terça-feira, 16 de março de 2021

Ecce Homo, Louis Claude de Saint Martin, 1792 - Capítulo 2

Do livro Ecce Homo por Louis Claude de Saint Martin, publicado pela Sociedade das Ciências Antigas




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Capítulo II

Os principais testemunhos do homem consistem no fato de que, sendo ele evidentemente um santo e sublime pensamento de Deus, embora não seja “o” Pensamento de Deus, a sua essência é necessariamente indestrutível - pois qual seria a possibilidade de um pensamento de Deus perecer?

Em segundo lugar, através da via do pensamento que lhe é própria, Deus ama profundamente o homem. E como poderia, então, não amar-nos, não amar o seu pensamento? Nós mesmos nos deleitamos com os nossos pensamentos!

Por fim, é esse o mais importante testemunho que nos oferece o homem: se somos um pensamento do Deus dos seres, podemos nos espelhar só em Deus e compreendermos Deus e nós mesmos somente no seu esplendor. Pois uma representação nos é desconhecida, principalmente enquanto não conseguimos atingir o pensamento que ela manifesta e da qual é testemunha. Além disso, mantendo-nos afastados dessa luz divina e criadora da qual devemos ser a expressão em nossas faculdades, assim como na nossa essência, seremos apenas testemunhas insignificantes, sem valor e sem caráter. Verdade preciosa é a que demonstra porque o homem se mostra como um ser obscuro e é um problema tão complicado aos olhos da filosofia humana.

Mas se conseguíssemos nos espelhar em nossa sublime fonte, como poderíamos delinear a dignidade da nossa origem, a entidade dos nossos direitos e a santidade de nosso destino?

Homens passados, presentes e futuros, todos e cada um que representam um pensamento do Eterno, sabeis quais seriam as vossas esperanças e as vossas felicidades se todos os gérmens divinos que vos constituem estivessem em atividade e em desenvolvimento? Mas, se mesmo com esses grandes privilégios, a vossa sorte ainda vos procura com desgostos e gemidos e vos impede de exultar, procureis, ao menos, fazendo refletir sobre vós os raios do Sol gerador, encontrar aquilo que o homem foi em outra época, que já transcorreu, mas cujos testemunhos presentes atestam que não vos foi sempre estranha.

O homem pode não ser mais aquele que foi num tempo passado, mas sempre poderá aperceber-se daquilo que deveria ser no futuro. Pode sentir sempre a inferioridade da própria substância, perecível e material, que tem somente o poder passivo de absorver suas faculdades na confusão e na opacidade de que é suscetível, enquanto o ser humano tem o poder ativo de criar múltiplas faculdades, que não existiriam nunca por natureza e sem a vontade do homem.

Aqui justamente apresentamos a diferença em relação ao homem empírico. Esta é muito importante para que não reconheça em vós os sinais da antiga dignidade e da supremacia do pensamento. Tal diferença seria uma forma de conduzir o homem mais ao alto e demonstrar-lhe que as verdades interiores são muito mais instrutivas do que as verdades geométricas. De fato, essas últimas se fundamentam somente sobre a superfície, enquanto as primeiras nascem do centro interior e permitem entrever a profundidade.

Persuadidos disso, remontamos, portanto, à nossa origem. Penetramos, com a nossa atividade interior, no estado em que poderíamos descobrir se a influência criadora da fonte suprema passa a agir no âmbito de nossa atual existência. E se essa transmitiu para nossa natureza todos aqueles princípios de ordem, de perfeição e de felicidade, que nós sentimos dever residir eternamente no Ser soberano do qual descendemos. Todos estes gérmens divinos, uma vez formados em nós, não trariam consigo o dom de uma vida potente e eficaz? A nossa inteligência não seria, por ventura, gerada continuamente do sopro destas inumeráveis e eternas fontes de vida que lhe dariam existência e luz? A nossa capacidade de amar seria preenchida pela viva e doce universalidade de nosso Princípio originário e não deixaria nenhuma lacuna em nosso afeto sublime e em nosso impulso de santa gratidão com esse Princípio..

