V
A questão do critério da verdade, do princípio que sanciona o conhecimento da verdade, da autoridade na fé, não é uma questão espiritual. Essa questão, característica do pensamento reflexivo próprio ao conhecimento religioso e científico, nasce no ser natural e no homem psíquico, e por sua causa.
O Desdobramento, a oposição, não são elementos da vida espiritual. A alma pode se considerar como sendo oposta ao objeto, e ela pode se interrogar sobre o critério de seu conhecimento. Mas nenhum objeto se opõe ao espírito, e assim a questão do critério não se coloca. Somente um objeto que seja estranho e impenetrável pode provocar a questão do critério de seu conhecimento.
Na vida espiritual, não existe objeto do conhecimento, nem objeto de fé, porque não existe posse, aproximação interior, parentesco com o objeto, absorção desse objeto pela profundidade.
O critério da verdade no espírito é a manifestação mesma do espírito, a contemplação intuitiva no espírito dessa verdade, como o é da própria realidade, da própria vida. A verdade, na vida espiritual, não é nem o reflexo, nem a expressão de uma realidade qualquer, ela é a realidade, o espírito em sua vida interior. Na vida espiritual, não existe nem objeto, nem sujeito que reflita esse objeto, no sentido gnosiológico do termo.
Na vida espiritual tudo se resume a ela mesma, tudo se identifica com ela. Nela não existe ideia ou sentimento de Deus, mas a revelação do próprio Deus, a manifestação do divino. É por isso que na vida espiritual não existe a alma isolada, um sujeito dividido. A experiência espiritual é precisamente a saída de um estado no qual se opõem por toda parte objetos “extrínsecos”. A verdade na vida espiritual é a própria vida. Quem conhece a verdade se torna a verdade em si:
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida [8]”. Já não é uma verdade abstrata, não é uma relação. A Verdade é também o caminho e a vida, pois para ela não se trata de autoridade e de critérios exteriores, e ela não exige nenhuma garantia. A verdade se revela no caminho e na vida.
Na vida espiritual descobrimos que o conhecimento é um acontecimento interior, uma iluminação da existência e da própria vida. A existência não se opõe ao conhecimento como se fosse um objeto, mas na própria existência nasce a luz que ilumina suas trevas. No mundo natural, nascido da cisão e da divisão, o sujeito conhecedor é separado do objeto conhecido, ele é separado da existência. A qualidade da espiritualidade é obtida quando não existe mais divisibilidade, quando o sujeito conhecedor se encontra nas profundezas do ser. O homem espiritual vive nessa profundeza, e de seu conhecimento brota a luz.
É na vida espiritual que a Verdade em si pode ser obtida; ela não pode ser percebida nem conhecida de fora. A reflexão é inteiramente um apanágio do mundo objetivo; ela busca, penosamente, os critérios da verdade fora dessa mesma verdade, de sua possessão, fora de uma vida na verdade. Ora, fora dessa verdade, num plano que seria inferior a ela, é impossível encontrar seu critério. A Verdade em si mesma é seu único critério. É possível encontrarmos o critério para nossa fé em Deus e para nosso conhecimento de Deus? Essa questão não pode ser colocada senão por um homem psíquico. O critério de nossa fé e de nosso conhecimento não pode ser encontrado fora de Deus, de Sua manifestação em nós, de nossas relações com Ele; esse critério não pode existir no mundo natural inferior. Quando reclamamos um critério de autoridade para nos convencer da existência de Deus e para nosso discernimento sobre o que é divino no mundo, acabamos por buscar um apoio, uma sustentação, não no próprio Deus, nem na realidade divina, mas na realidade natural inferior, no mundo exterior. Dessa forma, o homem se vê oprimido pelo mundo natural, e o homem espiritual sofre o jugo do homem natural.
O “autoritarismo” na vida religiosa consiste precisamente na busca, num mundo inferior, de critérios que deveriam servir a um mundo superior, de critérios do mundo espiritual extraídos do mundo natural, ou seja, ele é uma manifestação de maior confiança no exterior do que no interior, na opressão do mundo natural, mais do que na liberdade do mundo espiritual. A tese da infalibilidade do Papa e a gnoseologia kantiana são, num certo sentido, fenômenos de mesma ordem: a procura da justificação e do critério fora da possessão em si da verdade. O “papocesarismo” e o “cesaropapismo” são manifestações extremas desse sufocamento do espírito pela natureza, e a busca de sinais visíveis do divino na realidade tangível, à qual se concede mais confiança do que à vida e à experiência espiritual. Assim é que o inferior se torna um critério para o superior e a Verdade passa a ser percebida, não pelo caminho e a vida, nem pela própria Verdade, mas pelo reflexo extrínseco da Verdade. mas no mundo espiritual, a Verdade – que é o próprio Deus – é a única autoridade, o único critério da Verdade, e o homem possui a Verdade pela vida nela, pela experiência que ele possui dela, por suas relações com ela.
