segunda-feira, 30 de maio de 2016

O CONCEITO DE MISES SOBRE UMA SOCIEDADE LIVRE

Do livro
Liberalismo – Segundo a Tradição Clássica
de Ludwig von Mises. -- São Paulo : Instituto Ludwig von Mises

Brasil, 2010. 125p.
Prefácio à edição de2010
 O CONCEITO DE MISES
SOBRE UMA SOCIEDADE LIVRE
Qualquer filosofia política deve voltar-se para uma questão cen
tral: sob quais condições a iniciação de violência deve ser considerada
legítima?  Uma  filosofia  pode  endossar  tal  violência  em  nome  dos
interesses de um grupo racial majoritário, como fizeram os Nacional
Socialistas da Alemanha. Outra pode endossá-la em nome de uma
classe  econômica  em  particular,  como  fizeram  os  Bolcheviques  da
Rússia Soviética. Uma outra pode preferir evitar uma posição doutri
nária de uma forma ou de outra, deixando para o bom juízo daqueles
que administram o estado decidir quando o bem comum demanda
a iniciação de violência e quando não. Essa é a posição das sociais
democracias.
O liberal determina um limiar muito alto para a iniciação da vio
lência. Além da tributação mínima necessária para manter os servi
ços jurídicos e de defesa — e alguns liberais recusam até mesmo isso
—, ele nega ao estado o poder de iniciar violência, e procura somente
soluções pacíficas para os problemas sociais. Ele se opõe à violência
praticada em nome da redistribuição de riqueza, do enriquecimento
de grupos de interesse influentes ou da tentativa de aprimorar a con
dição moral do homem.
Pessoas civilizadas, diz o liberal, interagem entre si não de acordo
com a lei da selva, mas por meio da razão e da discussão. O homem
não pode se tornar bom por meio do guarda da prisão e do carrasco;
caso estes sejam necessários para torná-lo bom, então sua condição
moral já está muito além de qualquer possibilidade de salvamento.
Como Ludwig von Mises afirma em seu livro Liberalismo, o homem
moderno “deve se libertar do hábito de chamar a polícia sempre que
algo não lhe agrada”.
Tem havido uma espécie de renascimento dos estudos misesianos
no rastro da crise financeira que assolou o mundo em 2007 e 2008,
dado que foram os seguidores de Mises que apresentaram as mais con
vincentes explicações sobre os fenômenos econômicos que deixaram
a maioria dos “especialistas” gaguejando. A importância das contri
buições econômicas de Mises para as discussões atuais tendem a nos
fazer  negligenciar  suas  contribuições  como  teórico  social  e  filósofo
político. Seu livro Liberalismoajuda a retificar esse descuido.
O liberalismo que Mises descreve nesse livro não é, obviamente,
o “liberalismo” do qual se fala hoje em dia, mas sim o liberalismo
clássico,  que  é  como  o  termo  continua  a  ser  conhecido  na  Europa.
O liberalismo clássico defende a liberdade individual, a propriedade
privada, o livre comércio e a paz — os princípios fundamentais dos
quais todo o resto do programa liberal pode ser deduzido.
Não seria nenhum insulto a Mises descrever sua defesa do liberalis
mo como parcimoniosa, no sentido de que, seguindo a lógica da nava
lha de Occam, ele não emprega em sua defesa nenhum conceito que não
seja estritamente necessário ao seu argumento. Sendo assim, Mises não
faz nenhuma referência aos direitos naturais, por exemplo, um conceito
que possui um papel central em tantas outras exposições do liberalis
mo. Ele enfoca principalmente a necessidade de uma cooperação social
de larga escala. Essa cooperação social — por meio da qual complexas
cadeias de produção geram um aprimoramento do padrão de vida de
todos — pode ser criada somente por um sistema econômico baseado
na propriedade privada. A propriedade privada dos meios de produ
ção, em conjunto com a progressiva ampliação da divisão do trabalho,
ajudou a libertar a humanidade das horríveis aflições que antigamente
devastavam a raça humana: doenças, pobreza opressiva, taxas pavoro
sas de mortalidade infantil, miséria e imundícies generalizadas, e uma
radical insegurança econômica, com pessoas frequentemente vivendo a
apenas uma colheita ruim da completa inanição.
