quinta-feira, 15 de julho de 2021

Cap. 5. Ecce Homo - Louis Claude de Saint Martin

 

Do livro Ecce Homo por Louis Claude de Saint Martin, publicado pela Sociedade das Ciências Antigas






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Capítulo V

Podemos reconhecer a falsidade presente nas manifestações e nos movimentos exteriores quando as obras resultantes desses movimentos parecem ser somente sombras de si próprias, mudanças superficiais, que por conseqüência, não possuem o poder vivificante de religar-nos ao plano da grande obra de Deus.

Por outro lado, o escopo do projeto divino consiste em reconduzir-nos ao nosso próprio centro interior onde habita o divino, evitando que nos dispersemos pelos centros exteriores frágeis, tenebrosos e corruptos onde Deus não reside. Além disso, conseguimos reconhecer a falsidade, quando as missões dos seres enviados para instruir-nos possuem um caráter vago e indeterminado.

Tal confusão pode ser verificada quando esses enviados encontram-se subordinados a árbitros incapazes de julgá-los. Tornam-se, então, altamente comprometidos com a destruição das suas próprias obras, pois submetem suas faculdades iluminantes à direção de guias estranhos a tais inteligências. Independentemente deste caráter incerto, podemos ainda discernir o erro, quando as profecias desses enviados oferecem incentivo para afastar-nos do destino natural do espírito humano. Como já se viu, tal espírito é o primeiro sinal e o primeiro testemunho da tonalidade divina, e embora esteja bem longe de atingir aqui na Terra o nível dos privilégios e do esplendor originais, só pode dar um passo seguro vislumbrando a débil centelha que ainda lhe resta.

Enquanto sinal e testemunho da Divindade, o espírito do homem não cumpriria seu objetivo natural se representasse somente o sinal e o testemunho dos anjos e do espírito, das potências terrestres e celestes da natureza e das almas desencarnadas. Mas se após ser anunciado como sinal e testemunho da luz divina, se transformasse por suas ações imprudentes, no sinal e testemunho de seres ignorantes de ações tenebrosas e corruptas, a involução seria ainda mais grave. É impressionante constatar, portanto, com que profusão e confusão todos esses erros e particularidades que deles derivam, podem também se introduzir nas vias de excepcionais manifestações benéficas. 

Pressentimos o erro quando essas vias extraordinárias não se apoiam mais em sólidas estruturas.

As próprias Escrituras Sagradas deixariam de ser verdadeiras se não depusessem em favor do caráter divino como distintivo no homem, como aquele pelo qual reconhece estar revestido por meio do Autor supremo dos seres. As escrituras também não seriam aceitáveis se não elegessem o homem como sinal e testemunho da Divindade única e se não reconduzissem a alma a este único objetivo, mostrando o mal e as trevas que a espera se a alma se transformasse num sinal e testemunho de formas divinas diversas. Enfim, as escrituras não seriam verdadeiras se em todos os eventos que relatam, em todas as profecias que contém e em todas as maravilhas que manifestam, deixassem algo à glória humana dos indivíduos, falhando por não indicar claramente o objetivo exclusivo da afirmação universal em relação à única Verdade suprema. Sob esses pontos de vista, as Sagradas Escrituras servem de suporte à natureza do homem, ao destino que lhe foi designado com base na sua origem e, portanto, deve inspirar cada ação desse mesmo homem. As escrituras apresentam o homem como a criatura chamada a ser a imagem e semelhança de Deus, a dirigir todas as obras a ele confiadas, a conquistar a terra e a povoá-la, a atribuir aos seres os nomes que competem a eles, colocando o homem sob o olhar da Divindade numa correspondência direta com essa.

Depois da narração sobre a queda, as escrituras não cessam de recordar ao homem qual era seu lugar primitivo e de prometer-lhe que o Eterno será o seu Deus e a humanidade será o povo do Eterno, se ele seguir com zelo e coragem as normas e exortações que a suprema Sabedoria envia para confortá-lo. As escrituras não cessam de colocar o homem em guarda contra as insídias dos seres habitantes da triste morada que ele ocupa atualmente; procuram mostrar sob mil formas os meios que esses seres utilizam para destruir sua felicidade, até não conseguirem mais fazer o homem participar das suas abominações e se colocar a serviço dos seus ídolos.

