Do livro
Democracia: o Deus que falhou
Por Hans-Hermann Hoppe.
Tradução de Marcelo Werlang de Assis. -- São Paulo :
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
372p.
1. Filosofia Política 2. Praxeologia 3. Propriedad
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Introdução
A Primeira Guerra Mundial delimita um dos grandes divisores de água
da história moderna. Com o seu término, completou-se a transformação do
mundo ocidental inteiro – de governos monárquicos e reis soberanos para
governos republicano-democráticos e povos soberanos – que foi iniciada
com a Revolução Francesa. Até 1914, existiam apenas três repúblicas na
Europa: França, Suíça e, após 1911, Portugal; e, de todas as principais mo-
narquias europeias, apenas a do Reino Unido podia ser classificada como
um sistema parlamentar, i.e., um sistema em que o poder supremo estava
investido em um parlamento eleito. Apenas quatro anos depois, após os
Estados Unidos terem entrado na guerra europeia e decisivamente deter-
minado o seu resultado, as monarquias praticamente desapareceram, e a
Europa, junto com o resto do mundo, adentrou a era do republicanismo
democrático.
Na Europa, os militarmente derrotados Romanovs, Hohenzollerns e
Habsburgos tiveram de abdicar ou renunciar, e a Rússia, a Alemanha e
a Áustria tornaram-se repúblicas democráticas com sufrágio universal
(masculino e feminino) e com governos parlamentares. Todos os recém-
-criados estados – sendo a Iugoslávia a única exceção – adotaram consti-
tuições republicano-democráticas. Na Turquia e na Grécia, as monarquias
foram destituídas. E até mesmo onde as monarquias permaneceram no-
minalmente, como na Grã-Bretanha, na Itália, na Espanha, na Bélgica,
na Holanda e nos países escandinavos, os monarcas não mais exerciam
qualquer poder governamental. Introduziu-se o sufrágio adulto universal,
e todo o poder estatal foi investido em parlamentos e funcionários “pú-
blicos”.
Essa mudança histórica mundial – do ancien régime de reis e príncipes
à nova era republicano-democrática de governantes popularmente eleitos
ou escolhidos – pode também ser compreendida como a mudança de “a
Áustria e o jeito austríaco” para “os Estados Unidos e o jeito americano”.
Isso é verdade por várias razões. A Áustria iniciou a guerra, e os EUA
trouxeram-lhe o fim. A Áustria perdeu, e os EUA venceram. A Áustria
era governada por um monarca – o imperador Francisco José –, e os EUA,
por um presidente democraticamente eleito – o professor Woodrow Wil-
son. No entanto, mais importante ainda é a constatação de que a Primeira
Guerra Mundial não foi uma guerra tradicional, em que se combatia por
objetivos territorialmente limitados, mas sim uma guerra ideológica; e a
Áustria e os EUA, respectivamente, eram os dois países que mais clara-
mente personificavam as ideias em conflito – e era assim que as demais
partes beligerantes os viam. 1
A Primeira Guerra Mundial começou como uma tradicional disputa
territorial. Contudo, com o prematuro envolvimento e a derradeira entra-
da oficial dos Estados Unidos em abril de 1917, a guerra tomou uma nova
dimensão ideológica. Os EUA foram fundados como uma república, e o
princípio democrático, inerente à ideia de uma república, apenas recente-
mente tornara-se vitorioso – tal vitória decorreu da violenta derrota e da
violenta devastação da Confederação secessionista pelo governo da União
centralista. Nos tempos da Primeira Guerra Mundial, essa triunfante ide-
ologia de um republicanismo democrático expansionista encontrou a sua
perfeita personificação no então presidente dos EUA, Woodrow Wilson.
Sob a administração deste, a guerra europeia tornou-se uma missão ideo-
lógica – fazer com que o mundo se transformasse num lugar seguro para a
democracia, livre de governantes dinásticos. Quando, em março de 1917,
o aliado americano czar Nicolau II foi forçado a abdicar, sendo estabele-
cido um novo governo republicano-democrático na Rússia sob Kerensky,
Wilson encheu-se de felicidade. Com o czar abatido, a guerra finamente
se transformou num conflito puramente ideológico: o bem contra o mal.
