sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Louis Claude de Saint-Martin - Ecce Homo - Capítulo II

 

Os principais testemunhos do homem consistem no fato que, sendo ele evidentemente um santo e sublime pensamento de Deus, se bem que não seja "O Pensamento de Deus", a sua essência é necessariamente indestrutível; por que como poderia um pensamento de Deus perecer?

Em segundo lugar, através da via do pensamento que lhe é própria, Deus ama profundamente o homem; como Ele poderia não amar-nos, como poderia não amar o seu pensamento? Nós mesmos nos deleitamos com os nossos pensamentos!

E ainda (e este é o mais importante testemunho que nos oferece o homem), se o homem é um pensamento do Deus dos seres, nós podemos espelhar-nos só em Deus e compreendermos Deus e nós mesmos, só no seu esplendor, pois uma representação nos é desconhecida até quando não conseguimos atingir o pensamento da qual esta é testemunha e manifestação. Alem disso, mantendo-nos afastados desta luz divina e criadora da qual devemos ser a expressão em nossas faculdades, como o somos na nossa essência, seremos apenas testemunhas insignificantes, sem valor e sem caráter.

Verdade preciosa, é a que demonstra porque o homem, ao contrário aparece como um ser obscuro e é um problema tão complicado aos olhos da filosofia humana.
Mas ainda se conseguirmos espelhar-nos em nossa sublime fonte, como poderíamos delinear a dignidade da nossa origem, a entidade dos nossos direitos, e a santidade de nosso destino?

Homens passados, presentes e futuros, todos e cada um que representais, um pensamento do Eterno, sabeis quais seriam as vossas esperanças e as vossas felicidades, se todos os germens divinos que vos constituem estivessem em atividade e em desenvolvimento? Mas, se alem destes grandes privilégios a vossa sorte ainda vos procura com desgostos e gemidos e vos impede de exultar, procureis ao menos, fazendo refletir sobre vós os raios do vosso sol gerador, encontrar aquilo que o homem foi em uma época, que para vós transcorreu, mas cujos testemunhos presentes atestam que não vos foi sempre estranha.

O homem pode não ser mais aquele que foi a um tempo, mas pode sempre aperceber-se daquilo que deveria ser no futuro. Pode sempre sentir a inferioridade da própria substância perecível e material, que tem sobre ele somente o poder passivo de absorver as faculdades na confusão e na opacidade de que é suscetível, enquanto o ser humano tem o poder ativo de até criar múltiplas faculdades que não haveria nunca tido por natureza e sem a vontade do homem.

Aqui justamente apresentamos tal diferença em relação ao homem empírico; esta é muito importante para não reconhecer em vós os sinais da antiga dignidade e da supremacia do pensamento. Tal diferença, quero dizer, poderia conduzir o homem mais ao alto e demonstrar-lhe que as verdades interiores são muito mais instrutivas do que as verdades geométricas; de fato estas últimas se fundamentam somente sobre a superfície, enquanto as outras nascem do centro interior e permitem entrever a profundidade.

Portanto, disto persuadidos, remontamos à nossa origem. Penetramos, com a nossa atividade interior, até o estado no qual poderíamos descobrir se a influência criadora de nossa fonte suprema age no âmbito de nossa atual existência, e se esta transmitiu em nossa natureza todos aqueles princípios de ordem, de perfeição e de felicidade, que nós sentimos dever residir eternamente no Ser soberano do qual descendemos. Todos estes germens divinos, uma vez formados em nós, não trariam consigo o dom de uma vida potente e eficaz? A nossa inteligência não seria por ventura continuamente gerada do sopro destas inumeráveis e eternas fontes de vida que lhe dariam existência e luz? A nossa capacidade de amar seria preenchida da viva e doce universalidade de nosso Princípio originário e não deixaria nenhuma lacuna em nosso afeto sublime e em nosso impulso de santa gratidão para com ele.