No mundo espiritual, tudo se passa de outra maneira do que no mundo natural, mas esses dois mundos se confundem e se relacionam. O homem é um ser complexo, a um tempo espiritual, supranatural e psico-corporal, natural. O homem é o ponto de interseção entre dois mundos, o lugar onde eles se encontram, ele pertence a duas ordens diferentes. Nisso reside a dificuldade e a complexidade da vida humana. Existem dois homens, uma espiritual e um natural. O mesmo homem é espiritual e natural. O mundo espiritual se revela no homem psíquico natural como sua modalidade particular, mas o homem natural não desaparece. É por isso que a vida espiritual não aparece no homem em toda sua pureza. Não é dado ao homem se elevar facilmente acima do ser natural e renunciar a ele. o caminho que conduz à vida espiritual é um caminho árduo, e nenhum homem pode se considerar como sendo unicamente espiritual. Todo homem está ligado organicamente ao estado de todo o universo, e todo homem possui seus deveres para com esse mundo natural. Considerar-se orgulhosamente como sendo unicamente espiritual, a exemplo dos gnósticos, é um erro perante Deus. O homem deve trabalhar pela iluminação e a espiritualização, não apenas com sua alma e com seu corpo, mas com as almas e corpos de todo o universo. O espiritual não deve se afastar do psíquico e do corporal, mas deve iluminá-los e espiritualizá-los. É por isso que o Cristianismo não pôde ser exclusivamente espiritual, pois ele tinha que ser também psíquico. É aí que residia a grande Verdade da Igreja que desce ao mundo pecador. O Cristianismo age no mundo natural, e é daí que provêm os obstáculos que ele encontrou ao longo de sua história. A correlação entre o espiritual e o psíquico foi muitas vezes incompreendida na história do Cristianismo e a verdade cristã foi deformada pelo mundo natural. Mas essa fraqueza é própria a toda atividade no mundo.
Nos sistemas teológicos não costumamos encontrar oposição entre natureza e espírito, mas uma oposição entre natureza e graça, entre o natural e o sobrenatural. Aí o espírito não possui propriedades independentes; ou bem ele é incorporado à natureza, e pouco se distingue da graça, vale dizer que ele é naturalizado; ou bem ele se refere ao ser divino e aparece então como sendo a graça do Espírito Santo. A naturalização aparece precisamente quando o divino e o espiritual são, de certa forma, suprimidos do mundo criado e o homem se vê, por causa disso, considerado como um ser exclusivamente natural, como uma mônada psicofísica. Ao homem são atribuídos uma alma e um corpo, mas o espírito é transferido para uma esfera transcendente, na qual ele não é senão o apanágio do ser divino. O espírito é rejeitado da profundidade do homem para um longínquo transcendente, para um mundo além. Somente o exterior do espírito é conferido ao homem. Somente pela graça ele pode se transformar num ser espiritual, e, por sua natureza, ele é exclusivamente psíquico e corporal. Afirma-se assim o dualismo extremo do Criador e da criação.
Do estado de graça e do homem natural. O homem e o mundo são essencial e primitivamente não-espirituais e não-divinos.
Tal doutrina teológica e metafísica, que recusa ao homem a imagem e a semelhança de Deus, jamais foi preponderante no Cristianismo. Os místicos cristãos sempre nos ensinaram o homem espiritual e a imanência do caminho espiritual. O sistema teológico metafísico, baseado sobre o dualismo extremos do Criador e da criação, da graça e da natureza, que rejeita a espiritualidade do homem, não é, dentro do Cristianismo, a única doutrina possível e definitiva que se refere ao ser. Não existe nela senão um estado de alma humano que corresponde a um dado momento do desenvolvimento espiritual do homem, que reflete um estado específico da experiência e da vida espirituais. A ausência de espírito e de vida espiritual não é um estado normal do homem, mas antes um estado de pecado, um enfraquecimento nele da imagem e da semelhança divinas.
