Ideais de fé, conduta e salvação
em Clemente de Alexandria
Grego de uma família de libertos, nascido em torno do ano 180, no paganismo, Tito Flávio Clemente (mais conhecido por Clemente de Alexandria) encontra a doutrina cristã na juventude e a ela se converte de maneira profunda. Durante anos seguidos, em incessantes viagens da Grécia para a Síria e da Palestina para o Egito, este homem, que veio a ser um ícone da Igreja primitiva, procurou penetrar melhor na doutrina de Cristo, ouvindo atentamente a cristãos e sábios – adquirindo e desenvolvendo conhecimentos.
Dentre esses sábios houve um em especial que lhe chamou a atenção, fazendo do alexandrino seu seguidor (pela convergência de idéias). Esse homem chamava-se Panteno (tido como detentor de um conhecimento "superior"), de quem Clemente se tornou aluno, assistente e que, mais tarde, veio a superar aquele que foi conhecido como "abelha da Sicília". Já no ano 200 Clemente teria ido além dos ensinamentos do seu tutor. Sendo padre, mas sem obrigações paroquiais (não era muito afeito a celebrações), Clemente de Alexandria dedica-se inteiramente ao ensino cristão – catequese. Ao mesmo tempo em que fala, segue escrevendo; sempre infatigável, sempre profundo, embora por vezes caótico e difuso na sua linguagem. Dono de um coração largo, espírito de uma cultura enorme, inteligência do mais vasto alcance, que o seu entusiasmo pela doutrina evangélica não impediria de se abrir a tudo (nem mesmo à tão atacada cultura pagã, em especial no que diz respeito à filo dos gregos). Em muitas passagens de suas obras sentimo-nos deveras comovidos: quando fala da virtude e da infância tão dedicadamente, a questão do casamento, e quando se refere a problemas que são sempre do maior interesse; como o das responsabilidades do dinheiro e o da salvação dos ricos (de grande dificuldade), dentre vários outros também de suma importância para nosso conhecimento e para a nossa religião como hoje a temos.
Quando a perseguição aos cristãos, promovida pelo imperador Sétimo Severo, fecha, por algum tempo, sua escola, refugia-se na Capadócia, junto de um de seus antigos alunos, onde continua seu fatigante trabalho. Clemente morre em 216, após muito ter contribuído para o desenvolvimento – e mesmo para o surgimento – do que foi denominado "cristianismo primitivo" (é o início da doutrina cristã; da Igreja).
Na ótica de Clemente, a vida é um verdadeiro "combate espiritual", ele frisa – prioriza – o lado ascético (práticas de devoção e penitência); isso no que diz respeito à transformação que ocorre na vida das pessoas, que, seguindo o ideal cristão, tentam levar uma vida "santificada". É um dos "pais da Igreja" (patrística), pois fundamentou as suas bases, seu início.
"O que o Cristianismo condena é o abuso é o excesso de afeição que o homem tem aos bens da terra e que o obriga a desconhecer o seu verdadeiro sentido e o seu valor limitado".
Clemente de Alexandria e muitos outros padres da Igreja primitiva condenam com rigor o luxo, os vestuários de ricos coloridos, "os sapatos bordados a ouro, sobre os quais os pregos se enrolam em espiral", e a gulodice desmedida dos ricos, as gastronomias requintadas, e a "vã habilidade dos pasteleiros". O ensinamento da Igreja é que se deve usar o que Deus legou, mas com moderação e gratidão: o alimento celestial (que é simples por natureza) seria o "único prazer fino e puro", pois nos levaria à salvação.
Por vezes, Clemente se referiu e reconheceu que na Igreja havia ricos e pobres – o que não justifica que o lucro e a propriedade sejam condenados. As riquezas da terra são efêmeras, a única riqueza verdadeira é a do céu, visto que essa jamais passará. Temos aí a explicação para, no ideal de Clemente, a dificuldade que os ricos encontravam para entrar no reino dos céus. Tido como "o mais instruído dos padres", Clemente também atacou fortemente os basilidianos e demais hereges que tentavam contra a Igreja, e que sempre buscaram distorcer os ensinamentos de Jesus.
O mestre alexandrino utiliza muito a comparação entre ensino / vida cristã e as atividades agrícolas, algo muito comum entre os estóicos. (...)
