XXIV
[Da ordem dos evangelhos]
1. Que este testemunho de Clemente sirva ao mesmo tempo de narrativa e de ensinamento para os que chegarem a lê-lo. Indiquemos porém os escritos incontroversos deste apóstolo.
2. Em primeiro lugar fique reconhecido como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em todas as igrejas sob o céu. Ainda assim, o fato de os antigos terem-no catalogado com boas razões em quarto lugar, depois dos outros três, talvez possa ser explicado da seguinte maneira.
3. Aqueles homens inspirados e verdadeiramente dignos de Deus - os apóstolos de Cristo, digo -, tendo suas vidas purificadas até o cerne e suas almas adornadas com todas as virtudes, falavam, ainda assim, a língua dos simples. Ainda que o poder divino e operador de milagres dado pelo Salvador tornasse-os audazes, não sabiam nem tentavam sequer ser embaixadores da doutrina do Salvador com a persuasão e com a arte dos discursos, mas, usando apenas a demonstração do Espírito divino que trabalhava com eles e do poder de Cristo que se exercia através deles, anunciaram o conhecimento do reino dos céus por toda a terra habitada, sem preocupar-se muito em pô-los por escrito.
4. E operaram assim, como servidores de um ministério maior e que está acima do homem. E assim Paulo, o mais capaz de todos na preparação de discursos e o de mais vigoroso pensamento, não deixou mais do que suas curtíssimas cartas, e isso podendo dizer coisas infinitas e inefáveis por ter alcançado a contemplação até do terceiro céu, já que havia sido arrebatado até o próprio paraíso e fez-se digno de escutar as palavras inefáveis de lá220.
5. Tampouco faltava experiência destas coisas aos demais acompanhantes de nosso Salvador, os doze apóstolos por um lado e os setenta discípulos por outro, além de inúmeros outros além destes. E mesmo assim, de todos apenas Mateus e João deixaram-nos memórias das conversações do Senhor, e ainda é tradição que as escreveram forçados a isso.
6. Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.
7. Marcos e Lucas já tinham publicado seus respectivos evangelhos, enquanto de João se diz que em todo este tempo continuava usando a pregação não escrita, mas que por fim chegou também a escrever, pelo seguinte motivo. Os três evangelhos anteriormente escritos já haviam sido distribuídos para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este os aceitou e deu testemunho de sua veracidade, mas também que lhes faltava unicamente a narrativa do que Cristo havia feito nos primeiros tempos e no começo de sua pregação.
8. A razão é verdadeira. É possível ver realmente que os três evangelistas puseram por escrito apenas os fatos que se seguiram ao encarceramento de João Batista, durante um ano apenas, e que eles mesmos alertam sobre isto no início dos relatos.
9. Por exemplo, depois do jejum de quarenta dias e da tentação que se seguiu, Mateus declara a data por suas próprias palavras quando diz: E ouvindo que João havia sido entregue, retirou-se da Judéia para a Galiléia.
10. E o mesmo faz Marcos, que diz: Depois de João ser preso, Jesus foi para a Galiléia. E Lucas, antes de dar início aos feitos de Jesus, faz semelhante observação, dizendo que Herodes juntou às maldades que havia cometido esta outra: lançou João ao cárcere.
11. Em conseqüência diz-se que por isto decidiu-se o apóstolo João a transmitir em seu Evangelho o período silenciado pelos primeiros evangelistas e as obras realizadas neste tempo pelo Salvador, ou seja, as anteriores ao encarceramento do Batista, e que isto se mostra quando diz: Assim principiaram os milagres de Jesus, e também quando menciona o Batista em meio aos atos de Jesus dizendo que ainda seguia batizando em Enom, perto de Salim. Expressa-o claramente ao dizer: Porque João ainda não havia sido encarcerado.
12. João, portanto, transmite em seu Evangelho escrito o que Cristo fez antes de que o Batista fosse encarcerado, enquanto que os outros três relatam os feitos posteriores ao encarceramento do Batista.
13. Quem prestar atenção a tudo isto já não tem por que achar que os evangelhos diferem entre si, já que o de João contém as primeiras obras de Cristo, e os outros a história do final do período. E, conseqüentemente, também é provável que João passasse por alto a genealogia carnal de nosso Salvador porque Mateus e Lucas já a escreveram, e começasse falando de sua divindade, como se o Espírito divino o tivesse reservado a ele como o mais capaz.
14. Seja-nos suficiente, pois, o que dissemos sobre a composição do Evangelho de João. A causa de ter-se escrito o Evangelho de Marcos já foi explicado acima.
15. No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu escrito227, expõe de antemão o motivo pelo qual o compôs. Como muitos outros já tinham se ocupado com demasiada precipitação a fazer uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado, sentiu-se obrigado a afastar-nos das suposições duvidosas dos outros, e transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto de tudo aquilo cuja verdade ele conheceu bem aproveitando a convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação com os demais apóstolos.
16. Isto é o que temos sobre este tema. Em momento apropriado trataremos de explicar, por meio de citações dos antigos, o que outros disseram sobre este assunto.
17. Dos escritos de João, além do Evangelho, também é admitida sem discussão, por modernos e por antigos, a primeira de suas cartas. As outras duas, por outro lado, são discutidas.
18. Quanto ao Apocalipse, ainda hoje a opinião de muitos divide-se em um ou outro sentido. Também ele receberá no devido tempo sua sanção, extraída do testemunho dos antigos.
O autor e a obra
Eusébio, bispo de Cesaréia, nasceu em cerca de 270, faleceu no ano 339/340. A data de seu nascimento só pode ser inferida de sua obra, pois ele narra a perseguição dos cristãos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado, e os eventos seguintes como sendo contemporâneos seus.
Não se sabe onde nasceu, mas passou a maior e mais importante parte de sua vida em Cesaréia, na época a maior cidade romana da Palestina. Era de família desconhecida mas certamente cristã, como indica seu nome. Eusébio nada fala de si mesmo em sua extensa obra. Foi bispo de Cesaréia de 313 ou 315 em diante.
Em 303 começa a última e maior perseguição aos cristãos, durando até 311. Não se sabe em que circunstâncias Eusébio atravessou essa tormenta. Assistiu pessoalmente a martírios em Tiro e na Tebaida (Egito), ele próprio foi preso mas não executado, tendo sido posteriormente acusado de apostasia.
Sua formação teológica foi baseada no estudo da obra de Orígenes. Durante os debates contra o arianismo Eusébio foi um dos principais defensores de uma posição mediadora, que procurava manter unificada a indefinição dogmática dos primeiros pais da Igreja. Para a dogmática posterior ele é suspeito de ser semi-ariano, o que pode ter sido a causa do rápido desaparecimento de muitos de seus escritos.
Sua obra se constitui de livros históricos, apologéticos, de exegese bíblica e doutrinários. Escreveu mais de 120 volumes, a maioria dos quais perdidos, alguns são conhecidos apenas por traduções. Dos originais restam nada mais do que fragmentos. Tratou de todos os temas e personalidades ligados à Igreja, citando extensamente e comentando cerca de 250 obras de muitos autores que de outra maneira estariam perdidos, sendo conhecidos apenas através de Eusébio.
Eusébio de Cesaréia
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