As escrituras descrevem ainda, sob os aspectos mais humilhantes possíveis, o estado de miséria a que o indivíduo se reduziu quando esqueceu Deus e foi negligente ao defender-se dos próprios inimigos. De resto, o homem é uma criatura verdadeiramente cara ao amor divino, principalmente, pela forma com que sempre se referem a ele as escrituras. De fato, o inabalável Princípio de todas as coisas colocou-se ao lado do homem e do seu pensamento, para subtraí-lo do destino de morte ao qual estava exposto; para pagar, em nosso nome, o débito pelo qual somos responsáveis diante da justiça humana. Assim, o rio do amor divino, que é nossa fonte de vida, não pára de fluir para nos regenerar. Aqui na Terra, o coração do homem não se torna árido em relação a seus próprios irmãos, apesar das injustiças cometidas. Estaria sempre pronto a padecer por eles, se por esse preço, pudesse lhes restituir a exultante consciência da virtude. Assim também o eterno rio da vida não secou na ora da nossa falta; simplesmente reduziu-se e retirou-se, condenando-nos a comer com o suor do nosso rosto, o pão da vida que deveríamos comer pelo nosso trabalho e não por meio da fadiga.

Esse rio foi progressivamente alimentado pelas relações com o homem promovidas pela evolução dos tempos. Assumiu enfim sua antiga extensão, cumprindo a lei da nossa condenação, que nós mesmos nos recusamos a cumprir; transformando novamente sua potência na nossa natureza humana. Revestiu-se das possibilidades terrestres e dos sinais de escárnio, e coroado de espinhos, ferido por golpes, sujo pelas cuspidas, abandonado por todos, sofreu ao ponto de mostrar-se publicamente com um bastão como cetro, para que se dissesse dele aos olhos das nações da Terra: 

Ecce Homo. Eis o estado a que o homem se reduziu desde o primeiro pecado e por todas as prevaricações sucessivas.

Graças a essa humilhante confissão, a Justiça reabriu para nós todas as portas do amor, já que dessa forma as conseqüências do pecado do homem foram manifestadas e denunciadas pelo próprio homem. Sem esse terrível testemunho, a morte do Homem Reparador seria uma atrocidade injusta e a misericórdia divina um capricho.

As escrituras pretendem, portanto, indicar o veículo específico de que se serviu o rio vivificante do amor para descer como de uma montanha até nosso ser. Os testemunhos das escrituras não são a prova de todos os princípios para a alma do homem, pois além desses princípios serem anteriores às próprias escrituras, a alma pode lê-los em si mesma. Porém, as escrituras podem oferecer ao homem um apoio sempre sólido e um alimento salutar. E como tais, entram novamente no rol dos meios que nos são oferecidos para julgar as manifestações do espírito em geral.

Sirvamo-nos, portanto, de todos os princípios que até aqui apenas delineamos. Apliquêmo-los às manifestações de vida onde o erro se insinua facilmente sobre a verdade, onde paramos na ascensão e colocamo-nos no caminho do Príncipe das trevas, surpreendidos por maravilhas e tesouros que nos circundam.

Os caminhos e os dons parciais podem se verificar na atmosfera relativa de todos os tempos, porque em todos os tempos existiram e sempre existirão seres que mesmo não sendo inteiramente dedicados ao mal, encontram-se num nível muito inferior em relação ao espírito divino; seres que não serão jamais animados por toda força e plenitude desse espírito. Para que os caminhos limitados possam ser substituídos pela iniciativa da viva luz, é necessário que tenham pelo menos o caráter da vida, que representem numa escala menor, a produção da grande obra. Sem esses pré-requisitos, os seres possuem somente uma função figurativa e limitam-se ao aspecto superficial das situações, de forma que todos que se abandonam a eles não penetram nunca até o centro da obra.

