quinta-feira, 30 de junho de 2016

Do Livro A Lei de Frédéric Bastiat

– São Paulo : Instituto  Ludwig von Mises Brasil, 2010
...A perverSão dA lei cAuSA conflito
Enquanto se admitiu que a lei possa ser desviada de seu propósito,
que ela pode violar os direitos de propriedade em vez de garanti-los, en
tão qualquer pessoa quererá participar fazendo leis, seja para proteger-se
a si próprio contra a espoliação, seja para espoliar os outros. As questões
políticas serão sempre prejudiciais, dominadoras e absorverão tudo. Ha
verá luta às portas da assembleia legislativa e também luta, não menos
violenta, no seu interior. Para convencer-se disso, basta olhar o que se
passa nas câmaras legislativas da França e da Inglaterra. Seria suficiente
saber como o assunto é tratado. Há necessidade de se provar que esta
odiosa perversão da lei é fonte perpétua de ódio e de discórdia, podendo
até chegar à destruição da ordem social? Se alguma prova for necessária,
olhe-se para os Estados Unidos. É o país do mundo onde a lei permanece
mais dentro dos limites de sua finalidade, a saber, garantir para cada um
a liberdade e a propriedade. Como consequência disto, parece não haver
no mundo país onde a ordem social repouse sobre bases mais sólidas.
Mas, mesmo nos Estados Unidos, existem duas questões, e tão somente
duas, que colocaram por várias vezes a ordem política em perigo.
eScrAvidão e tArifAS conStituem eSpoliAção
E quais são essas duas questões? São a escravidão e as tarifas adu
aneiras.   Nestes  dois  assuntos,  contrariamente  ao  espírito  geral  da
República dos Estados Unidos, a lei adquiriu um caráter espoliador.
A escravidão é uma violação, pela lei, da liberdade. A tarifa prote
tora é uma violação, pela lei, do direito de propriedade.
E certamente é bem provável que, em meio a tantos outros deba
tes, este duplo flagelo legal, triste herança do Velho Mundo, possa
trazer, e trará, a ruína da União. É que, com efeito, não se pode ima
ginar, no seio de uma sociedade, um fato mais digno de consideração
que este: a lei veio para ser um instrumento da injustiça. E se este
fator gera consequências tão terríveis nos Estados Unidos, onde o
propósito da lei só permitiu exceções no caso da escravidão e das ta
rifas; o que dizer de nossa Europa, onde a perversão da lei constitui
um Princípio, um Sistema?
duAS eSpécieS de perverSão
O  Senhor   de Montalembert  (político  e  escritor),  ao  adotar  o
pensamento  contido  na  famosa  proclamação  do  Senhor   Carlièr,
dizia: “É preciso combater o socialismo.” E por socialismo acre
dita-se  que,  segundo  a  definição  do  Senhor   Charles Dupin,  ele
queria dizer espoliação.
Mas de que espoliação estava ele falando? Pois há dois tipos de
espoliação: a legal e a ilegal.
Não creio que a espoliação ilegal, tal como o roubo e a fraude,
que o Código Penal define, prevê e pune, possa ser chamada de so
cialismo. Não é ela que ameaça sistematicamente a sociedade em
suas bases. Aliás, a guerra a este tipo de espoliação não esperou
o sinal verde do Senhor de Montalembert ou do Senhor Carlier.
Ela  já  havia  começado  desde  o  início  do  mundo.   Muito  tempo
antes da Revolução de fevereiro de 1848, antes mesmo do apareci
mento do socialismo, a França já possuía polícia, juizes, guardas,
prisões, cadeias e forcas. É a própria lei que conduz esta guerra e
seria desejável, penso eu, que a lei sempre tivesse esta atitude com
relação à espoliação.
A lei defende A eSpoliAção
Mas não é isso o que acontece. Às vezes a lei defende a espoliação;
outras vezes, a leva a cabo por suas próprias mãos, no intuito de pou
par o beneficiário da vergonha, do perigo e do escrúpulo. Às vezes
ela usa todo o aparato da magistratura, da polícia, guardas e prisão
em prol do espoliador, tratando como criminoso o espoliado que se
defende. Em uma única palavra: existe a espoliação legal e é dela que,
sem dúvida, fala o Senhor de Montalembert.