Alguns consideram fazer a nossa origem remontar a duas épocas anteriores ao estado no qual se encontra o homem hoje; evidentemente, para alegrar-se com a idéia sábia e consoladora que o mal primitivo não foi eterno, e para deixar à Deus a glória de haver exercitado o sublime privilégio que ele possui, de gerar todas as suas criaturas na plenitude da alegria e de uma felicidade selada por cada penosa função e por cada luta perigosa. Os que sustentam tal hipótese afirmam que na primeira de tais épocas, dado que o mal ainda não existia ou em outros termos, nenhum ser havia ainda se separado do plano divino, as nossas alegrias não teriam então necessidade de realizar-se alem de nossa existência. De fato, se estas tivessem realizado-se, isto teria significado o engrandecimento sem fim do eu no infinito, a única coisa real para nós. Teríamos assim conseguido exprimir a nossa felicidade e o nosso amor, em continua ascensão em direção a nossa Fonte, que nunca haveria cessado de inclinar-se amavelmente em nossa direção. Não teríamos necessidade de manifestar-nos diretamente, pois ao nosso redor, tudo estava completo e a Verdade preenchendo tudo por si, nos olhava como adoradores eternos, sem usar-nos como os seus símbolos e os seus testemunhos. Todos os seres por fim, teriam a alegria da visão e da presença da Verdade absoluta, e nada faltaria para a plenitude de seus afetos e de suas esperanças, tendo a visão da imensidão e da infinita atividade divina.

Sem dirigirmos o nosso olhar a uma ordem de coisas tão elevadas, contentemo-nos aqui em contemplar o momento da nossa missão no universo. Nos deteremos portanto sobre a segunda época de nossa origem, a mais próxima da nossa atual condição. De fato, estando a primeira época tão afastada de nós não teríamos nem menos idéia de sua existência se a segunda não funcionasse como sua intermediária.

Em tal segunda época, que continuaremos a considerar neste caso como a nossa existência primitiva, recebemos os caracteres dos símbolos e dos testemunhos da Divindade no Universo, e nos foi dada toda a potência e todo o esplendor divino conforme o escopo sublime da nossa qualidade espiritual e a nobilidade dos direitos divinamente concedidos para cumprir tal escopo. Por qual motivo de fato, fomos afastados do âmbito da imensidade divina, na qualidade de sinais e de testemunhos, se não para repetir no lugar onde a suprema Sabedoria nos enviou, aquilo que acontecia no círculo divino do ser? E como poderia existir uma zona separada e particular, se alguns seres, turbando o próprio equilíbrio, não tivessem interditado o acesso ao espaço universal, dado que o princípio da Unidade procura inundar tudo por sua natureza, e visto que o mal não pode ser outro se não a concentração parcial de um ser livre e a sua abstração voluntária do reino da universalidade?

Assim como na ordem eterna da imensidade divina, Deus basta à plenitude da contemplação de todos os seres, nós, no momento em que recebemos uma missão individual e uma existência separada dele, poderíamos representa-lo e ser os seus sinais e testemunhos, somente mostrando, com a nossa dimensão, a imagem mais tênue de Deus, para os seres que, concentrados na própria existência, teriam perdido de vista a presença divina, e estariam encerrados na atmosfera particular de seu erro.

Neste âmbito devia manifestar-se de nós mesmos, no momento da nossa origem, todo o plano válido para o andamento da nossa obra. Era necessário que nós explicássemos os pensamentos vivos e luminosos, as virtudes vivificantes e as ações eficazes, para poder ser os representantes do supremo Autor de nosso ser. Quanto mais aprofundarmos a analogia que reconhecemos entre a alma humana e o seu eterno Principio, tanto mais sentiremos que, sendo Deus a fonte radical e primitiva de tudo o que é perfeito, não poderíamos ser derivados dele, se não dotados daqueles sublimes caracteres que temos apenas delineado, e do qual nossos fracos pensamentos, quando sãos e regulares, nos representam ainda hoje algumas imagens.

A divindade de fato, não haveria escolhido o próprio pensamento, se não tivesse como objetivo refletir-se em nós, com toda a sua majestade.