Nesse estado, o espírito assiste o homem como um principio transcendente e extrínseco. A personalidade empírica, mergulhada no mundo natural, afastada de Deus, se vê condenada a uma existência dividida. O espírito é para ela, sempre, algo extrínseco, um “extrinsecismo”.
A consciência do pecado se transforma em consciência da transcendência do espírito. Temos às vezes a impressão de que a teologia oficial e os preceitos da Igreja recusam considerar o homem como um ser espiritual, que tentam imunizá-lo contra as tentações da espiritualidade. O Cristianismo da alma é reconhecido como mais verdadeiro e mais ortodoxo do que o Cristianismo do espírito. Ter consciência de si como uma ser espiritual provoca a acusação de orgulho; reconhecer-se como sendo indigno de possuir o espírito e a vida espiritual é qualificado como humildade. Forma-se sobre esse terreno um positivismo cristão original e um espírito burguês que respondem à consciência média, ao homem psíquico. A espiritualidade é considerada como o apanágio dos santos, dos ascetas, dos starsi. A espiritualidade dos homens, que não alcançaram os níveis elevados de perfeição e que não adquiriram a graça do Espírito Santo, desperta sempre uma suspeita, pois imagina-se que ela não provém de Deus. Assim, desconfia-se de toda vida espiritual que não caiba dentro da concepção da Igreja relativa à aquisição dos dons do Espírito Santo. O espírito é o Espírito Santo, a Terceira Hipóstase da Santa Trindade, não existe outro Espírito e não deve, nem pode haver. Nenhum Espírito existe no homem, a consciência de ter em si o Espírito é vista como um orgulho, uma falta de humildade; a imersão na vida psíquica e corporal é considerada mais piedosa e mais humilde. Para os teólogos e os dignitários da Igreja, a vida espiritual superior era frequentemente vista com mais suspeita do que os pecados da vida psíquica e corporal. Estamos aqui em presença de um problema muito perturbador. A Igreja perdoava os pecados da carne, era infinitamente indulgente para com as fraquezas da alma, mas manifestava o mais implacável rigor quanto às tentações, as pretensões, aos voos do espírito. Foi isso que provocou sua intransigência contra os gnósticos, contra as correntes teosóficas dentro do Cristianismo, sua condenação dos místicos cristãos, sua desconfiança em relação aos criadores da cultura espiritual, aos filósofos, aos poetas, aos reformadores espirituais. Assim se afirmou um materialismo e um positivismo cristão original, e o Cristianismo foi proclamado como sendo a religião da alma, e não do espírito.
Tal foi o exoterismo cristão. Nos sistemas de teologia ele encontrou sua expressão estática nas doutrinas da graça e da natureza; na doutrina do espírito, como bem exclusivo da graça, e na do homem e do mundo, como apanágio exclusivo da natureza. Assim os mistérios religiosos da vida e a experiência se objetificaram, se simbolizaram exteriormente e se materializaram. A vida, a experiência, o caminho, o espírito, tudo foi transformado em substâncias, em verdades abstratas, em princípios de metafísica teológica. Deus e a vida divina passaram a ser representados como coisas inertes e estáticas; já não se via no Cristianismo o mistério da vida espiritual. Minha própria vida, a essência de minha vida espiritual se exteriorizou como uma substância fixa, como um ser objetivo.
Nessa desconfiança que a Igreja manifestava em relação ao espírito e a vida espiritual, havia uma verdade essencial: o orgulho e o contentamento de si são, de fato, pecados hostis à verdade de Cristo. Existe uma pseudoespiritualidade sem obtenção real do espírito. Nós a encontramos frequentemente nas correntes teosóficas contemporâneas. Existe uma pseudomística, um conhecimento espiritual fictício. Existe uma pretensa espiritualidade, que não foi purificada, que foi perturbada e viciada pelo mundo natural. É essa espiritualidade, não purificada ainda de sua demonolatria, que existia entre os gnósticos. Existe uma mística na qual os estados psíquicos e mesmo carnais são considerados como espirituais. É preciso testar os espíritos, pois não podemos dar fé a todo espirito. Devemos exigir mais do homem espiritual do que do psíquico. A espiritualidade não pode pretender nada, ela impõe deveres. Existem regiões da vida espiritual que devem, durante um certo tempo, permanecer fechadas para nós, porque são inacessíveis ao homem psíquico. Nada é mais lamentável do que pretender uma falsa elevação, uma espiritualidade contínua, pretensão essa que se faz acompanhar pelo desprezo pelo caminho simplesmente psíquico e pelos homens psíquicos. A Igreja é santa em sua prescrição de
simplicidade e de humildade. Um simples gesto espiritual não prova ainda a existência de uma vida espiritual. Nas práticas da Igreja existia uma verdade essencial, mas um sistema teológico que nega a originalidade qualitativa da vida espiritual e de sua inerência ao homem, não pode ter pretensões à verdade absoluta e contestável; ele é exotérico e pode ser derrotado. A vida espiritual é a vitória sobre o pecado. A submissão da natureza pecadora do homem a uma ontologia imóvel é uma aberração da consciência. O homem se torna digno da vida espiritual na medida em que ele se comunica efetivamente com ela.
