A chegada ao brasil 

 Não muito tempo após os eventos descritos até agora, os princípios dos Irmãos Unidos chegaram a terras brasileiras. E estão relacionados ao. O missionário Dr. Robert Reid Kalley e seu cooperador Richard Holden e, por conseguinte, à Igreja Evangélica Fluminense. O médico escocês Dr. Robert Kalley é tido pelos estudiosos como o pioneiro do protestantismo de missão em território brasileiro (MENDON ÇA; VELASQUES, 1990). Kalley chegou ao Brasil em 1855 com sua esposa Sara Poulton Kalley. No Rio de Janeiro iniciou os trabalhos evangelísticos que culminaram com a fundação da Igreja Evangélica em julho de 1858, que posteriormente (1863) passou a denominar-se Igreja Evangélica Fluminense. 

 No ano de 1865 Dr. Kalley convidou a Richard Holden para ser seu cooperador. Holden atuava então como agente da Sociedade Bíblica Britânica e copastor na Igreja Evangélica Fluminense. Durante essa estada no Rio de Janeiro, entre 1865 e 1871, Richard Holden empreendeu inúmeras viagens de norte a sul do Brasil, visitando também outros países, como Uruguai e Argentina, por conta de sua função na Sociedade Bíblica Britânica. Holden pretendia cooperar com Kalley nos cuidados da Igreja Fluminen se sem o recebimento de salários, o que não agradava a Kalley, que insistia em remunerá-lo. Holden entendia que assim estaria livre para ser fiel a suas convicções e expressá-las em quaisquer questões acerca das quais houvesse divergência (FILGUEIRAS, 1991, p. 79). Esse parece ter sido um importante ponto de tensão entre eles. Mas apesar das divergências acerca de pontos específicos de doutrina e prática, Holden gozava de considerável confiança por parte do Dr. Kalley. Em dezem bro de 1868 o casal Kalley deixou o Brasil para uma longa estada na Europa, da qual retornaram apenas em junho de 1871.

 Durante todo esse tempo Richard Holden assumiu sozinho o cuidado pastoral da Igreja Fluminense e, com a chegada do casal Kalley, partiu para a Inglaterra, com indicações de não mais voltar ao Brasil. Não se sabe ao certo em que momento Richard Holden teria tido co nhecimento das doutrinas e princípios dos Irmãos Unidos, mas sua mãe, seu irmão e sua irmã que moravam na Alemanha, reuniam-se em assembleias dos Irmãos, e Holden, em correspondência com o filho e amigos feitos no Brasil transmitia os ensinos que ouvia (FILGUEIRAS, 1991, p. 84). Apenas para frisar o vulto que o movimento dos Irmãos assumiu no século 19, cita-se que o próprio Dr. Kalley possuía parentes que se reuniam nas assembleias dos Irmãos. Um tio de sua esposa, que cooperou finan ceiramente com os trabalhos no Brasil congregava em uma assembleia dos Irmãos em Londres. No entanto, Dr. Kalley lamentava o anticlericalismo e algumas das doutrinas enfatizadas pelos Irmãos de Plymouth, embora, aparentemente, ele próprio fosse influenciado por seus padrões de vida simples, cultos sem adornos e, não pouco, por seu individualismo ousado (TESTA, 1964, p. 267). 





Consta ainda que em determinado período Kalley teria mantido corres pondência com John Nelson Darby, posteriormente publicando cartas com fortes acusações contra os darbistas (FILGUEIRAS, 1991, p. 85)7. Por correspondência Holden informou ao Dr. Kalley e, por conseguinte, à Igreja Evangélica Fluminense, que renunciava ao pastorado, isso aconteceu no início de 1872. A correspondência entre Holden e Kalley não se interrom peu de pronto. Aquele procurava demonstrar que as doutrinas e princípios dos Irmãos eram acertadamente bíblicos, e afirmava que a ideia de que Dar by regia o movimento como um papa adivinha tão somente do atrito com Benjamin Wills Newton e a assembleia de Bethesda (FILGUEIRAS, 1991, p. 90-91). Anos depois, em 1879, Holden teria escrito ao Dr. Kalley afirmando não concordar com atitudes despóticas de Darby em relação a qualquer um que não acatasse suas ordens ou ensinos (FILGUEIRAS, 1991, p. 104). 



 Como resultado dos ensinos transmitidos por Holden por intermédio das cartas endereçadas a amigos na Igreja Evangélica Fluminense, entre o final de junho e início de julho de 1878, vários irmãos que com Holden concordavam deixaram a Igreja Fluminense e passaram a se reunir na casa de um deles, João Antônio de Menezes. “Estava assim formado o primeiro núcleo dos ‘irmãos’ no Brasil” (FILGUEIRAS, 1991, p. 100). Em julho de 1879, um ano após a formação daquele primeiro grupo, Richard Holden retorna ao Rio para visitá-los. Permanece por quatro meses e parte para nunca mais retornar ao Brasil. No Rio de Janeiro, informa Fil gueiras (1991, p. 120-121), os Irmãos tiveram vários pontos de reunião, até se estabelecerem em um imóvel na Rua São Carlos, a partir de 1921, comprado e adaptado para receber as reuniões e, ao que se deduz, ainda era utilizado em 1991 (FILGUEIRAS, 1991, p. 121-123). O empenho evangelístico daqueles primeiros Irmãos brasileiros pron tamente os encaminhou para as regiões serranas do Rio de Janeiro, com a abertura de assembleias em Petrópolis, Teresópolis e Santa Rita (FILGUEI RAS, 1991, p. 128). 

