sábado, 9 de janeiro de 2016

O QUE O ESTADO NÃO É

Do livro A Anatomia do Estado - Murray N. Rothbard
Tradução de Tiago Chabert.
São Paulo : Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012.

     O estado é quase universalmente considerado uma 
instituição de serviço social.  Alguns teóricos veneram 
o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros 
consideram-no uma organização afável, embora muitas 
vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objeti-
vos sociais.  Porém quase todos o consideram um meio 
necessário para se atingir os objetivos da humanidade, 
um meio a ser usado contra o “setor privado” e que fre-
quentemente ganha essa disputa pelos recursos.  Com o 
advento da democracia, a identificação do estado com a 
sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a 
vocalização de sentimentos que violam quase todos os 
princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós 
somos o governo” ou “nós somos o estado”. 

     O  termo  coletivo  útil  “nós”  permite  lançar  uma 
camuflagem ideológica sobre a realidade da vida po-
lítica.  se “nós somos o estado”, então qualquer coisa 
que o estado faça a um indivíduo é não somente justo 
e não tirânico, como também “voluntário” da parte do 
respectivo indivíduo.  se o estado incorre numa dívi-
da  pública  que  tem  de  ser  paga  através  da  cobrança 
de impostos sobre um grupo para benefício de outro, 
a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação 
de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida 
tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou 
o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está 
“fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu 
nada de lamentável. 

     Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assas-
sinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo
contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que 
eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) 
e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha 
feito foi voluntário da sua parte.  não seria necessário 
insistir  mais  neste  ponto;  no  entanto,  a  esmagado-
ra  maioria  das  pessoas  aceita  esta  ideia  enganosa  em 
maior ou menor grau.  

     Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” 
não somos o estado; o governo não somos “nós”.  o es-
tado  não  “representa”  de  nenhuma  forma  concreta  a 
maioria das pessoas1.  mas, mesmo que o fizesse, mes-
mo que 70% das pessoas decidissem assassinar os res-
tantes  30%,  isso  ainda  assim  seria  um  homicídio  em 
massa e não um suicídio voluntário por parte da mi-
noria chacinada2.  não se pode permitir que nenhuma 
metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, 
obscureça este fato essencial.

     Se,  então,  o  estado  não  somos  “nós”,  se  ele  não  é 
a “família humana” se reunindo para decidir sobre os 
problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna 
ou clube social, o que é afinal?   em poucas palavras, o 
estado é a organização social que visa a manter o monopólio 
do  uso  da  força  e  da  violência  em  uma  determinada  área
territorial; especificamente, é a única organização da so-
ciedade que obtém a sua receita não pela contribuição 
voluntária  ou  pelo  pagamento  de  serviços  fornecidos 
mas sim por meio da coerção.  

     enquanto os outros indivíduos ou instituições ob-
têm o seu rendimento por meio da produção de bens e 
serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e 
serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento 
através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça 
de prisão e pelo uso das armas3.  depois de usar a força 
e  a  violência  para  obter  a  sua  receita,  o  estado  geral-
mente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus 
súditos. Poderíamos pensar que a simples observação  
de  todos  os  estados  ao  longo  da  história  e  de  todo  o 
globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o 
miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há 
tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.
  

1  não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos 
da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, 
ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode 
ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interes-
ses ou desejos do seu chefe. obviamente, o “representante” numa democracia 
nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma 
sociedade livre.
2   os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a esco-
lha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de 
deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia 
tornar-se a maioria.  Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se 
mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a 
minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.
3  Joseph A.  schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, So-
cialismo e Democracia) (new York: Harper and Bros., 1942), p. 198.
         A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública 
         foi intensificada desde o princípio pelo fato de que. o estado 
         tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera 
         privada com propósitos privados e que tem que ser desviado 
         desses propósitos através da força política. A teoria que in-
         terpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à 
         aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão 
         removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábi-
         tos mentais científicos.
Ver também  murray  n. Rothbard, “the Fallacy of the ‘Public  sector’”, new 
individualist Review (summer, 1961): 3ff. 




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