Até o momento em que a economia de mercado surgiu para ilus
trar a criação de riqueza possibilitada pela divisão do trabalho, era
tido como certo que essas características grotescas das condições de
vida do homem eram imposições irreversíveis de uma natureza fria e
impiedosa, sem possibilidades de ser substancialmente aliviada, mui
to menos subjugada inteiramente, pelo esforço humano.
Os estudantes foram ensinados, por várias gerações, a pensar na pro
priedade como sendo uma palavra suja, a exata materialização da avare
za. Mises não tolera tal concepção. “Se há algo que a história pode pro
var em relação a essa questão, é que em nenhum lugar e em nenhuma
época já houve algum povo que, sem a propriedade privada, tenha me
lhorado seu padrão de vida para além da mais opressiva penúria e sel
vageria, uma situação dificilmente distinguível da existência animal.”
A cooperação social, Mises demonstrou, é impossível na ausência de
propriedade privada, e quaisquer tentativas de restringir o direito de
propriedade irão solapar a coluna central da civilização moderna.
De fato, Mises ancora firmemente o liberalismo na propriedade pri
vada. Ele estava perfeitamente cônscio de que defender a propriedade
significa atrair a acusação de que o liberalismo é meramente uma apo
logia velada ao capital. “Os inimigos do liberalismo o rotularam como
a ideologia que defende os interesses especiais dos capitalistas”, obser
vou Mises.  “Isso é típico da mentalidade deles. Eles simplesmente
não conseguem entender uma ideologia política. Para eles, qualquer
ideologia que não seja a deles representa a defesa de certos privilégios
especiais  em  detrimento  do  bem-estar  geral.”  Mises  mostra  em  seu
livro, e em todo o restante de sua obra, que o sistema de propriedade
privada dos meios de produção resulta em benefícios não apenas para
os donos diretos do capital, mas também para toda a sociedade.
Na realidade, não há nenhum motivo em particular para que as
pessoas em posse de grandes riquezas sejam a favor do sistema libe
ral de livre concorrência, em que um esforço contínuo deve ser feito
para se estar sempre atendendo aos desejos dos consumidores — caso
contrário, essa riqueza será reduzida gradualmente. Aqueles que pos
suem  grande  riqueza,  especialmente  os  que  herdaram  essa  riqueza,
podem com efeito preferir um sistema intervencionista, o qual tem
maior propensão a manter congelados os padrões de riqueza existen
tes. Não é de se estranhar, por exemplo, que as revistas de negócios
dos EUA, durante a Era Progressiva (1890-1920), estivessem repletas
de apelos pela substituição do laissez-faire, um sistema em que os lu
cros não estão protegidos, por um arranjo de cartéis sancionados pelo
governo e por vários outros esquemas de conluio.
Naturalmente, dada a ênfase de Mises na importância da divisão
do trabalho na manutenção e no progresso da civilização, ele é parti
cularmente franco em relação aos males das guerras, as quais, além de
seus danos físicos e humanos, geram um progressivo empobrecimen
to da humanidade em decorrência de seu radical rompimento da har
moniosa estrutura de produção que abrange todo o globo. Mises, que
raramente mede as palavras, mas cuja prosa é geralmente elegante e
comedida, fala com indignação e revolta quando o assunto passa a ser
o imperialismo europeu, uma causa da qual ele não admite qualquer
argumento a favor. Assim como seu pupilo, Murray Rothbard, iria
mais tarde identificar guerra e paz como a questão fundamental de
todo o programa liberal, Mises da mesma forma insiste em dizer que
essas questões não podem ser negligenciadas — como elas frequente
mente são por liberais clássicos atuais — em prol de questões políticas
mais inócuas e menos delicadas.