Alguns consideram que refazer a nossa origem significa remontar a duas épocas, anteriores ao estado no qual o homem se encontra hoje. Isso para alegrarem-se com a idéia sábia e consoladora que o mal primitivo não foi eterno e para deixar à Deus a glória de haver exercitado o sublime privilégio que ele possui - de gerar todas as suas criaturas na plenitude da alegria e de uma felicidade selada por cada função penosa e por cada luta perigosa. Os que sustentam tal hipótese, afirmam que na primeira dessas épocas, como o mal ainda não existia ou, em outros termos, nenhum ser havia ainda se separado do plano divino, as nossas alegrias não teriam então necessidade de realizar-se além de nossa existência. De fato, se tivessem se realizado, isso teria significado o engrandecimento sem fim do eu no infinito, a única coisa real para nós; teríamos, assim, conseguido exprimir a nossa felicidade e o nosso amor em contínua ascensão em direção à nossa Fonte, que nunca teria cessado de inclinar-se amavelmente em nossa direção; não teríamos necessidade de manifestar-nos diretamente, pois ao nosso redor tudo estava completo e a Verdade, preenchendo tudo, nos olhava como adoradores eternos, sem nos usar como seus símbolos e testemunhos; todos os seres, por fim, teriam a alegria da visão e da presença da Verdade absoluta, e nada faltaria para a plenitude de seus afetos e de suas esperanças, podendo ter a visão da imensidão e da infinita atividade divina.

Para não dirigirmos nosso olhar a uma ordem de coisas tão elevadas, contentemo-nos aqui em contemplar o momento da nossa missão no universo. Iremos nos deter, portanto, sobre a segunda época da nossa origem, a mais próxima da nossa condição atual. De fato, estando a primeira época tão afastada de nós, não teríamos idéia da sua existência se a segunda não funcionasse como sua intermediária.

Na segunda época - que continuaremos a considerar como a nossa existência primitiva - recebemos os caracteres dos símbolos e dos testemunhos da Divindade no Universo, assim como nos foi dada toda potência e esplendor divino, associados ao escopo sublime da nossa qualidade espiritual e aos direitos divinamente concedidos para cumprirmos esse escopo. Por que motivo, então, fomos afastados do âmbito da imensidade divina, na qualidade de sinais e de testemunhos, a não ser para repetir no lugar onde a Sabedoria suprema nos colocou, aquilo que acontecia no círculo divino do ser? E como poderia existir uma zona separada e particular, se alguns seres, turbando o próprio equilíbrio, não tivessem interditado o acesso ao espaço universal - dado que o princípio da Unidade procura inundar tudo por sua natureza e o mal não é outra coisa se não a concentração parcial de um ser livre e sua abstração voluntária do reino da universalidade?

Assim como na ordem eterna da imensidade divina, Deus basta à plenitude da contemplação de todos os seres, nós, no momento em que recebemos uma missão individual e uma existência separada dele, poderíamos representá-lo e sermos seus sinais e testemunhos. Somente com a nossa dimensão, já mostraríamos a imagem mais tênue de Deus para os seres que, concentrados na própria existência e tendo perdido de vista a presença divina, estariam encerrados na atmosfera particular de seu erro.

Nesse contexto, no momento de nossa origem deveria se manifestar em nós mesmos todo o plano válido para o andamento da nossa obra. Seria necessário que nós explicássemos os pensamentos luminosos, as virtudes vivificantes e as ações eficazes, para podermos ser os representantes do supremo Autor do nosso ser. Quanto mais aprofundamos a analogia que reconhecemos entre a alma humana e o seu eterno Princípio, mais sentimos que, sendo Deus a fonte radical e primitiva de tudo o que é perfeito, não poderíamos ter derivado dele, e sim sermos dotados daqueles sublimes caracteres que temos apenas delineado, dos quais nossos fracos pensamentos representam ainda hoje algumas imagens, quando sãos e regulares.

A divindade, de fato, não teria escolhido o próprio pensamento, se não tivesse como objetivo refletir-se em nós com toda a sua majestade.