VI
Todos os místicos nos ensinaram o novo nascimento espiritual. O primeiro é o nascimento natural na posteridade do primeiro Adão, ancestral da humanidade natural, um nascimento ao mesmo tempo na divisibilidade e na secessão, na necessidade e na filiação genérica. O segundo é o nascimento espiritual, na geração do novo Adão, Chefe da humanidade espiritual, nascimento a um tempo na unidade e na liberdade; ele é a vitória sobre a necessidade material e genérica, o nascimento em Cristo para uma vida nova. No primeiro nascimento tudo é vivido exteriormente, no segundo tudo é vivido interior e profundamente. O segundo nascimento espiritual, em sua pureza qualitativa, é conhecido dos místicos; ele foi descrito por eles, que nos traçaram o caminho que para aí conduz. E o renascimento em Cristo é acessível a todo cristão, e as vias da vida espiritual lhe são abertas.
O Cristianismo é a religião do espírito, a religião do novo nascimento. “Se um homem não nasce de novo, ele não pode ver o Reino de Deus [9]”. Assim é que todo cristão deve nascer de novo. “O vento sopra onde quer, e se ouve o seu ruído; mas ninguém sabe de onde vem, para onde vai. Assim também acontece com o homem nascido do Espírito [10]”. “Mas vem a hora, e é agora, em
que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espirito e verdade; pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e é preciso que aqueles o adoram o façam em espírito e verdade [11]”. E o apóstolo Paulo diz: “E, assim como todos morrem em Adão, todos reviverão em Cristo [12]”. “Se vocês forem conduzidos pelo Espírito, não estarão sob a lei [13]”. Mas a revelação cristã da vida espiritual, do novo nascimento, da adoração do Pai em espírito e verdade, age na humanidade natural, na geração do primeiro Adão, no homem médio; da mesma forma ela se reveste das formas de um Cristianismo que é ao mesmo tempo espiritual e psíquico.
O Cristianismo, religião que não é desse mundo, sofre e padece humilhação no mundo, e, em nome da massa da humanidade, a vida espiritual se simboliza e deixa de se realizar. O Cristianismo, religião de uma verdade que não é daqui de baixo, penetra no mundo em nome de sua salvação, correndo eternamente o risco de ver o espirito se enfraquecer e se extinguir. Aí reside seu drama e a origem de seu sucesso, de sua atividade na história, e de seu insucesso na vida histórica. O Cristianismo deve descer ao mundo natural, ao mesmo tempo em que permanece sendo uma verdade que não é desse mundo, uma verdade de espírito e de vida espiritual. Toda a tragédia da humanidade espiritual reside nisso. O espírito não é do “mundo”, o espírito é precisamente aquilo que “não é desse mundo”; viver em espírito, alcançar a vida espiritual, não equivale a “amar o mundo” e tudo o que é do “mundo”. Mas o espírito é o “inverso” no mundo, ele se separa dele e volta a descer sobre ele, ele se simboliza no mundo. O mundo é o símbolo do que se passa no espírito, o reflexo do abandono de Deus que se realiza no espírito.
