segunda-feira, 22 de março de 2021

Ecce Homo, Louis Claude de Saint Martin, 1792 - Capítulo 3

Do livro Ecce Homo por Louis Claude de Saint Martin, publicado pela Sociedade das Ciências Antigas





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Capítulo III

Se houvéssemos permanecido fiéis ao nosso santo destino, deveríamos manifestar todos a glória do Princípio eterno (cada um segundo seu próprio dom). Mas, sem sombra de dúvida, precisamos reconhecer que não temos observado a lei suprema, considerando nossa atual miséria e o fato simultâneo de que o Autor da justiça não teria nos abandonado injustamente num estado de sofrimento e privação. O abuso dos nossos privilégios nos induziu a uma manifestação oposta àquela que nos foi solicitada: ao invés de sermos testemunhas de glória e verdade, somos somente testemunhas de desonra e falsidade.

Visto que hoje toda família humana partilha da mesma punição, como em outro tempo partilhou das mesmas recompensas, cada indivíduo deve oferecer um sinal particular da humilhação atual, como já ofereceu um sinal particular da potência na ordem triunfal, pelo dom que lhe competia. Quero dizer que cada um de nós deveria oferecer um sinal particular da pobreza e da privação a qual a justiça suprema nos submeteu no mundo inferior. Para que, na presença de um sinal tão diferente daquele que deveríamos manifestar, seja possível dizer de nós com insulto e escárnio: Ecce Homo.

Eis O Homem será o título degradante a nos recobrir de humilhação, desvelando os frutos amargos que o horror semeo em nós - enquanto deveríamos brilhar na glória se nosso nome tivesse conservado seu caráter autêntico. Basta dirigir o olhar à condição dos homens sobre a terra para julgar a importância de tal justiça.

Quem de nós já não pagou, de uma forma ou de outra, o próprio tributo de humilhação? Onde está nossa força? Onde está nossa potência? E nossa luz? Excluindo a indigência, a desordem e a doença, que outros testemunhos expressam hoje nossas diversas faculdades? Todas as influências que exercitamos ao nosso redor, não são somente influências letais? Existe um só homem sobre a terra que não esteja em condições de oferecer sinais dessa pesada reprovação?

Oh homem! Se ainda não estás consciente o bastante para derramar lágrimas sobre a tua miséria, pelo menos não te lança ao ponto de julgá-la um estado de felicidade e saúde. Não permita deixar-te levar pela sedução dos mitos. Não te comporta como uma criança doente que pára de gritar porque se distraiu com o ruído de um brinquedo que se agita em frente a seus olhos e, momentaneamente tranqüilizada pelo fascínio do brinquedo, se acalma como se não devesse mais temer o mal. Da mesma forma, a tua mente se deterá por pouco tempo sobre as ilusões que te distraem do mal; mas esse não tardará em se fazer sentir, e tu, Oh homem!, assustado pelo perigo que te ameaça, descobrirás com que justo fundamento a Sabedoria procura te proteger dos teus males, exortando-te a sarar.

Mas apesar das rigorosas leis que a justiça nos impõe, as conseqüências da nossa condenação, seriam bem mais suportáveis se pudéssemos reconhecer a imparcialidade suprema do nosso Juiz. 

Trata-se de reconhecer a bondade implícita em suas reais intenções conosco e de passarmos a nos resignar voluntariamente diante da inevitável potência de seus decretos.

Do exemplo mútuo naturalmente oferecido pelos indivíduos derivariam vantagens imediatas importantes. O estado enfermo, débil e tenebroso dos nossos semelhantes, seria para nós um meio visível de instrução a lembrar continuamente para nossa mente a degradação da família humana.

Por outro lado, retribuiríamos para os outros o mesmo favor se oferecêssemos a seus olhos um espetáculo análogo. Assim, representando uns para os outros o reflexo do pecado e da humilhação comum, estaremos em condições de reconhecer a iluminada justiça da sentença que atraímos sobre nós. Esse será o momento inicial do processo de regeneração que a Sabedoria suprema procura nos avivar. Essa é a única estrada que pode nos levar ao soberano Princípio do amor, do qual recebemos forma e de onde fomos banidos, forçados a deixar os domínios a nós mesmos confiados.

Oh valentes homens das letras! Servi-vos da vossa eloquência para delinear com cores persuasivas e encorajantes o quadro instrutivo da família humana, o estado no qual os indivíduos representam uns para os outros tantas lições viventes. Então, a visão da miséria comum suscitará nos indivíduos um horror salutar de si próprios e os despertará para um interesse apaixonado pela reabilitação de todos os membros desta grande família. Enquanto observam uns ao lado dos outros o silêncio triste da dor, sem interrompê-los para que percebam o ritmo acossador da expiação, mostre-lhes a prática de nutrir-se do pão das lágrimas. Assim o homem poderá dizer do homem: “Irmão, fundamos sobre uma falsa humanidade o reino da morte e agora esse nos abraça com suas trevas; não escondamos o homem de mentira, mantendo-o fechado em suas desgraças e em suas baixezas; procuremos fazê-lo emergir ao aberto para que o vento vivo penetre-o até sua raiz e o reino da morte, estremecido em seus fundamentos, possa desabar e afundar-se nos seus próprios abismos.”