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Muitos são os estudiosos que apresentam o cristianismo do alexandrino como sendo uma filo. Embora guarde certo receio frente aos perigos que a cultura mundana oferece, Clemente designa a filo como importante fonte para a aquisição de uma fé melhor fundamentada. A filo grega é vista aqui como um todo, e não haveria o conhecimento, platônico, o aristotélico e tudo mais; apenas a totalidade. Daí, podemos lançar a importância da unidade, também, para a religião. Fé e razão encontram-se interdependentes, onde se a fé não se apresenta como simples demonstração da razão, não pode se constituir, também, em algo que a negue; existe complementaridade. Deve-se buscar uma fé "sincera", através da Lei, da obediência e de uma vida reta em Cristo.
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A necessidade da defesa da doutrina cristã é muito presente, pois as pessoas devem tomar cuidado com o que escutam ou falam. Deve-se transmitir a luz a quem convém. É por isso que, em "Stromata", o próprio autor reconhece que o texto contém uma verdade dispersa (mutilada); tudo como forma de defesa. "Como las semillas, de modo que no estén al alcancede los charlatanes, cual grajos. Mas si tienen la suerte de encontrar un bom agricultor, cada una de ésas (semillas) brotará y mostrará lozano el trigo". Mas uma vez agrupada, essa verdade que é anunciada se revela totalmente àqueles aptos a compreendê-la (especialmente aos gnósticos). "Quien reúne de nuevo lo que se ha disseminado y reconstruye la unidad poderá comtemplar con seguridad al Logos, a la Veredad".
Deve haver uma mobilização para se combater os hereges, porque "quien no impide una cosa es participante de la misma".
Clemente crê na autonomia do espírito humano, em contrapartida com o determinismo de alguns hereges (basílides e sofistas, por exemplo). Vale destacar que mesmo atacando muito os sofistas e seu discurso, Clemente reconhece a importância da dialética para o progresso do conhecimento racional (progresso da fé científica).
O pecado é apresentado como sendo uma doença da alma, que deve ser curada através do correto seguimento dos ideais cristãos. (...)
Religião e Filo
Como legítimo representante dos primórdios do Cristianismo, Clemente de Alexandria prega muito a importância da religião e a necessidade de que o povo a compreenda, para que ele adquira boas e corretas palavras que vão norteá-lo rumo à salvação perante Cristo.
Altamente influenciado pelos ideais neoplatônicos, o alexandrino não vê, como outros padres do período, apenas aspectos maus na cultura pagã. É bem o contrário, o conhecimento grego vai justamente facilitar que as pessoas compreendam melhor os ensinamentos do Senhor. Clemente chega a atribuir grande importância à filo, a tal ponto de compará-la à Bíblia, em termos da justificação que era lançada sobre gregos e hebreus, respectivamente. Há a valorização da filo sobre as demais ciências. "Antes de la venida del Señor, a filo era necessaria para la justificación de los griegos; ahora, sin embargo, es provechosa para la religión".
Para Clemente, havia "níveis" de fé, e as pessoas poderiam ser "fiéis simples" ou com um grau maior de elevação. O grande objetivo do alexandrino era o de fazer surgir uma ciência da religião, tendo a fé como critério racional de juízo, de onde surgiriam os gnósticos – "cristãos superiores" – que associavam conhecimento racional às palavras sagradas: "(...) la filosofía contribuye a la adquisición de la sabiduría (...) es una práctica de la sabiduría". Clemente via a importância de que fosse significativo o número de fiéis gnósticos, mas sabia da dificuldade desse acontecimento: "La gnosis no es patrimonio de todos (...); sin embargo los libros son feitos para las multitudes".
Em suma, o gnóstico seria "um cristão ideal, que alcançou a ciência e vida espiritual perfeitas, na medida que podem ser alcançadas neste mundo"; apenas o gnóstico seria capaz de comunicar a doutrina verdadeira sem distorcê-la – exatamente pelo fato de conhecê-la de forma mais profunda. A fé simples é aquela que crê apenas no que diz as Escrituras, sem nenhuma atividade de investigação. A filo, ou qualquer outra forma de conhecimento, vem a ser útil para se ter uma fé mais segura, mais forte; para que se possa distinguir com toda certeza o bem e o mal, "la herejía de la verdad misma". E ainda: "La actividad racional regenera al alma y la orienta hacia una conducta intachable".
