos podem ver, no oriente busca-se ampliar a visão.]

Estas últimas são, na realidade, as doutrinas originais ou, em todo caso, as mais antigas e as únicas que podem fazer compreender a origem esquecida da psicologia e sua significação. Quanto tivermos reconhecido como é importante, no estudo do homem, o ponto de vista de sua evolução possível, compreenderemos que a primeira resposta à pergunta: o que é psicologia? deveria ser: psicologia é o estudo dos princípios, leis e fatos relativos à evolução possível do homem. Nestas conferências, colocar-me-ei exclusivamente em tal ponto de vista. Nossa primeira pergunta será: o que significa a evolução do homem? E a segunda: ela exige condições especiais? Devo dizer, antes de tudo, que não poderíamos aceitar as concepções modernas sobre a origem do homem e sua evolução passada. Devemos dar nos conta de que nada sabemos sobre essa origem e de que carecemos de qualquer prova de uma evolução física ou mental do homem. Muito ao contrário, se tomarmos a humanidade histórica, isto é, a dos dez ou quinze mil últimos anos, podemos encontrar sinais inconfundíveis de um tipo superior de humanidade, cuja presença pode ser demonstrada por múltiplos testemunhos e monumentos da antiguidade, os quais os homens atuais seriam incapazes de recriar ou imitar. Quanto ao “homem pré-histórico”, ou a essas criaturas de aspecto semelhante ao homem e, todavia, tão diferentes dele, cujos ossos se encontram, às vezes, em depósitos do período glacial ou pré-glacial, podemos aceitar a idéia muito plausível de que essas ossadas pertenciam a um ser bem distinto do homem, desaparecido há muito tempo. Ao negar a evolução passada do homem, devemos recusar-lhe toda possibilidade de uma evolução mecânica futura, isto é, de uma evolução que se operaria por si só, segundo as leis da hereditariedade e da seleção, 6 sem esforços conscientes por parte do homem e sem que este tenha compreendido sequer a possibilidade de sua evolução. Nossa idéia fundamental é a de que o homem, tal qual o conhecemos, não é um ser acabado. A natureza o desenvolve até certo ponto e logo o abandona., deixando-o prosseguir em seu desenvolvimento por seus próprios esforços e sua própria iniciativa, ou viver e morrer tal como nasceu, ou, ainda, degenerar e perder a capacidade de desenvolvimento. No primeiro caso, a evolução do homem significará o desenvolvimento de certas qualidades e características interiores que habitualmente permanecem embrionárias e que não podem se desenvolver por si mesmas. A experiência e a observação mostram que esse desenvolvimento só é possível em condições bem definidas, que exige esforços especiais por parte do próprio homem, e uma ajuda suficiente por parte daqueles que, antes dele, empreenderam um trabalho da mesma ordem e chegaram a um certo grau de desenvolvimento ou, pelo menos, a um certo conhecimento dos métodos. Devemos partir da idéia de que sem esforços a evolução é impossível e de que, sem ajuda, é igualmente impossível. Depois disso, devemos compreender que, no caminho do desenvolvimento, o homem deve tornar-se um ser diferente e devemos estudar e conceber de que modo e em que direção deve o homem converter se num ser diferente, isto é, o que significa um ser diferente. Depois, devemos compreender que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes. A evolução é questão de esforços pessoais e, em relação à massa da humanidade, continua a ser exceção rara. Isso talvez possa parecer estranho, mas devemos dar-nos conta não só de que a evolução é rara, mas também que se torna cada vez mais rara. Isso, naturalmente, provoca numerosas perguntas: Que significa esta frase: “No caminho da evolução o homem deve tornar-se um ser diferente”? O que quer dizer “um ser diferente”? Quais são essas qualidades e características interiores que podem ser desenvolvidas no homem e como chegar até elas? Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes? Por que semelhante injustiça? Tentarei responder a essas perguntas, começando pela última. Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes? 

[Nota: os obstáculos  mentais, condicionamentos prejudiciais, pecados, desvios psicológicos... também são a causa do embasamento e distorção da visão clara.]