Mas o homem está bem longe de oferecer um espetáculo similar, assim como de prostrar-se frente à irrevogável justiça que não cessa de soar sobre ele. O mesmo princípio de desordem que nos fez decair da nossa dimensão original, persegue, acompanha e anima nossa degradada existência. 

Assim como mascarou a fonte mortal do nosso extravio, ele dissimula, dia após dia , seus frutos e conseqüências. O único objetivo desse princípio destrutivo é prolongar a existência do fundamento do mal para que, perpetuando nossa ilusão, possa perpetuar seu próprio reino; e infelizmente, esse fundamenta-se somente sobre nossos desenganos e sobre nossas trevas.

A força enganosa nos persuade de que seguindo suas insinuações sedutoras não nos degradamos; e quando já a estamos seguindo, procura nos convencer que não estamos decaídos, nos induz a persuadir da mesma forma todos os que nos cercam. Em outras palavras, nos leva a impor o sinal da nossa condenação específica aos nossos semelhantes, ao invés de confessá-lo juntamente com o tipo de privação que nos é imposta. O mesmo princípio deteriorante teve a habilidade de aumentar a carga que nos exaure, através das conseqüências da própria degradação e dos múltiplos desejos que nos devoram e nos ocultam o caminho a seguir em direção à reintegração. Os homens procuram se mostrar, portanto, como se efetivamente fossem dotados dos dons que pertenceriam a nossa verdadeira natureza antes de termos cavado um enorme abismo entre nós e a verdade. Também se preocupam em ocultar a falta de virtudes, a carência de talento, os defeitos físicos e os defeitos que derivam dos privilégios de algumas formas sociais e políticas. O olhar de nossos semelhantes tornou-se para nós o único objetivo e o único incentivo para as nossas ações e movimentos. Assim, 

a superficialidade nos desviou da evolução - objetivo da Sabedoria - quando nos expulsou da sua presença e exilou, a todos, no mesmo lugar. A contínua ilusão, ao contrário, leva-nos sempre mais à ruína e à completa destruição.

No mais, desejaríamos aparecer aos olhos do universo como divindade própria e verdadeira. Mas, sem ter conseguido tal empresa, não quisemos renunciar a ela completamente e procuramos nos investir do nome sacro, pelo menos na opinião dos nossos semelhantes, e de impressionar-lhes com a nossa superioridade - onde permanecem dominados e nos iludem com o doce som da palavra Ecce Deus, ao invés de nos irritar e cobrir de vergonha com a degradante definição Ecce Homo.

Em resumo, nos comportamos como aqueles seres lesos em todos os membros que ainda aspiram à beleza e a uma vida normal, e procurando mascarar sua má formação com todos os tipos de artifícios, não se preocupam com a fragilidade dos meios empregados com tal objetivo.

O sacerdote, uma vez privado da verdadeira potência e da verdadeira luz, é obrigado a transmitir uma fé cega no caráter e no fundamento, assim como o filósofo e o orador suplicam com os sofismas e com a formalidade da eloquência a falta dos princípios fundamentais, necessários para o estabelecimento do reino da verdade. Sempre com as mesmas razões, os legisladores também exaltam os direitos dos povos e a potência das nações, mesmo não tendo claro os verdadeiros fundamentos da soberania política. Afinal, também o hipócrita busca com esforços de dissimulação e astúcia, o bom nome que não pode obter pelas suas virtudes; sem considerar, além disso, todos os abusos, as baixeza e injustiças que afligem em qualquer parte as associações humanas.

Portanto, adotando meios desviados e corruptos, nós homens substituímos a salutar confissão do nosso estado humilhante pelo quadro de uma glória que é somente fruto de mentira. Enfim, ao invés da humanidade buscar entre os próprios componentes consolo recíproco, no seu estado de prova não cessa de atrair males contínuos.

De fato, o emprego habitual dos nossos dias é semelhante a um sacrificar recíproco; enquanto que, percorrendo o caminho traçado pela consciência da nossa fragilidade, poderíamos nos encaminhar ao bem reciprocamente.

Os caminhos não naturais pelos quais o homem se retarda diariamente terminam com contínuas quedas e desilusões. Os esforços que ele cumpre para destruir a humilhante sentença da própria condenação são em vão e fazem-na mais vergonhosa, por acrescentar novas perspectivas de decadência a sua degradação original. Ainda inutilmente, ele sente que os meios dos quais se serve são apenas sugestões e não tem uma base bastante profunda para conduzi-lo ao verdadeiro objetivo. 

Todos esses remédios, não tendo em si o princípio da vida, são mais nocivos ao seu espírito do que as substâncias às quais ele recorre para remediar as carências do físico. Não obstante, o homem continua a prosseguir no caminho improvisado pela própria imprudência e continua a esperar que lhe venha cancelado o humilhante título: Ecce Homo.


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