quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O problema metafísico da Liberdade - 2 - Nikolai Berdiaev

 II


A dinâmica da liberdade conduz à tragédia de sua autodestruição. A liberdade primária irracional pode gerar o mal em suas entranhas. Nela não existem garantias de que irá fazer o bem, de que conduzirá a Deus, de que irá salvaguardar a si mesma. A liberdade primária e irracional possui um traço fatal de autodestruição que a permite passar para o seu oposto e gerar a necessidade. Quando a liberdade penetra na via do mal, ela perde a si mesma e cai sob o domínio da necessidade, criado por ela mesma. O homem se torna escravo da natureza, escravo das baixas paixões. A liberdade primária e irracional oculta em si a possibilidade da anarquia, tanto na vida da alma individual como na vida da sociedade. A liberdade formal, desinteressada, que nada escolhe por si, indiferente à verdade e ao bem, conduz a um afastamento entre o homem e o mundo, a uma escravidão em relação aos elementos e às paixões. A necessidade natural é sempre uma forma secundária, na base da qual jaz a liberdade primária. A necessidade é filha da liberdade, mas de uma liberdade falsamente direcionada, na qual a autoafirmação de partes do mundo conduz à mútua escravidão. A liberdade primária, de sua parte, é impotente para preservar e afirmar a liberdade, e está sempre sujeita à ameaça da destruição. Foi isso que levou Santo Agostinho a negá-la, e São Tomás de Aquino a suprimi-la, considerando que a liberdade que não fosse subordinada à verdade e não conduzisse a Deus seria imperfeita, deficiente. A segunda liberdade, a liberdade racional, a liberdade em verdade e bem, conduz a uma identificação da liberdade com a verdade e o bem, com a razão, inclinando-nos a uma virtude compulsória, a um determinismo do bem e à geração de uma organização religiosa ou social, na qual a liberdade se torna filha da necessidade. Se a primeira liberdade leva à anarquia, a segunda conduz à monarquia ou a um despotismo comunista. A segunda liberdade se torna uma liberdade coercitiva, interessada e subordinada à verdade e ao bem. Mas em si mesma ela nega a liberdade de escolha, ela nega a liberdade de consciência e conduz a uma organização compulsória da existência. E dessa maneira a liberdade passa a se identificar, seja com uma necessidade Divina (nas teocracias), seja na necessidade social (nos sistemas comunistas). Se a liberdade, em seu primeiro significado, carrega consigo o perigo da destruição da liberdade pelo próprio homem, por sua volição, no segundo sentido ela traz consigo o perigo de uma negação completa da liberdade do homem. A segunda liberdade é, em essência, a liberdade de Deus, do espírito do mundo, ou da razão do mundo, a liberdade de uma sociedade organizada, mas não de uma liberdade do homem. A Verdade (ou seja lá o que for que se considere como tal) é o que organiza a verdade, mas ela liga a liberdade à aceitação da Verdade. A segunda liberdade não conhece aquilo que Dostoievsky expressou genialmente pelas palavras do Grande Inquisidor de Cristo: “Tu desejaste tanto o livre amor dos homens, que eles Te seguiram livremente, fascinados e cativados por Ti”. Eu só posso receber a mais alta e última liberdade a partir da Verdade, mas a Verdade não pode ser coercitiva e compulsória para mim – a aceitação da Verdade pressupõe minha liberdade, um livre movimento meu em direção a ela. A liberdade não é um fim, mas também um caminho. O idealismo Germânico do começo do século XIX (Fichte, Hegel), de caráter monístico, era inspirado pelo pathos da liberdade, mas em essência desconhecia a liberdade do homem, e conhecia apenas a da Divindade, do Eu do mundo, do Espírito do mundo. A primeira liberdade, por si só, conduz à autodestruição da liberdade. A segunda liberdade, contudo, em si, parte de uma negação da liberdade do homem. A liberdade é derrotada, seja pela anarquia dos elementos e das paixões, seja pela necessidade, seja pela graça.


