quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O problema metafísico da Liberdade -4- Nikolai Berdiaev




IV

Se a liberdade não pode estar enraizada em nenhuma espécie de existência, em nenhuma espécie de natureza, em nenhuma espécie de substância, então só resta um caminho para a afirmação da liberdade: o reconhecimento de que a fonte da liberdade está no nada, a partir do qual Deus criou o mundo. A liberdade se manifestou antes da existência e ela determina por si só o plano da existência. Ela pertence a uma ordem e a um plano diferentes da ordem e do plano da existência. A liberdade é absolutamente real, mas não no sentido em que o mundo é real. A liberdade só se revela na experiência da vida espiritual, ela não se revela na experiência da experiência do mundo. A liberdade não apenas não constitui uma experiência externa, como também não é uma experiência anímica emotiva, ela não se encontra na experiência de nenhuma espécie de natureza. O mundo natural é sempre determinado, e o mundo anímico emotivo e também determinado. Somente dentro da capacidade única da experiência espiritual é possível discernir o mistério da liberdade. O mundo espiritual, qualitativamente distinto do mundo natural, no qual se incluem nossas almas e corpos, não é de modo algum um mundo Kantiano de coisas-em-si. Seria totalmente impróprio dizer que a vida do corpo e da alma é aparência, enquanto que a vida do espírito é a coisa-em-si. Isso constitui um dualismo infrutífero, que conduz à negação de toda possibilidade real de uma experiência espiritual, coisa que também vemos em Kant, e que não permite a possibilidade de uma experiência espiritual. Mas no meio disso, a liberdade que aqui se revela dentro de uma experiência espiritual não consiste apenas na segunda – a alta liberdade na Verdade – mas também na primeira, a liberdade irracional e sem fundamento. Apenas a experiência espiritual nos revela isso, que se manifesta antes da existência do mundo natural, que nos conduz a ter um contato com o insondável e o sem fundamento, que tem sua base não em qualquer tipo de existência, nem em nós mesmos, nem no mundo, nem em Deus. Todas as dificuldades insuperáveis da liberdade estão conectadas com o pensamento dirigido exclusivamente ao mundo natural, o sinal básico daquilo que se manifesta como determinismo. Mas no mundo espiritual não existe qualquer espécie de determinismo natural. O mundo espiritual não constitui um grau mais alto do que o mundo natural, ele não entra na hierarquia do mundo natural, ele possui uma condição qualitativa diferente, dentro da qual o mundo natural se mistura em todos os seus graus.

E é dentro de uma experiência espiritual que podemos discernir que, se a liberdade está enraizada em alguma coisa, ela terá que estar enraizada no nada, terá se manifestado antes da existência, antes da criação do mundo. Isso significa também que a liberdade é insondável e sem fundamento. Essas duas características recuam até o nada. Esse é o ungrund de Jacob Boehme. Isso significa que a liberdade está conectada com a potencialidade, que é mais profunda do que qualquer formação ou atualização da existência. A potencialidade da existência do mundo é anterior à existência do mundo em si. De acordo com o ensinamento da teologia Cristã, Deus criou o mundo a partir do nada. Isso significa também que Deus criou o mundo a partir da liberdade. Isso pode ser expresso de forma inversa, ou seja, que Deus criou o mundo livre e com toda a liberdade. Isso não significa que Deus criou o mundo a partir da matéria, como pensavam os antigos Gregos, uma vez que o nada não é matéria, mas liberdade. E se, ao contrário, a liberdade estivesse enraizada na existência, então ela proviria apenas de Deus e em Deus, isso é, a liberdade do homem, a liberdade da criação, não existiriam. Mas fora de Deus está o nada, a partir do qual ele criou o mundo, e é no nada que se encontra a fonte. O não-ser livre está fora do Deus criador para a teologia positiva (catafática), mas é interior à indizível Divindade para a teologia negativa (apofática). A partir dessa liberdade o nada anui à própria criação do mundo, e ela floresce desde o misterioso ventre da potencialidade. A primeira liberdade, a liberdade irracional, é uma pura potencialidade, alojada dentro do nada. E nós percebemos dentro de nós esse vazio livre. Por sua vez, a segunda liberdade, a liberdade em Verdade, recebida da Verdade, é diferente. A segunda, mais elevada, constitui a transfiguração e a iluminação dessa liberdade obscura, desse nada irracional, por intermédio da ideia criadora de Deus sobre o homem e o cosmo, através da luz do Logos, por meio da ação da graça de Deus. Essa transfiguração e essa iluminação, obtidas pela interação mútua entre o poder criador de Deus, sua graça, e a própria liberdade primordial, resultam da ação da graça sobre a liberdade interior, sem violência ou coerção. A primeira liberdade é uma liberdade potencial, ela é a possibilidade de oposição. A segunda liberdade é a liberdade da realização, da realização da Verdade, da iluminação das trevas. A segunda liberdade não existe sem a primeira liberdade. Já vimos que a segunda liberdade, vista em si mesma, descamba para a tirania e falha em superar a tragédia da liberdade. A mais alta liberdade do homem não está na natureza do homem, não pertence à sua substância, mas consiste na ideia de Deus sobre o homem, na imagem e semelhança de Deus no homem. A pessoa não constitui uma individualidade natural do home, mas é antes uma ideia de Deus. A realização da ideia de Deus sobre o homem, entretanto, pressupõe a ação da liberdade que permanece alojada no nada. E somente o Cristianismo conhece o mistério de reconciliar essas duas liberdades e superar a tragédia da liberdade. Nisso consiste a ação da graça sobre nossa liberdade, sua iluminação desde dentro.

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