Essa espoliação legal pode ser apenas uma mancha isolada no seio
das medidas legislativas de um povo. Se assim for, é melhor apagá-la
o mais rápido possível, sem maiores discursos ou denúncias, a despei
to da grita dos interessados.
como identificAr A eSpoliAção legAl
Mas como identificar a espoliação legal? Muito simples. Basta
verificar se a lei tira de algumas pessoas aquilo que lhes pertence e dá
a outras o que não lhes pertence. E preciso ver se a lei beneficia um
cidadão em detrimento dos demais, fazendo o que aquele cidadão não
faria sem cometer crime. Deve-se, então, revogar esta lei o mais de
pressa possível, visto não ser ela somente uma iniquidade, mas fonte
fecunda de iniquidade, pois provoca represálias. Se essa lei — que
deve ser um caso isolado — não for revogada imediatamente, ela se
difundirá, multiplicará e se tornará sistemática.
Sem dúvida, aquele que se beneficia com essa lei gritará alto e for
te. Invocará os direitos adquiridos. Dirá que o estado deve proteger e
encorajar sua indústria particular e alegará que é importante que o
estado o enriqueça, porque, sendo rico, gastará mais e poderá pagar
maiores salários ao trabalhador pobre.
Não se ouça este sofista. A aceitação desses argumentos trará a espolia
ção legal para dentro de todo o sistema. De fato, isto sempre ocorreu. A
ilusão dos dias de hoje é tentar enriquecer todas as classes, à custa umas das
outras. Isto significa generalizar a espoliação sob o pretexto de organizá-la.
A eSpoliAção legAl tem muitoS nomeS
Agora, a espoliação legal pode ser cometida de infinitas manei
ras. Possui-se um número infinito de planos para organizá-la: ta
rifas, protecionismos, benefícios, subvenções, incentivos, imposto
progressivo,  instrução  gratuita,  garantia  de  empregos,  de  lucros,
de salário mínimo, de previdência social, de instrumentos de tra
balho, gratuidade de crédito etc. E é o conjunto de todos esses pla
nos, no que eles têm de comum com a espoliação legal, que toma o
nome de socialismo.
Ora, o socialismo assim definido forma um corpo de doutrina.
Então, que ataque lhe pode ser feito senão através de outra guerra
de doutrina? Se você achar a doutrina socialista falsa, absurda e
abominável, então refute-a. E quanto mais falsa, mais absurda e
mais abominável for, mais fácil será refutá-la. Sobretudo, se você
quiser ser forte, comece por expurgar toda e qualquer partícula
de socialismo que possa existir na sua legislação. E a tarefa não
será pequena.
SociAliSmo é eSpoliAção legAl
O Senhor de Montalembert foi acusado de querer combater o socia
lismo pelo uso da força bruta. Deve-se, porém, livrá-lo desta acusação.
O que ele disse, portanto, foi o seguinte: “A guerra a se empreender
contra o socialismo deve ser compatível com a lei, a honra e a justiça.”
Mas por que o Senhor de Montalembert não observou que ele se
colocara num círculo vicioso?
Queria usar a lei para combater o socialismo? Mas como, se o pró
prio socialismo invoca a lei?
Os socialistas desejam praticar a espoliação legal e não a ilegal. Os
socialistas, como outros adeptos do monopólio, desejam fazer da lei
seu próprio instrumento. E uma vez que a lei está do lado do socialis
mo, como poderá ser usada contra ele? Se a espoliação está acobertada
pela lei, não pode ter contra ela os tribunais, os guardas, as prisões.
Ao contrário, deve é chamá-los para lhe prestar apoio.
Para impedir tais coisas, talvez se quisesse excluir os socialistas da
elaboração das leis.
Será que se poderia impedi-los de entrar na assembleia legislativa?
Não se teria sucesso, prevejo, enquanto a espoliação legal continuar a
ser o principal assunto de nossa legislação. É ilógico, na verdade até
absurdo, pensar de outra maneira.
A eScolhA diAnte de nóS
A questão da espoliação legal deve ser esvaziada de qualquer ma
neira. Para tanto só vejo três soluções:
1. Poucos espoliarão muitos.
2. Todos espoliarão todos.
3. Ninguém espoliará ninguém.
Devemos  fazer  nossa  escolha: espoliação parcial, universal  ou
nula. A lei só pode lutar por um desses três resultados.
Espoliação parcial: é o sistema que prevaleceu enquanto o eleitorado era
parcial e ao qual estamos retornando para evitar a invasão do socialismo.
Espoliação universal: é o sistema que nos ameaçou quando o sufrá
gio se tornou universal.