Ora, por razões que não creio seja necessário expor aqui, a obra parcial assume facilmente no pensamento do homem o caráter de obra total. A obra do espírito é confundida facilmente com aquela da Divindade, assim como a obra das potências naturais aparece como obra do espírito. Mais facilmente ainda, a ação das potências cegas e corrompidas é confundida com a ação das potências naturais.

O Príncipe das trevas aproveita-se dessa infeliz tendência do homem para a confusão e a estimula, servindo-se dos direitos que lhe permitimos assumir sobre nós.

Na sua condição relativa, o homem deve então combater dois obstáculos: o da própria fraqueza e o do Príncipe das trevas, obstáculos entre os quais nos movimentamos sobre o plano terrestre. Já o homem admitido na plenitude da obra divina não deve realizar o mesmo trabalho nem correr os mesmos perigos que descrevemos. Porém deve sempre guardar-se do Príncipe das trevas para cumprir dignamente a sua elevada missão. Ele obterá o conselho para suas próprias operações somente da intimidade com Deus. Infelizmente todos os planos são percorridos pelos perigos descritos.

Geralmente os homens trocaram por missão divina as simples missões espirituais; confundiram as missões espirituais com aquelas naturais e as missões naturais com outras tenebrosas ou sub-naturais.

Cada um procurou propagá-las como erroneamente as compreendeu, enquanto o certo era concentrá-las numa atmosfera íntima e limitada quando verdadeiras, ou afastá-las para sempre se não tivessem o caráter da verdade.

Podemos imaginar quantas ofensas os portadores de cada missão dirigiram a si mesmos, saindo de suas próprias esferas e expondo-se, imprudentemente, sem forças suficientes, às influências antagônicas e corruptas de outras esferas que deveriam permanecer desconhecidas para sempre.

Os frutos que o Príncipe das trevas obteve são incalculáveis. Muitas instituições sobre a Terra têm sido visadas por ele, sejam aquelas reverenciadas como sacras, sejam as que fizeram da sua autêntica natureza simples emblemas e com base em progressivas alterações, se transformaram em instituições profanas. Entre esses dois extremos existem numerosos estados intermediários, mas os germens mais mortais produziram frutos nos pontos periféricos, pois quanto mais esses germens decaem, mais encontram terreno onde são capazes de fecundar. Consequentemente as instituições profanadas revelam sua origem tanto pela prescrição de regras absurdas de conduta, quanto pelos seus meios inerentes cujos relatos revelam espaços naturais honrados como divinos por quase todos os povos da Terra, e trocas espirituais, boas e más, às quais tais espaços são suscetíveis.

Será suficiente aqui, para que o leitor atento faça comparações importantes, mencionar os cabelos e unhas, que a exemplo de uma lei muito instrutiva não são sensíveis; já na cabeça do homem, a sinuosidade do cérebro e do cerebelo tem relação com o intestino. Citemos ainda os astros, nos quais a mitologia de todos os tempos coloca inúmeras imagens hipotéticas para satisfazer a fantasia humana. Enfim, recordemos o Deuteronômio, cujo texto o povo hebraico e todos os outros povos podem aprender a se precaverem contra a idolatria, encontrando as bases das relações, a mágica analogia dos planos temporais e o conselho para protegermo-nos dos deuses de outras nações.

Conclusão: demandando uma forma de agir inferior, o Príncipe das trevas nos impede de obedecer à Lei. Ao invés de nos fazer aparecer em nossa miséria e com a nossa qualidade humilhante de Ecce Homo, faz com que nos contentemos com as simples potências espirituais e elementares; com as meras potências figurativas, ou simplesmente com as potências de reprovação, nos iludimos pensando estar revestidos pelas verdadeiras potências de Deus para gozarmos de todos os direitos da nossa origem.

Da facilidade com que o Príncipe das trevas generalizou as missões parciais e alterou-as até transformá-las em ilusórias, derivaram as falsas missões. 



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