A principal ferramenta do liberalismo, afirmou Mises, era a razão.
Isso não significa que Mises achava que todo o programa liberal deve
ria ser realizado por meio de tratados acadêmicos densos e elaborados.
Ele admirava consideravelmente aqueles que transmitiam essas ideias
nos palcos de teatro, nas telas de cinema e no mundo dos livros de
ficção. Porém, é extremamente importante que a defesa do libera
lismo permaneça arraigada em argumentos racionais, uma fundação
muito mais sólida do que o instável irracionalismo da emoção e da
histeria, os quais outras ideologias utilizam para agitar as massas. “O
liberalismo não tem nada a ver com tudo isso”, insistia Mises. “Não
tem flores nem cores, não tem música nem ídolos, não tem símbolos
e nem slogans. Ele tem a substância e os argumentos. Ambos devem
levá-lo ao triunfo.”
Atualmente, estamos vivendo em um momento perigoso da his
tória. Com várias crises fiscais ocorrendo ao redor do mundo — e as
consequentes escolhas difíceis que elas impõem — e ameaçando uma
onda de agitação civil por toda a Europa, as promessas impossíveis
feitas  por  estados  assistencialistas,  hoje  completamente  quebrados,
estão se tornando crescentemente óbvias. Como argumentou Mises,
não há nenhum substituto para a economia livre que seja estável no
longo prazo. O intervencionismo, mesmo em prol de uma causa tão
ostensivamente positiva quanto o bem-estar social, cria mais proble
mas do que soluções, levando assim a ainda mais intervencionismos,
até que o sistema esteja inteiramente socializado — isso se o colapso
não ocorrer antes.
A posição de Mises é contrária à daqueles que afirmavam que o
mercado era de fato um lugar de rivalidade e discórdia, em que os
ganhos de uns implicavam perdas para outros. Podemos pensar, por
exemplo, em David Ricardo e em sua alegação de que salários e lucros
se  movem  necessariamente  em  direções  opostas.  Thomas  Malthus
alertou para uma catástrofe populacional, a qual implicava um con
flito entre alguns indivíduos (aqueles já nascidos) e outros (no caso,
o  suposto  excesso  que  viria  depois).  E  depois,  é  claro,  veio  toda  a
tradição  mercantilista,  a  qual  via  o  comércio  e  as  relações  de  troca
como um tipo de combate de baixa intensidade que produzia um gru
po definido de vencedores e de perdedores. Karl Marx apresentou
uma clássica declaração de que há um inerente antagonismo de clas
ses no mercado em seu O Manifesto Comunista. Ainda mais velho que
todas essas figuras era Michel de Montaigne (1533-1592), que em seu
ensaio “O Fardo de um Homem é o Benefício de Outro” argumentou
que “todo e qualquer lucro só pode ser feito em detrimento de outro”.
Mises mais tarde veio a rotular essa ideia de “a falácia de Montaigne”.
Para o bem da própria civilização, Mises nos exortou a descartar os
mitos mercantilistas que opõem a prosperidade de um povo à prospe
ridade de outro, os mitos socialistas que descrevem as várias classes
sociais como inimigas mortais, e os mitos intervencionistas que di-
zem que a prosperidade só pode ser alcançada por meio da pilhagem
mútua  dos  cidadãos.  No  lugar  dessas  ideias  juvenis  e  destrutivas,
Mises forneceu um convincente argumento em prol do liberalismo
clássico, o qual vê “harmonias econômicas” — pegando emprestada
a formulação de Frédéric Bastiat — onde outros veem antagonismos
e discórdias. O liberalismo clássico, tão habilmente defendido por
Mises, não busca dar a ninguém nenhuma vantagem obtida coerci
vamente, e exatamente por essa razão ele gera os mais satisfatórios
resultados de longo prazo para todos.
Thomas Woods  
Ludwig von Mises Institute
Julho de 2010

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