sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O problema metafísico da Liberdade - 3 - Nikolai Berdiaev



III

Houve tentativas de fundamentar a liberdade do homem sobre a substancialidade da alma humana. A alma humana seria uma substância e a liberdade seria o que determina essa substância desde dentro, a partir de um poder criador substancial, e não a partir de fora. Esse tipo de fundamentação é característica do espiritualismo. E o mais notável ensinamento a respeito da liberdade, fundamentado na ideia da substância, pertence ao filósofo Russo Lev Mikhaïlovitch Lopatine e foi desenvolvido na sua obra The positive tasks of Philosophy. A esse tipo de resolução filosófica do problema pertence também Maine de Biran. Essa espécie de espiritualismo defende a liberdade do homem, inferindo-a a partir de uma energia espiritual interior da natureza humana, e nisso é como se ela possuísse uma vantagem sobre o monismo idealista, que sempre afirma, seja a liberdade de Deus, seja a do espírito do mundo, mas nunca a do homem. Quando Hegel define a liberdade com as palavras: “A liberdade existe por si só[1]”, para ele, essencialmente, nessa condição – a de existir por si só – pode apenas ser encontrada a liberdade do espírito do mundo, mas não a do homem. Para o espiritualismo de Lopatine, que consiste num pluralismo e não num monismo, a liberdade é uma forma pessoalmente singular de uma causalidade interna, uma causação a partir de um poder substancial. A liberdade assim consiste definitivamente num determinismo, mas num determinismo desde dentro, das próprias substâncias, e não nascido de suas correlações. Mas esse espiritualismo pluralístico também falha na tentativa de resolver o problema da liberdade, do mesmo modo que o idealismo monístico. O ensinamento a respeito das substâncias é inteiramente impróprio para a liberdade. Se a liberdade deve ser determinada pela natureza, pela minha natureza, então ela deve ser determinada por essa natureza substancial. Se eu devo ser definido por minha natureza, isso é também uma espécie de determinismo, do mesmo modo como se eu for definido por uma natureza situada fora de mim. Ser escravo da própria natureza não constitui uma liberdade maior do que ser escravo de uma espécie de natureza estranha a mim. Da mesma forma, dentro da natureza substancial situa-se um ponto mais baixo do que tudo, um chão da liberdade, ao mesmo tempo em que essa natureza é insondável e sem fundamento. Uma liberdade que não possua esse ponto mais baixo, ou chão, ou fundamento, que não está enraizada em nada, tampouco pode estar enraizada nas substâncias, dentro da natureza substancial do homem. Esse ensinamento nega o mistério irracional da liberdade. A liberdade não é determinada pela natureza, ela em si determina a natureza. A substância é uma categoria naturalística, mas ela foi trabalhada, não pelas ciências naturais, que não têm necessidade de substância, mas pela metafísica naturalística.

O ensinamento de Kant a respeito de um caráter mentalmente postulado, a respeito de uma liberdade que jaz fora do mundo das aparências, contém em si essa semente de verdade, essa liberdade que não depende de nenhum tipo de natureza. Mas esse ensinamento sofre de dualismo, no qual a liberdade é relegada à coisa-em-si e não possui lugar de espécie alguma em nosso mundo de aparências. É precisamente nisso que se encontra a oposição básica entre a ordem da liberdade e a ordem da natureza. Nenhuma definição é aplicável à liberdade, nenhuma definição relativa à natureza e às substâncias. A liberdade não pode possuir nenhum tipo de raiz dentro da existência. A liberdade do homem também não pode ser exclusivamente definida pela graça Divina. A liberdade do homem também não possui sua fonte na natureza humana, na substância humana, e menos ainda na natureza desse mundo. Mas, nesse caso, será possível conceber a liberdade pelo pensamento? O problema da liberdade se torna de uma dificuldade extraordinária, e as dificuldades “quase insolúveis” parecem insuperáveis. A razão deve encarar a tentação de negar a liberdade do homem. E, quando ela pensa na liberdade de Deus, ela se inclina a considerá-la idêntica à necessidade Divina. É como se na existência não exista espaço para a liberdade. E as ontologias filosóficas mais significativas foram sistemas deterministas. O monismo sempre foi determinista e não encontrou lugar para a liberdade. O pathos da liberdade pressupõe um certo dualismo, embora não de caráter ontológico. A ponderação e a fundamentação da liberdade só é possível mediante uma distinção entre espírito e natureza, estabelecendo-se uma qualificação diferente do mundo espiritual, diverso da qualificação do mundo natural. A metafísica espiritualista tradicional não pode ser vista como um ensinamento a respeito do espírito, do mundo espiritual e da vida espiritual; ao contrário, ele é uma forma do naturalismo, um entendimento do espírito como natureza, como substância. Mas o espírito não é a natureza, não é uma substância, sequer é uma realidade em sentido algum, no qual se insira a realidade do mundo natural. O problema da liberdade é um problema do espírito, e não pode ser resolvido por nenhuma metafisica naturalística da existência.


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