Normalmente, os filósofos colocam no centro do problema da liberdade a relação entre liberdade e necessidade, e veem nisso a principal dificuldade do problema. Mas na atualidade a maior dificuldade do problema da liberdade se mostra como a relação entre ela e a graça, entre a liberdade do homem e um Deus poderoso, um Deus livre. A história do pensamento religioso e teológico do Ocidente é cheia de disputas conectadas ao problema das relações entre liberdade e graça. A questão costuma ser apresentada assim: se Deus existe, se Ele é poderoso e livre, se a graça de Deus age sobre o mundo e sobre o homem, que espaço sobra para a liberdade humana? O homem talvez possa se esconder da necessidade da natureza, mas onde poderá ele se esconder do poder da Divindade, das energias ativas de Deus que atuam sobre a humanidade? Esse problema, que atormentou Santo Agostinho, alcançou seu ponto mais agudo no tratado de Lutero, De servo arbitrio, dirigido contra Erasmus. Lutero não se limitou a negar a liberdade do homem, como considerou ímpio o simples pensamento a respeito dessa liberdade. Poderá existir uma liberdade do homem, não apenas no sentido da liberdade em relação à natureza que o cerca e em relação à sua própria natureza, mas também no sentido de uma liberdade em relação a Deus? Se a primeira liberdade é engolida pelos elementos indomados e pela natureza passional, a segunda liberdade é tragada pela graça, pelo poder da Divindade. Por um lado, não existe a liberdade do homem, se ela depende do poderio da natureza, nem, por outro lado, se ela depende do poder de Deus. E assim vemos que não existe liberdade do homem sequer se ela depende do próprio homem, de sua natureza única, uma vez que a natureza do homem é parte do mundo natural. A liberdade do homem é como se fosse esmagada desde cima, pelo meio e por baixo, pela natureza. Os teólogos dizem que o homem foi deixado livre, e que ele descobre a liberdade pela ação da graça. Somente a natureza humana em graça pode ser chamada de livre. E nessa instância o discurso é sobre o segundo sentido da liberdade. Trata-se da liberdade dada pela Verdade. A Verdade é também uma energia que age sobre o homem e o liberta. Mas será o homem livre em relação à Verdade, em relação à graça, será a liberdade anterior à ação da graça ou consistirá a liberdade numa aceitação da Verdade e da graça? A teologia Cristã, em suas formas predominantes, ensina a respeito da influência da liberdade e da graça. Mas a liberdade é pressuposta aqui, de modo a fixar a responsabilidade e o mérito do homem. A liberdade não é mostrada como um poder criador, ela não passa da recepção da graça. Se esse problema for colocado objetivamente, e não da perspectiva do homem, é incompreensível como se possa justificar a liberdade do homem. A liberdade do homem deveria ter sua fonte em Deus e dessa forma o problema parece desaparecer. Mas se o próprio Deus colocou a liberdade no homem, e, se desse modo, o homem deve reconhecer a dependência dessa sua liberdade a Deus, ela é essencialmente a liberdade de Deus, e não a liberdade do homem. Da mesma forma, num sentido genuíno da palavra, não existe liberdade do homem, se ela depende de intermediários sociais ou naturais, se ela for imposta por ordenamentos provindos de fora dele. E então temos que encarar a questão: é possível fundamentar a liberdade do homem sobre o próprio homem, sobre a natureza humana, sobre uma fonte interior que permanece sempre humana? Se as profundezas do homem recuam até a Divindade, e se é aí que é preciso buscar a liberdade, então essa liberdade é Divina e não humana. Mas existe alguma profundidade na natueza humana, sobre a qual se possa fundamentar o humano, e uma liberdade unicamente humana?

Caminho de Oração: Nikolai Berdiaev - O problema metafísico da Liberdade (precedejesus1.blogspot.com)



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