Através da filo, o espírito humano teria maior predisposição para entender e conhecer melhor as coisas divinas. E ainda sobre a união fé/filo: "La cuerda más alta (de la lira) se opone a la más baja, pero de ambas resulta una única ía musical; (...) el número par és diferente del impar, y sin embargo ambos son necessarios en la aritmética". Associando-se à filo grega, o Cristianismo proposto por Clemente faria, agora, de aliado um antigo inimigo (representante fundamental da cultura pagã).
A defesa da religião frente aos ataques dos hereges e dos sofistas é também fundamental na obra do padre cristão. A sofística, através do seu forte discurso, denigre o verdadeiro em função de algo falso (poder de persuasão); é uma "má arte" no entender do alexandrino. Os sofistas seriam "lobos saqueadores con pieles de oveja, que esclavizam los hombres y suceden con elocuencia a las almas" . O padre alexandrino não admite que a doutrina sagrada seja posta em comparação. Deve-se evitar as palavras desnecessárias: "Quienes pretenden participar de las palavras divinas deben estar muy atentos no sea que refiriendo lo superfluo" . Na sua tarefa de persuasão, a sofística impediria o desenvolvimento do conhecimento a partir das próprias pessoas; elas seriam, assim, guiadas pelo discurso de outrem, onde não haveria espaço para a livre reflexão.
Mesmo entendendo a necessidade de não deixar de lado a filo, é importante ressaltar que as palavras santas são bastante superiores ao conhecimento dos gregos. Ou seja, a religião pode sobreviver sem a filo (que é um catalisador, uma facilitadora da religião), mas o contrário não pode ocorrer. "Los filósofos son niños, a menos que se hagan totalmente hombres por obra de Cristo". A junção entre a tradição humana (filo) e a divina (fé) seria, desse modo, de dupla utilidade – tanto para a religião como para a filo. Por fim, temos que a fé seria, também, um filtro para a entrada das palavras sagradas. Seria um subsídio necessário para a compreensão desses conhecimentos: "Se não credes, não compreendereis" .
A Verdade e a Salvação em Cristo
Procurando fazer com que o grande público compreendesse de melhor forma os ensinamentos cristãos, Clemente utiliza uma metodologia bastante simples e repetitiva, para que seus ouvintes o compreendessem – haja vista que o padre alexandrino se dedicou especialmente à catequese. Apesar de seus ensinamentos, o próprio mestre reconhecia que a maioria das pessoas não estava apta ao conhecimento da doutrina de Cristo. Aquele que procura passar conhecimento religioso a outrem (geralmente um padre) deve agir de maneira semelhante a um agricultor, devendo cultivar com esmero em boa terra suas sementes (os fiéis): "Un alma que se une a (otra) alma y un espiritu a (otro) espiritu, cuando se siembra la palavra, hacem crescer la semilla y producem vida; y todo el que es educado viene a ser hijo del educador en virtude de la obediencia". A semente seria, também, símbolo da perseverança que um verdadeiro fiel deve possuir; resistir a tudo, suportar toda forma de agressão estando no estado latente, e germinar quando boas condições forem encontradas.
A salvação da alma não é coisa fácil de se alcançar; pois ela só é possível através de muito esforço e dedicação por obra daqueles que a buscam. "La mies es mucha y los operarios son pocos".
O alexandrino fala em seus escritos da necessidade de se seguir os passos do Senhor, de se levar uma "vida santa", reta em Cristo – é encontrada essa necessidade no Antigo Testamento. E diz Clemente: "Es necessario, pues, imitar en lo possible al Señor". E está na Bíblia: "O povo de Deus deve ter uma vida santa". Aqueles que ensinam às pessoas devem facilitar a sua compreensão, nada mais que isso, pois os fiéis devem aprender a superar suas dificuldades. Consta em Clemente: "Es razonable ayudar a uno a llevar su carga, sin embargo no lo es ayudar a descargarla". Os detentores do conhecimento devem não guardá-los apenas para si, mas torná-los disponíveis ao público; para que este possa realizar a progressão de sua fé: "Quien habla delante de personas y, con tiempo, las somete a examen (...) difere camiño pedregoso del solo fertil". Também aquele que ensina está aprendendo a cada palavra que profere. A Sabedoria é personificada em Deus, logo, conhecendo-a melhor, as pessoas estariam se aproximando mais de Jesus e da salvação.