 No início do século 20 já existiam assembleias dos Irmãos em Carangola, no Estado de Minas Gerais, Santa Bárbara e Piracicaba, ambas no Estado de São Paulo, estas últimas visitadas em 1901 (McNAIR, 1953, p. 17) por Stuart Edmund McNair, britânico que chegou ao Brasil em 1896, para cooperar com os Irmãos neste país. Stuart E. McNair empreendeu inúmeras viagens pelo território brasileiro, escreveu livros e editou durante quatorze anos (1927 a 1941) o periódico 7 Também em MATOS, Alderi de Souza. Robert Reid Kalley: pioneiro do protestantismo missio nário na Europa e nas Américas. Disponível em: < http://www.mackenzie.br/7041.html >. Acesso em: 8 out. 2012.

O chamado O Boletim Evangélico (McNAIR, 1953, p. 25), tendo fundado a própria gráfica e editora a serviço dos Irmãos, em 1933, a Casa Editora Evangélica, em Teresópolis (McNAIR, 1954, p. 22). Foi ele, ainda, o autor dos comen tários da Bíblia Explicada, ainda publicada no Brasil, curiosamente, pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Partindo de Carangola, os Irmãos, durante as três primeiras décadas do século 20, foram se mudando e estendendo seu trabalho para Vitória, Governador Valadares, Belo Horizonte, Norte do Espírito Santo e Sul da Bahia, alcançando também os arredores de São Paulo e o Norte do Paraná (FILGUEIRAS, 1991, p. 146). Segundo Filgueiras (1991, p. 146) os Estados do Mato Grosso e Rondô nia e outros do Norte e Nordeste, foram alcançados pelo trabalho missionário dos Irmãos. Stuart McNair menciona ter estado em Recife (1953, p. 15), no Maranhão (1953, p. 19) e em Belém (1954, p. 21). O primeiro edifício, de signado Casa de Oração, para a reunião dos Irmãos foi inaugurado no Brasil, em 1914, na cidade de Carangola (McNAIR, 1954, p. 21). 

 Considerações finais 

 Maiores detalhes acerca do desenvolvimento das atividades dos Irmãos em terras brasileiras não estão disponíveis em livros ou periódicos encontra dos em livrarias ou bibliotecas. As características peculiares do movimento, como a constituição de igrejas independentes não confederadas ou mesmo federadas, mas tão somente irmanadas, assim como as divisões que fraciona ram o movimento em seu início e que o tem fracionado ao longo do tempo, impedem a consolidação de históricos e de dados. Além disso, tais traços e escolhas para a vida eclesiástica empurram o movimento dos Irmãos para a marginalidade em se tomando como referência as igrejas instituídas. De tal modo que a produção do historiador eclesiástico, iluminada que é pelas lâmpadas de seu lugar institucional, termina por não romper a neblina da zona fronteiriça, mantendo a história dos Irmãos Unidos na penumbra e à mercê de considerações formadas no âmbito de um estado de defesa, de um viés crítico-teológico que persiste em tomar a parte pelo todo. 

 Em O protestantismo brasileiro, livro de Émile G. Leonard (1981), por exemplo, para estabelecer um conceito que defina o fenômeno dos evangéli cos que não se congregam, o autor cunhou o sintagma: “niilismo eclesiástico” (LEONARD, 1981, p. 73), associando-o, talvez corretamente, a John Nelson Darby e aos darbistas. Entretanto, os Irmãos Unidos, em sua totalidade, surgem equivocadamente no referido texto como um desses movimentos de negação de ordem e estrutura eclesiástica. E nesse exemplo, nessa rarefeita presença do 179 Revista Caminhando v. 21, n. 1, p. 165-181, jan./jun. 2016 movimento dos Irmãos em textos que tratam da história da igreja protestante, sua menção se dá apenas para corroborar a afirmação de um desvio. 

 Apesar disso, da pouca produção historiográfica e dos temores insti tucionais, a constatação que se dá quanto ao surgimento quase simultâneo de grupos diversos com ideais semelhantes na composição da gênese do movimento dos Irmãos Unidos, termina por remeter ao conceito cristão de despertamento ou avivamento. Os anseios espirituais e éticos daqueles homens e mulheres os uniram na busca por uma igreja capaz de expressar unidade na comunhão, santificação e prática evangélica. Procuraram ao invés de dar as mãos por sobre muros viver sem muros, mas lamentavelmente não foi assim por muito tempo. Disputas doutrinárias ou embates por influência e controle dividiram o movimento surgido exata mente no desejo por união. Contudo, a chegada dos princípios fundantes dos Irmãos Unidos no Brasil, ocorrida cerca de trinta anos após a ruptura havida em Plymouth, demonstra a força do ideal que muitos grupos ainda hoje almejam viver: unidos como irmãos pela fé em Jesus Cristo. Considera-se que apesar das dificuldades uma maior produção historiográfica acerca de toda a contribuição dos Irmãos Unidos pode indicar novos caminhos, ou corrigir caminhos em uso atualmente, para a superação daquilo que Neibuhr (1992) chamou de o fracasso ético da igreja dividida. 


 Referências 

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