A resposta é muito simples. Porque não o desejam. Porque nada sabem a respeito e ainda que se lhes diga, não o compreenderão antes de uma longa preparação. A idéia essencial é que, para tornar-se um ser diferente, o homem deve desejá-lo intensamente e por muito tempo. Um desejo passageiro ou vago, nascido de uma insatisfação no que diz respeito às condições exteriores, não criará um impulso suficiente. 7 A evolução do homem depende de sua compreensão do que pode adquirir e do que deve dar para isso. Se o homem não o desejar, ou não o desejar com bastante intensidade e não fizer os esforços necessários, jamais se desenvolverá. Não há, pois, injustiça alguma nisso. Por que haveria de ter o homem o que não deseja? Se o homem fosse forçado a tornar-se um ser diferente, quando está satisfeito com o que é, aí sim, haveria injustiça.

[Nota: além disso existem outros obstáculos mentais, bloqueios, vícios, pecados e tudo mais que dificulta e tira a visão, impedindo não só de ver, mas tambem de buscar, de querer, de conseguir...]

Perguntemo-nos, agora, o que significa um ser diferente. Se examinarmos todos os dados que podemos reunir sobre essa questão, encontraremos sempre a afirmação de que, ao tornar-se um ser diferente, o homem adquire numerosas qualidades novas que antes não possuía. Essa afirmação é comum a todas as doutrinas que admitem a idéia de um crescimento interior do homem. Isso, porém, não basta. As descrições, ainda que as mais detalhadas, desses novos poderes não nos ajudarão de modo algum a compreender como aparecem nem de onde vêm. Falta um elo nas teorias geralmente admitidas, mesmo naquelas de que acabo de falar e que têm por base a idéia da possibilidade de uma evolução do homem.

A verdade é que antes de adquirir novas faculdades ou novos poderes, que não conhece e ainda não possui, o homem deve adquirir faculdades e poderes que tampouco possui, mas que se atribui, isto é, que crê conhecer e crê ser capaz de usar e de usar até com maestria. Esse é o “elo que falta”, e aí está o ponto de maior importância. No caminho da evolução, definido como um caminho baseado no esforço e na ajuda, o homem deve adquirir qualidades que crê já possuir, mas sobre as quais se ilude. Para compreender isso melhor, para saber que faculdades novas, que poderes insuspeitados pode o homem adquirir e quais são aqueles que imagina possuir, devemos partir da idéia geral que o homem tem de si mesmo. E encontramo-nos, de imediato, ante um fato importante. 

1 O homem não se conhece. 

Não conhece nem os próprios limites, nem suas possibilidades. Não conhece sequer até que ponto não se conhece. O homem inventou numerosas máquinas e sabe que, às vezes, são necessários anos de sérios estudos para poder servir-se de uma máquina complicada ou para controlá-la. Mas, quando se trata de si mesmo, ele esquece esse fato, ainda que ele próprio seja uma máquina muito mais complicada do que todas aquelas que inventou. Está cheio de idéias falsas sobre si mesmo. 

Antes de tudo, não se dá conta de que ele é realmente uma máquina.

[Nota: no sentido de ser mecânico, do agir autômato, condicionado, programado, no sentido de que age inconscientemente.] 

O que quer dizer: “O homem é uma máquina”? Quer dizer que não tem movimentos independentes, seja interior, seja exteriormente.

[Nota: significa que funciona mecanicamente; uma máquina bio-psíquica, pois essas duas partes, biológica e psíquica seguem suas leis mecânicas próprias]. 

É uma máquina posta em movimento por influências exteriores e choques exteriores. Todos os seus movimentos, ações, palavras, idéias, emoções, humores e pensamentos são provocados por influências exteriores. Por si mesmo, é tão-somente um autômato com certa provisão de 8 lembranças de experiências anteriores e certo potencial de energia em reserva.

2 Devemos compreender que o homem não pode fazer nada. 

O homem, porém não se apercebe disso e se atribui a capacidade de fazer. É o primeiro dos falsos poderes que se arroga. Isso deve ser compreendido com toda a clareza. O homem não pode fazer nada. Tudo o que crê fazer, na realidade, acontece. Isso acontece exatamente como “chove”, “neva” ou “venta”. Infelizmente, não há em nosso idioma verbos impessoais que possam ser aplicados aos atos humanos. Devemos, pois, continuar a dizer que o homem pensa, lê, escreve, ama, detesta, empreende guerras, combate, etc. Na realidade, tudo isso acontece. O homem não pode pensar, falar nem mover-se como quer [mas como é levado a querer]. É uma marionete, puxada para cá e para lá por fios invisíveis. Se compreender isso, poderá aprender mais coisas sobre si mesmo e talvez, então, tudo comece a mudar para ele. Mas, se não puder admitir nem compreender sua profunda mecanicidade, ou não quiser aceitá-la como um fato, não poderá aprender mais nada e as coisas não poderão mudar para ele. 