As massas conceberam a ideia de legislar a partir do mesmo prin
cípio utilizado pelos legisladores que as precederam, quando o su
frágio era limitado.
Espoliação nula: é o princípio da justiça, da paz, da ordem, da esta
bilidade, da harmonia, do bom senso. E até o último dos meus dias
eu proclamarei com todas as minhas forças (que já estão débeis, por
causa de meus pulmões) a existência desse princípio.
A função própriA dA lei
E, sinceramente, pode-se pedir outra coisa à lei se não a ausência
da espoliação? Pode a lei, que necessariamente pede o uso da força,
ser usada racionalmente para outra coisa que não seja a proteção dos
direitos de cada pessoa? Desafio qualquer um a tentar usá-la de outro
modo sem pervertê-la e, consequentemente, colocando a força contra
o poder. Esta é a mais funesta e a mais lógica perversão que se possa
imaginar. Deve-se, pois, admitir que a verdadeira solução, tão procu
rada na área das relações sociais, está contida em três simples palavras:
A LEI É A JUSTIÇA ORGANIZADA.
Ora, vejamos bem: quando a justiça é organizada pela lei, isto exclui
a ideia de usar a lei (a força) para organizar qualquer outra atividade hu
mana, seja trabalho, caridade, agricultura, comércio, indústria, educação,
arte ou religião. A organização pela lei de qualquer uma dessas ativi
dades trairia inevitavelmente a organização essencial, a saber, a justiça.
Sinceramente, como se pode imaginar o uso da força contra a liberdade
dos cidadãos, sem que isto não fira a justiça e o seu objetivo próprio?
A SedutorA AtrAção do SociAliSmo
Aqui eu esbarro no mais popular dos preconceitos de nossa época.
Não se acha suficiente que a lei seja justa, pretende-se também que seja
filantrópica. Não se julga suficiente que a lei garanta a cada cidadão o
livre e inofensivo uso de suas faculdades para o seu próprio desenvol
vimento físico, intelectual e moral. Exige-se, ao contrário, que espalhe
diretamente sobre a nação o bem-estar, a educação e a moralidade.
Este é o lado sedutor do socialismo. E eu repito novamente: estes
dois usos da lei estão em contradição um com o outro. É preciso es
colher entre um ou outro. Um cidadão não pode, ao mesmo tempo,
ser e não ser livre.
Nota do tradutor para o inglês: “Quando este texto foi escrito,
o Senhor Bastiat sabia que estava doente,
com tuberculose. Morreu pouco tempo depois.”
A frAternidAde forçAdA deStrói A liberdAde
O Senhor de Lamartine escreveu-me certa vez o seguinte: “Sua
doutrina  é  somente  a  metade  do  meu  programa;  você  parou  na  li
berdade; eu já estou na fraternidade.” Eu lhe respondi: “A segunda
metade de seu programa destruirá a primeira.”
Com efeito, é-me impossível separar a palavra fraternidade da pala
vra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a frater
nidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente
destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada.
A espoliação legal tem duas raízes: uma delas, como já lhe disse
anteriormente, está no egoísmo humano; a outra, na falsa filantropia.
Antes de ir além, creio dever explicar exatamente o que entendo
pela palavra espoliação.
A eSpoliAção violA A propriedAde
Não uso esta palavra como se faz frequentemente, numa acepção
vaga,  indeterminada,  aproximativa,  metafórica:  faço-o  no  sentido
absolutamente  científico,  isto  é,  exprimindo  a  ideia  oposta  à  ideia
de  propriedade  (salários,  terras,  dinheiro  ou  outra  coisa  qualquer).
Quando uma porção da riqueza passa daquele que a adquiriu, sem seu
consentimento e a compensação devida, para alguém que não a gerou,
seja pela força ou por astúcia, digo que houve violação da propriedade,
que houve espoliação.
Digo que é isto o que a lei deveria reprimir para todo o sempre.
Quando a própria lei comete um ato que ela deveria reprimir, nesse
caso a espoliação não é menor, porém maior e, do ponto de vista social,
com circunstâncias agravantes. Só que, em tal situação, a pessoa que
recebe os benefícios não é responsável pelo ato de espoliação. Tal res
ponsabilidade cabe à lei, ao legislador e à própria sociedade. E é aí que
está o perigo político.
É de se lamentar que a palavra espoliação tenha conotações ofensi
vas. Tentei em vão encontrar outra, pois eu não desejaria, em momen
to algum, lançar no seio de nossas dissensões uma palavra irritante.