Viver no mundo condena todos os homens a partilhar de um destino comum, os associa no pecado que subsiste mesmo no homem espiritual, os coloca na impossibilidade de se livrar de seu destino. Existe uma unidade no processo universal, uma unidade dos destinos humanos. “Não amem o mundo, nem as coisas que são do mundo. Se alguém ama o mundo, o amor de meu Pai não estará nele [14]”. Assim fala o Apóstolo João, que diz também: “Quem não ama seu irmão permanece na morte [15]”. “Quem não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor [16]”. Aqui encontramos toda a difícil antinomia do Cristianismo. O amor para com nosso irmão e não o amor apenas por nós mesmos nos obriga a viver no mundo, a partilhar do destino desse irmão. O amor por esse irmão pode nos reduzir a escravidão, à submissão do espírito ao mundo. A Cristandade viveu essa antinomia trágica, que não possui em si uma saída fácil e simples. Tal é o destino da humanidade, que a condena à ação recíproca, à atração e à repulsão do espírito e do “mundo”, da humanidade espiritual e da humanidade natural.
A compreensão espiritual e mística do Cristianismo é mais verdadeira e mais autenticamente real do que sua compreensão psíquica e objetiva, que é simbolizada pelo plano natural e histórico. A profundidade íntima do Cristianismo, os mistérios da vida espiritual, se revelam à mística cristã.
Essa profundidade permanece oculta aos sistemas de teologia, à consciência cristã racionalista, que rejeitam os mistérios da vida divina ou os concebem por analogia com a vida natural. O Cristianismo é a revelação do mistério da vida espiritual: nele tudo é misterioso, a profundidade da existência aí se revela enquanto mistério divino; nele tudo é vida, tudo é tragédia vital.
O mistério da Redenção, do Gólgota, é um mistério interior do espírito, ele se realiza nas profundezas secretas do ser. O Gólgota é um momento interior da vida e do desenvolvimento espiritual, a passagem de toda a vida pela crucificação, pelo sacrifício. Cristo nasce na profundidade do espírito, ele percorre seu caminho de vida, morre sobre a Cruz pelos pecados do mundo e ressuscita. Eis o mistério interior do espírito. Ele se revela na experiência espiritual, todo homem nascido do espírito o conhece, ele é pintado pelos místicos como sendo um caminho de vida interior. Cristo deve se revelar na vida interior do espírito, antes de se revelar no mundo exterior, natural e histórico. Sem a aceitação interior e espiritual de Cristo, as verdades descritas no Evangelho permanecem fatos ininteligíveis do mundo empírico exterior. Mas o mistério cristão do espírito se objetiva, se exterioriza no mundo natural, se simboliza na história, Cristo nasceu, morreu e ressuscitou não apenas na profundidade do espírito, mas no mundo natural histórico. O nascimento de Cristo, sua vida, sua morte sobre a Cruz e sua ressurreição são fatos autênticos do mundo natural. Aquilo que nos é dito no Evangelho aconteceu de fato na história, no espaço e no tempo. Mas a realidade daquilo que se realiza na história, no espaço e no tempo é aqui a mesma que toda realidade do mundo natural, ou seja, uma realidade simbólica que reflete os eventos do mundo espiritual.
Não devemos entender com isso que os eventos evangélicos não passam de símbolos, enquanto que os demais fatos são realidades atestadas pela ciência histórica. Mas todos os eventos da história que têm lugar no mundo natural objetivo, não passam de realidades simbólicas, reflexos do mundo espiritual. As vidas de Alexandre da Macedônia ou de Napoleão, a emigração dos povos e a Revolução Francesa não são outra coisa que realidades simbólicas, e não oferecem mais do que um caráter reflexo.
Mas a vida de Cristo, que se revela no Evangelho, simboliza e reflete acontecimentos do mundo espiritual, que são de uma importância, de uma unidade e de um valor central infinitamente maiores do que todos os outros acontecimentos da história universal. Esses fatos evocam a própria essência da vida espiritual, seu mistério inicial, seu significado divino. Poderíamos dizer que a história evangélica é uma meta-história, que ela é mitológica no sentido em que o é a história universal, vale dizer, no sentido em que o mistério interior do espírito se reflete simbolicamente no plano objetivo e natural.
Uma concepção desse gênero nada tem em comum com o docetismo, que não reconhece a
realidade da vida humana de Cristo, e para o qual seus sofrimentos e sua morte são foram mais do que aparentes. O docetismo não se liberta da concepção naturalista do Cristianismo, mas introduz nela um espiritualismo fictício que empobrece e simplifica a plenitude do mistério da vida espiritual. Para o docetismo e o monofisismo, a natureza espiritual e divina desfrutam de uma realidade no sentido naturalista e objetivo da palavra, mas a vida da carne e a natureza humana não passam de aparência e ilusão. Mas nós afirmamos que a vida da carne nesse mundo possui uma autenticidade simbólica, e que o homem é tão real quanto Deus, não apenas no reflexo simbólico, como também no mundo espiritual. Todas as heresias do docetismo e do monofisismo sustentam a oposição do espírito e da carne, enquanto que essa oposição está ligada a uma naturalização e a uma objetivação do espírito.