3 O homem é uma máquina, mas uma máquina muito singular. Pois, se as circunstâncias se prestarem a isso, e se bem dirigida, essa máquina poderá saber que é uma máquina. E se der-se conta disso plenamente, ela poderá encontrar os meios para deixar de ser máquina. 

[Nota: exteriormente ao verdadeiro "eu" existem muitos elementos, os falsos "eus", a carga genética, as pressões e condicionantes culturais, etc.]

4 Antes de tudo, o homem deve saber que ele não é um, mas múltiplo. 

Não tem um Eu único, permanente e imutável. Muda continuamente. Num momento é uma pessoa, no momento seguinte outra, pouco depois uma terceira e sempre assim, quase indefinidamente. O que cria no homem a ilusão da própria unidade ou da própria integralidade é, por um lado, a sensação que ele tem de seu corpo físico; por outro, seu nome, que em geral não muda e, por último, certo número de hábitos mecânicos implantados nele pela educação ou adquiridos por imitação. Tendo sempre as mesmas sensações físicas, ouvindo sempre ser chamado pelo mesmo nome e, encontrando em si hábitos e inclinações que sempre conheceu, imagina permanecer o mesmo. Na realidade não existe unidade no homem, não existe um centro único de comando, nem um “Eu”, ou ego, permanente. Eis aqui um esquema geral do homem: 



[Nota: além disso esses "eus" são mutáveis, impermanentes, uns se repetem e se imitam, outros não]

Cada pensamento, cada sentimento, cada sensação, cada desejo, cada “eu gosto” ou “eu não gosto”, é um “eu”. Esses “eus” não estão ligados entre si, nem coordenados de modo algum. Cada um deles depende das mudanças de circunstâncias exteriores e das mudanças de impressões. Tal “eu” desencadeia mecanicamente toda uma série de outros “eus”. Alguns andam sempre em companhia de outros. Não existe aí, porém, nem ordem nem sistema. Alguns grupos de “eus” têm vínculos naturais entre si. Falaremos desses grupos mais adiante. Por enquanto, devemos tratar de compreender que as ligações de certos grupos de “eus” constituem-se unicamente de associações acidentais, complementares imaginárias. recordações fortuitas ou semelhanças Cada um desses “eus” não representa, em dado momento, mais que uma ínfima parte de nossas funções, porém cada um deles crê representar o todo. Quando o homem diz “eu”, tem-se a impressão de que fala de si em sua totalidade, mas, na realidade, mesmo quando crê que isso é assim, é só um pensamento passageiro, um humor passageiro ou um desejo passageiro. Uma hora mais tarde, pode tê-lo esquecido completamente e expressar, com a mesma convicção, opinião, ponto de vista ou interesses opostos. O pior é que o homem não se lembra disso. Na maioria dos casos, dá crédito ao último “eu” que falou, enquanto este permanece, ou seja, enquanto um novo “eu” – às vezes sem conexão alguma com o precedente – ainda não tenha expressado com mais força sua opinião ou seu desejo. E agora, voltemos às outras perguntas. O que se deve entender por “desenvolvimento”? E o que quer dizer tornar-se um ser diferente? Em outras palavras, qual é a espécie de mudança possível ao homem? Quando e como se inicia essa mudança? Já dissemos que a mudança deve começar pela aquisição desses poderes e capacidades que o homem se atribui, mas que, na realidade, não possui. Isso significa que, antes de adquirir qualquer poder novo ou qualquer capacidade nova, o homem deve desenvolver nele as qualidades que crê possuir e sobre as quais ele cria para si as maiores ilusões. O desenvolvimento não pode se basear na mentira a si mesmo, nem no enganar-se a si mesmo. O homem deve saber o que é seu e o que não é seu. Deve dar-se conta de que não possui as qualidades que se atribui: 

1. a capacidade de fazer, 2. a individualidade ou a unidade, o Ego permanente, bem como 3. a consciência e a 

4. vontade. 

E é necessário que o homem saiba disso, pois enquanto imaginar possuir essas qualidades, não fará os esforços necessários para adquiri-las, da mesma maneira que um homem não comprará objetos preciosos, nem estará disposto a pagar um preço elevado por eles, se acreditar que já os possui. A mais importante e a mais enganosa dessas qualidades é a consciência. E a mudança no homem começa por uma mudança em sua maneira de compreender a significação da consciência e continua com a aquisição gradual de um domínio da consciência. 10 







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