Por isso, creiam-me ou não, declaro não pretender acusar as intenções
ou a moral de quem quer que seja. Eu combato uma ideia que acredito
ser falsa; um sistema que me parece injusto; uma injustiça tão inde
pendente das intenções pessoais, que cada um de nós tira proveito da
ideia do sistema sem o querer e sofre por causa do mesmo sem o saber.
trêS SiStemAS de eSpoliAção
A sinceridade daqueles que abraçam o protecionismo, o socia
lismo e o comunismo não é aqui questionada. Qualquer escritor
que quiser fazer isto deve estar agindo sob a influência do espírito
político  ou  do  medo  político.   Deve  ser  contudo  apontado  que
o  protecionismo,  o  socialismo  e  o comunismo  são  basicamente
a mesma planta, em três estágios diferentes de seu crescimento.
Tudo o que se pode dizer é que a espoliação legal é mais visível,
por sua particularidade, no protecionismo
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e, por sua universali
dade, no comunismo. Conclui-se então que, dos três sistemas, o
socialismo é ainda o mais vago, o mais indeciso e, por conseguin
te, o mais sincero.
Mas, sincero ou não, as intenções das pessoas não estão aqui
colocadas  em  questão.   De  fato,  eu  já  disse  que  a espoliação
legal está baseada parcialmente na filantropia, mesmo que seja
na falsa filantropia.
Com esta explanação, passemos agora ao exame do valor, da origem
e da tendência dessa aspiração popular, que pretende alcançar o bem
geral pela espoliação geral.
A lei é forçA
Se a lei organiza a justiça, os socialistas perguntam por que a lei
não organiza também o trabalho, a educação e a religião.
Por que a lei não é usada com tais propósitos? Por que ela não
poderia organizar o trabalho, a educação e a religião sem desorga
nizar  a  justiça.   Devemo-nos  lembrar  de  que  a lei  é força,  e,  por
conseguinte, o seu domínio não pode estender-se além do legítimo
campo de ação da força.
Quando a lei e a força mantêm um homem dentro da justiça, não
lhe impõem nada mais que uma simples negação. Não lhe impõem
senão a abstenção de prejudicar outrem. Não violam sua personalida
de, sua liberdade nem sua propriedade. Elas somente salvaguardam a
personalidade, a liberdade e a propriedade dos demais. Mantêm-se na
defensiva puramente e defendem a igualdade de direitos para todos.
Nota do autor:
“Se o especial privilégio da proteção governamental contra a competição fosse concedido
a uma só classe, na França, como, por exemplo, aos ferreiros, tal fato seria tão obviamente espoliador que não conseguiria manter-se. Por isso, vemos todas as indústrias protegidas aliarem-se em torno de uma causa comum e até se organizarem de modo a aparecerem como representantes de todo o trabalho nacional. Instintivamente elas sentem que a espoliação se dissimula, ao se generalizar.”
A lei é um conceito negAtivo
A lei e a força realizam uma missão cuja inocuidade é evidente, a
utilidade palpável e a legitimidade indiscutível.
Isto é tão verdadeiro que um de meus amigos me fez observar que
a finalidade da lei é fazer reinar a justiça, o que, a rigor, não é bem exato.
Seria melhor dizer-se que a finalidade da lei é impedir a injustiça de rei
nar. Com efeito, não é a justiça que tem uma existência própria, mas
a injustiça. Uma resulta da ausência da outra.
Mas quando a lei — por intermédio de seu agente necessário, a
força — impõe um modo de trabalho, um método ou uma matéria de
ensino, uma fé religiosa ou um credo, não é mais negativamente, mas
positivamente, que ela age sobre os homens. Ela substitui a vontade
do legislador por sua própria vontade, a iniciativa do legislador por
sua própria iniciativa. Quando isto acontece, as pessoas não têm mais
que se consultar, que comparar, que prever. A lei faz tudo por elas.
A inteligência torna-se para elas um móvel inútil; elas deixam de ser
gente; perdem sua personalidade, sua liberdade, sua propriedade.
Tente-se imaginar uma forma de trabalho imposta pela força, que
não atinja a liberdade; uma transmissão de riqueza imposta pela for
ça, que não seja uma violação da propriedade. Se imaginar isto for
impossível, deve-se reconhecer que a lei não pode organizar o traba
lho e a indústria sem organizar a injustiça.
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