Os traços desse selo sagrado, que caracterizam o "ânimo" do homem, resistem eternamente a todos os poderes destrutivos. Apesar da vastidão do tempo e a despeito da espessura das trevas, todas as vezes que o homem contemplar as suas relações com Deus, encontrará em si os elementos indissolúveis da sua essência original e os indícios naturais de seu destino glorioso. Ele sentirá que, devido a esse destino glorioso, uma força potente e temível nos foi conferida para submeter à autoridade divina aqueles que poderiam desconhecê-la. Se tivéssemos continuado unidos ao nosso ser, nada nos teria subtraído tal potência, se não a houvéssemos liberado. Ele sentirá ainda que teríamos domínio sobre o nosso império, depois de tê-lo subjugado, e estaríamos ornados de todos os crismas necessários para anunciar em todos os lugares a nossa legítima soberania. Além disso, sentirá que estávamos vestidos sobriamente para tornar nossa presença ainda mais majestosa e para que todas as zonas sujeitas ao esplendor que nos circundava pudessem oferecer-nos o testemunho de respeito e submissão devido à missão divina confiada a nós pela mão suprema. Hoje, o único meio para o homem reconduzir-se ao seu antigo estado, é considerar os frágeis sinais que a sua mente pueril substituiu na terra: o gladio dos conquistadores, os cetros, as coroas, a pompa que circunda os soberanos e a respeitosa dedicação de seus súditos. Poderia encontrar ainda alguns traços disformes dos nossos títulos originais, mas jamais recuperar-lhe a função virtual.

Mas, se para o homem ainda é possível encontrar em si mesmo e nas imagens passageiras da potência convencional e terrestre, os vestígios daquilo que ele poderia ter sido, é fácil para ele provar a dolorosa distância daquele destino glorioso. E se ele ainda tem indícios dos seus direitos primitivos, tem também provas bem numerosas que esses indícios não estão mais em seu poder.

É inútil aqui corroborar com outras demonstrações a degradação da espécie humana. É preciso ser desorganizado para negar essa degradação, que é evidentemente constatada pelos suspiros com os quais o gênero humano preenche continuamente a terra, assim como a idéia radical de que o Autor dos seres coloque todas as suas produções nos seus elementos naturais. Então porque estamos tão afastados de nosso elemento natural? Por que mesmo sendo ativos por natureza estamos como que submersos e acorrentados pela coisas passivas? Os homens têm o direito de buscar onde desejarem as causas dessa real e aflitiva desarmonia, exceto no capricho e no rigor do nosso Princípio soberano, cujo amor, sabedoria e justiça constituem o baluarte perene contra os nossos murmúrios.

De resto, ocupando-nos aqui somente das conseqüências e não das causas dessa degradação, pretendemos dirigir-nos somente àqueles que não lhe negam a existência e, apesar das dificuldades que enfrentam para explicar o mal e a sua origem, julgam estarem mais satisfeitos com uma verdade difícil e obscura do que estariam com um absurdo evidente, sem truncar negativamente a questão como faz a filosofia imprudente.

Para delinear as conseqüências desastrosas da nossa degradação, é necessário restaurar-nos ao estado glorioso a que gozávamos, como também ao tesouro que tivemos a custódia e a divisão. É necessário reconhecer que compartilharíamos solidamente a gloria e a recompensa desta magnífica manifestação, pois compartilharíamos solidamente também os trabalhos da grande obra de purificação a nós designado por Deus. Mas dado que não podemos atribuir à Sabedoria suprema a responsabilidade por haver conspirado conosco no abuso daqueles sublimes privilégios, somos obrigados a imputar todos os erros à potência livre do nosso ser. Sendo frágil por natureza - se assim não fosse teriam existido dois Deuses - tal potência abandonou-se às miragens da ilusão e precipitou-se no abismo por culpa própria. Julgo inútil analisar novamente tal verdade, havendo-a já amplamente ilustrada em meus escritos anteriores.

Os princípios da sã justiça, imortais como a nossa essência e que sempre restarão em nós, embora com freqüência não os apliquemos justamente, nos ensinam em que coisa nos transformamos por nossa culpa e nos mostram quais satisfações tal justiça exige de nós.

Começa aqui a aclarar-se o título desta obra e o sentido dessas duas palavras “Ecce Homo”.

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