Os traços deste selo sagrado, que caracterizam o "animo" do homem, resistem eternamente a todos os poderes destrutivos. Malgrado a vastidão do tempo, malgrado a espessura das trevas, todas as vezes que o homem contempla as suas relações com Deus, encontrará em si os elementos indissolúveis da sua essência original e os indícios naturais de seu destino glorioso. Ele sentirá que segundo este destino glorioso, uma força potente e temível nos foi conferida para submeter a autoridade divina àqueles que poderiam desconhecê-la. Se continuássemos unidos ao nosso ser, nada teria nos subtraído tal potência, se não a houvéssemos liberada por nós mesmos. Ele sentirá ainda que teríamos domínio sobre o nosso império, depois de tê-lo subjugado, e estaríamos ornados de todos os crismas necessários para anunciar em todos os lugares a nossa legítima soberania. Sentirá alem disso, que estávamos sobriamente vestidos para tornar ainda mais majestosa a nossa presença e para que todas as zonas no nosso domínio sujeitas ao esplendor que nos circundava, pudessem oferecer-nos o testemunho de respeito e submissão, devido a missão divina confiada a nós pela mão suprema. Hoje, o único meio para o homem representar-se no seu antigo estado, é aquele de considerar os frágeis sinais que a sua mente pueril substituiu sobre a terra: o gladio dos conquistadores, os cetros, as coroas, a pompa que circunda os soberanos e a respeitosa dedicação de seus súditos. Poderiam encontrar-se ainda alguns traços desformes dos nossos títulos originais, mas jamais recuperar-lhes a virtual função.

Mas se é ainda possível para o homem encontrar em si mesmo e nas imagens passageiras da potência convencional e terrestre, os vestígios daquilo que ele poderia ter sido, lhe é mais fácil provar a dolorosa distância daquele destino glorioso; e se ele tem ainda indícios de seus direitos primitivos, tem também provas bem mais numerosas que estes indícios não estão mais em seu poder.

É inútil aqui corroborar com outras demonstrações a degradação da espécie humana; é preciso ser desorganizado para negar esta degradação que é evidentemente constatada dos suspiros com os quais o gênero humano preenche continuamente a terra, e a idéia radical que o Autor dos seres coloque todas as suas produções nos seus elementos naturais. Então porque nós estamos tão afastados do nosso? Por que mesmo sendo ativos por natureza estamos como que submersos e acorrentados pelas coisas passivas? Os homens tem o direito de buscar onde desejarem as causas desta real e aflitiva desarmonia exceto no capricho e no rigor do nosso Princípio soberano, cujo amor, cuja sabedoria e justiça constituem o baluarte perene contra os nossos murmúrios.

De resto, ocupando-nos aqui somente das conseqüências e não das causas desta degradação, pretendemos dirigir-nos somente àqueles que não lhe negam a existência, e que malgrado as dificuldades que afrontam para explicar o mal e a sua origem, julgam, não truncando negativamente a questão como faz a filosofia imprudente, estarem mais satisfeitos com uma verdade difícil e obscura de quanto estariam com um absurdo evidente.

Para delinear as conseqüências desastrosas da nossa degradação, é necessário restaurar-se no estado glorioso do qual gozávamos, como também ao tesouro do qual tivemos em comum a custódia e a divisão. É necessário reconhecer que compartilharíamos solidamente a gloria e a recompensa desta magnífica manifestação, pois compartilharíamos solidamente também os trabalhos da grande obra de purificação a nós designado por Deus. Mas dado que não podemos imputar à Sabedoria suprema de haver conspirado conosco no abuso daqueles sublimes privilégios, somos obrigados a atribuir todos os erros à potência livre do nosso ser. Sendo frágil por natureza - (se assim não fosse teriam existido dois Deuses) - tal potência abandonou-se as miragens da ilusão e precipitou-se no abismo por própria culpa. Julgo inútil analisar novamente tal verdade, havendo-a já amplamente ilustrada em meus escritos anteriores.

Os princípios da sã justiça, imortais como a nossa essência e que igualmente a tal essência, sempre restarão em nós, se bem que muito freqüentemente não os aplicamos justamente, nos ensinam em que coisa nos transformamos por nossa culpa, e nos mostram quais satisfações tal justiça exige de nós.
Começa aqui a aclarar-se o título desta obra e o sentido destas duas palavras "Ecce Homo".

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