Na pedagogia clementina, o exercício leva à perfeição e a prática é inimiga do erro. Aqueles que não praticam sua fé perdem-se (eles se atrofiam espiritualmente e se tornam mais aptos aos ataques dos pecadores). Ainda nesse ponto, a tradição oral é valorizada sobre a escrita – é mais segura, uma vez que os perigos da nossa língua são os de permitir várias interpretações; o que é campo fértil para especulações. Quando o assunto é a vida mundana (seu fascínio), Clemente não é tão radical como outros padres da Igreja. Deve-se utilizar a cultura mundana – aquilo que a vida na terra oferece – mas não se pode ficar preso demasiadamente à ela; os atrativos do mundo devem ser usados apenas para o bem. É terrível o fim daqueles que fazem uso do prazer de forma desordenada: "Luego te arrepentirás en la vejez, cuando se consuman las carnes de tu cuerpo. Ese es el fin del placer desordenado".
Os ricos encontram muita dificuldade para entrar no reino dos céus, pelo fato de se ligarem muito aos bens materiais; quando já se dizia nesse cristianismo que "Deus está além do material" . O homem que deseja a salvação de sua alma não deve viver na glória de suas posses ou do seu conhecimento; não se deve ter vaidade. "Que no se glorie el sabio de su sabiduría nen el rico de su riqueza" . Existe a consciência de que: " Muchos, en efecto, hay entre nossotros flacos y débiles y bastantes que están dormidos. Si nos juzgásemos a nossotros mismos, no seríamos condenados".
Por fim, a importância de se levar uma vida simples e a conseqüente dificuldade do ingresso dos ricos na salvação fica clara em: "La caridad es la major ley del amor que Cristo ensino".
Um grande centro cristão:
A Escola de Clemente
Num momento em que a literatura pagã vai sofrendo um período de forte crise, surge a inteligência da Igreja, através, principalmente, dos escritos dos padres. Os dois maiores centros de onde emanavam as idéias cristãs no século III eram o Egito e a África. E dentre os nomes de maior destaque está o de Clemente de Alexandria.
A título de curiosidade, Alexandria era uma cidade imensa – das maiores do mundo no período – aglomeração em constante crescimento, cidade de muitas morais, várias religiões. A inteligência era ali muito estimada e dispunha de inumeráveis instrumentos de trabalho: Museu, Biblioteca, Zoológico e tudo mais. Ali se encontrava um clima excitante para o espírito, uma terra de eleição para todas as tentativas sincretistas, e para todas as heresias. Por volta de 200, Alexandria era o centro do aprendizado cristão e gnóstico; o grande cérebro (o ponto de convergência) do mundo ocidental – era onde tudo fluía muito rapidamente. O capitalismo há muito se instalara nesta cidade.
Como já foi dito, no século II a fama da cidade torna-se ainda maior. Ao lado das escolas dos filósofos, fundara-se uma instituição "análoga à de São Justino em Roma", uma didascália cristã. Essa escola era, ao mesmo tempo, uma universidade e um cenáculo: muitas matérias, poucos alunos e também poucos mestres. Clemente foi o primeiro desses chefes da escola cristã. Alexandria – situada no Egito – tornara-se, no século III, a então capital do Cristianismo e o mestre Clemente seu principal nome.
BIBLIOGRAFIA
ALEXANDRIA, Clemente de. Stromata de notas Gnósticas segundo a Verdadeira Filo. Editorial Ciudad Nueva. Madrid, 1996.
ROPS, Daniel. História da Igreja de Cristo.
Bíblia Sagrada. Editora Ave Maria. São Paulo, 1999. 18 ed.
MAIA, Márcia. Evangelhos Gnósticos. Editora Mercuryo. São Paulo, 1992.
DANIÉLOU, Jean e MARROU, Henri. Nova História da Igreja. Editora Vozes. 2 edição. Petrópolis, 1973.
FONTE:
(Texto publicado no Grupo Ortodoxia)
https://www.ecclesia.org.br/biblioteca/pais_da_igreja/ideais_de_fe_e_conduta_e_salvacao_em_clemente_de_alexandria.html
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