Em realidade a carne do mundo é integralmente absorvida pelo espírito e reflete de modo simbólico a vida do espirito. A concepção espiritual do Cristianismo, enquanto mistério interior da vida, não rejeita nem elimina a concepção física, objetivada do Cristianismo, mas dá a ela um sentido interior, ilumina-a e a penetra em maior profundidade. O esotérico não rejeita nem elimina o exotérico, não luta contra ele, mas aprofunda-o. o Cristianismo esotérico, místico, oculto, não nega o Cristianismo exotérico, objetivado, exteriorizado; ele não aspira senão a percebê-lo mais profundamente, e a iluminar o “exterior” pelo “interior”; ele reconhece os graus hierárquicos, mesmo os graus mais baixos da objetificação, que refletem sempre as realidades autênticas da vida espiritual. A “carne” do Cristianismo exotérico não é menos real do que o espírito desse Cristianismo, e a “carne” e o “espírito” dessa consciência cristã refletem simbolicamente e na mesma medida as realidades autênticas da vida espiritual, do mistério divino da vida. O que acontece no mundo espiritual é de todos os tempos, de todo o espaço, mas se reflete simbolicamente no tempo e no espaço, na matéria. É por essa razão que na história do Cristianismo o material e o carnal adquirem um significado sagrado. O significado sagrado é precisamente o significado simbólico. A carne santa existe enquanto carne simbólica, mas ela não é a matéria, a realidade substancial no sentido do realismo simplista.
Um Cristianismo espiritual, místico, é o mais distante da atitude dos iconoclastas, que negam o reflexo simbólico do mundo espiritual no mundo natural; um Cristianismo profundo, místico, entrevê nos objetos materiais o símbolo do mundo espiritual e está em perfeito acordo com o que afirma, a respeito disso, a consciência da Igreja. Todo o culto cristão, com sua “carne”, é o reflexo autêntico, real e simbólico do mistério da vida espiritual e não pode ser rejeitado pelo Cristianismo.
Existe um certo tipo de Cristianismo “espiritual”, nascido no terreno do Protestantismo (por exemplo, em Schleiermacher), que ignora o simbolismo realista e não conhece mais do que um simbolismo idealista e psicológico, e que não contribui para a união, mas à desunião. Trata-se de um dos aspectos do Cristianismo naturalista que, opondo o “espírito” à “carne”, coloca-os sobre o mesmo plano. O verdadeiro Cristianismo do espírito conhece uma espiritualidade concreta, capaz de conter em si todos os graus hierárquicos das simbolizações e das encarnações, que lhes dá um sentido e os aprofunda, que não recusa nem nega nada. O espiritualismo que se convencionou chamar de Cristianismo “espiritual”, que gerou diversas seitas que trazem esse nome, não passa de um espiritualismo abstrato e monofisita, uma mutilação, uma amputação do Cristianismo, pois vive de negações e recusas.
Os místicos cristãos mais profundos, que se elevaram até o Cristianismo do espírito, jamais foram cristãos “espirituais”, no sentido limitado e sectário desse termo. Maître Eckart, um dos maiores místicos cristãos, que interpretou o Cristianismo como mistério do espírito, como uma via espiritual interior, permaneceu dominicano e católico fervoroso, reconhecendo todos os graus concretos da simbolização e das encarnações. A mística teve uma profunda influência sobre Lutero, que se manifestou igualmente nas seitas e em determinados movimentos do Cristianismo. O mais audacioso dos místicos alemães, Angelus Silesius, para quem o Cristianismo era evidentemente um mistério do espírito, que aspirava ao supra-divino, e a quem devemos as palavras: “Sem o homem, Deus não poderia existir nem por um momento”, era um católico fanático que jamais rompeu com o simbolismo e as encarnações do Cristianismo da Igreja.
https://ecclesia.org.br/biblioteca/filosofia/berdiaev-nikolai-espirito-e-liberdade.html.
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