Por Leszek Kolakowski.
Os escritores socialistas da primeira metade do século XIX podem ser classificados de várias maneiras.
Podemos estabelecer uma oposição entre os reformistas e os conspiradores, os romancistas e os teóricos, os democratas e os defensores do despotismo revolucionário, e entre os líderes da classe trabalhadora e os filantropos.
Por outro lado, a divisão entre aqueles cuja filosofia é baseada no materialismo do século XVIII e aqueles, tais como Weitling, Cabet e Lamennais, que invocam valores cristãos, não é uma diferença essencial.
Em ambos os casos, a sua utopia se funda na premissa de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade em virtude da sua humanidade, e que, sejam quais forem as diferenças inatas entre os indivíduos, eles são idênticos no que concerne aos seus direitos e deveres.
Essa concepção da natureza humana é tanto descritiva quanto normativa.
Dela podemos deduzir do que o homem necessita, e o que tem direito a receber, para ser verdadeiramente um homem, mas sabemos por antecipação que a resposta será a mesma para todo indivíduo.
A ideia de natureza humana pressupõe igualdade, quaisquer que se revelem as suas outras implicações.
A concepção da natureza humana é ao mesmo tempo uma descrição da vocação própria ao homem. Em toda a literatura utópica, pressupõe-se que os homens se destinam a viver num estado de igualdade e amor mútuo, e que a exploração, a opressão e o conflito de todos os tipos são contrários às determinações da natureza.
Naturalmente se coloca a questão: como pode se dar, em tal caso, que os homens tenham vivido por séculos de uma maneira incongruente com o seu verdadeiro destino? Essa é a questão mais difícil de responder do ponto de vista utópico.
Mesmo se supusermos que a alguém em algum momento tenha ocorrido conceber o sistema de propriedade privada, que de outro modo não teria sido instituído, como devemos explicar o fato de que a sua noção louca e, em última análise, inumana tenha sido adotada unanimemente?
Se pusermos a culpa nos "desejos maus", como pode se dar o caso de que tais desejos tenham vindo a dominar a sociedade?
Se é conforme à natureza do homem viver em amizade e igualdade com os seus companheiros, por que raramente ou nunca o encontramos a fazê-lo?
Como pode uma maioria da humanidade "verdadeiramente" querer algo que, consoante a experiência, os homens não querem?
Na visão utópica, a totalidade da história humana é uma calamidade monstruosa e, além disso, incompreensível.
Para o cristianismo tradicional não há nenhum problema, em razão da doutrina do pecado original e da corrupção da humanidade como a sua fonte.
Mas os utópicos deste período, mesmo quando se chamavam de cristãos, não acreditavam no pecado original; estavam assim privados desta explanação, e não tinham outra a oferecer.
Queriam o bem, mas o mal lhes era inconcebível e inexplicável.
Recorriam, sem exceção, à confusa ideia da natureza humana como algo já "dado" e não como uma simples norma arbitrária (pois nesse caso não haveria nenhuma razão para esperar que as pessoas se ajustassem a ela) — um tipo de realidade ou "essência", que estaria em estado de dormência em todos os indivíduos.
Pensando deste modo, os utopistas sentiram uma atração natural pela ideia do despotismo comunista.
Se sabemos que a natureza humana é realizada pelo sistema comunista, não importa, quando se trata de estabelecer este sistema, que proporção da humanidade quer aceitá-lo.
Jean-Jacques Pillot, no fim do seu panfleto “Ni chateaux ni chaumières” (1840), coloca a questão "E se as pessoas não quiserem isso?", e responde "E se os internos do Bicêtre [uma instituição para loucos] se recusarem a tomar banho?".
Se as pessoas estão fora do seu juízo perfeito, devem ser curadas à força.
Os utopistas não colocaram a questão adicional, que traz à mente o conto de Poe sobre o Professor Tarr e o Dr. Fether — como decidimos quem são os loucos e quem são os seus vigilantes?
Será que um homem realmente tem o direito de alegar que todos estão marchando em descompasso com a exceção dele mesmo?
Dizer que a humanidade deve decidir o seu próprio destino pode significar que a história deve ser deixada a cargo dos loucos, mas, se discordamos dos outros homens, devemos provar que nós mesmos somos os mentalmente sãos.
Enquanto foi possível apelar para a vontade divina como a uma autoridade irrenunciável, a questão era bastante simples.
Os utopistas fazem tal apelo quando lhes convém; mas, como sabemos, as Escrituras foram usadas por séculos para justificar a desigualdade e a ordem hierárquica da sociedade.
A mesma objeção poderia ser colocada para todos os utopistas, não apenas para os defensores do despotismo comunista, e, com efeito, foi colocada para Owen por Marx: quem deve educar os educadores?
Na resposta a esta questão reside a principal diferença entre a utopia de Marx e aquelas de todos os seus predecessores, entre o herdeiro da fenomenologia hegeliana e os herdeiros do materialismo francês.
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