Wilson e os seus mais próximos conselheiros de política externa, o coronel
House e George D. Herron, não simpatizavam com a Alemanha do kaiser,
da aristocracia e da elite militar. Mas eles odiavam a Áustria. Erik von
Kuehnelt-Leddihn assim caracterizou as visões de Wilson e da esquerda
americana: “A Áustria era mais demonizada do que a Alemanha. Ela se
encontrava em contradição com o princípio mazziniano do estado nacio-
nal, tendo herdado muitas tradições e muitos símbolos do Sacro Império
Romano (a águia de duas cabeças, as cores preta e dourada, entre outros);
a sua dinastia uma vez governara a Espanha (outra bête noire 2); ela liderou
a Contrarreforma, encabeçou a Aliança Sagrada, combateu o Risorgimento,
suprimiu a rebelião húngara de Kossuth (em cuja homenagem havia um
monumento na cidade de Nova York) e apoiou filosoficamente o experi-
mento monarquista no México. Habsburgo – este era o nome que evocava
memórias como o Catolicismo Romano, a Armada, a Inquisição; que evo-
cava Metternich, Lafayette preso em Olmütz e Silvio Pellico confinado
na fortaleza de Spielberg, em Brno. Tal estado tinha de ser destruído; tal
dinastia tinha de desaparecer.” 3
___________
Notas
1
Para conhecer um brilhante resumo das causas e das consequências da Primeira Guerra Mundial,
ver Ralph Raico, “World War I: The Turning Point”, em The Costs of War: America’s Pyrrhic Victories,
editado por John V. Denson (New Brunswick, N. J.: Transaction Publishers, 1999).
2
Expressão utilizada em língua inglesa, emprestada do francês, cuja tradução literal seria “besta ne-
gra”. Significa um anátema; algo que é particularmente detestado ou evitado; objeto de aversão, fonte
de aborrecimento persistente ou irritação. (Nota do Tradutor – N. do T.)
3
Erik von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited: From de Sade to Pol Pot (Washington, D. C.: Regnery,
1990), p. 210; sobre Wilson e o wilsonianismo, ver os seguintes escritos: Murray N. Rothbard, “World
Sendo um conflito cada vez mais ideologicamente motivado, a guerra
rapidamente degenerou-se numa guerra total. Em todo lugar, a economia
nacional inteira foi militarizada (socialismo de guerra) 4
, e a duradoura distinção entre combatentes e não combatentes e entre vida civil e vida
militar caiu por terra. Por essa razão, a Primeira Guerra Mundial resultou
em muito mais baixas de civis – vítimas de inanição e de doença – do que
de soldados mortos em campos de batalha. Ademais, devido ao caráter
ideológico da guerra, em seu término somente eram possíveis a rendição,
a humilhação e a punição totais em vez dos acordos de paz. A Alema-
nha teve de desistir da sua monarquia, e a Alsácia-Lorena foi devolvida à
França tal como antes da Guerra Franco-Prussiana de 1870–1871. A nova
república alemã foi sobrecarregada de pesadas reparações de longo prazo.
A Alemanha foi desmilitarizada, o Sarre alemão foi ocupado pelos france-
ses, e no leste grandes territórios tiveram de ser cedidos à Polônia (Prússia
Ocidental e Silésia). A Alemanha, entretanto, não foi desmembrada e des-
truída. Wilson reservara esse destino para a Áustria. Com a deposição dos
Habsburgos, todo o Império Austro-Húngaro foi despedaçado. Coroando
a política externa de Wilson, dois novos e artificiais estados, Tchecoslová-
quia e Iugoslávia, foram extraídos do antigo Império. A Áustria, por sécu-
los uma das grandes potências europeias, foi reduzida em tamanho ao seu
território central de língua alemã; e, como outro dos legados de Wilson, a
pequena Áustria foi obrigada a entregar a sua província inteiramente ale-
mã do Tirol do Sul (Alto Ádige ou Bolzano) – estendendo-se até o Passo
do Brennero – à Itália.
A partir de 1918, a Áustria desapareceu do mapa da política das potên-
cias internacionais. Os Estados Unidos emergiram como a potência líder
do mundo. A era americana – a pax Americana – começara. O princípio
do republicanismo democrático triunfara. E ele triunfaria de novo com o
fim da Segunda Guerra Mundial e – como assim pareceu – com o colap-
so do Império Soviético nos últimos anos da década de 1980 e no início
da década de 1990. Para alguns observadores contemporâneos, o “Fim da
História” chegou. A ideia americana de democracia universal e global fi-
nalmente tomou forma própria. 5
_______________________
War I as Fulfillment: Power and the Intellectuals”, em Journal of Libertarian Studies, 9, n. 1 (1989); Paul
Gottfried, “Wilsonianism: The Legacy that Won’t Die”, em Journal of Libertarian Studies, 9, n. 2 (1990);
idem, “On Liberal and Democratic Nationhood”, em Journal of Libertarian Studies, 10, n. 1 (1991); e Robert
A. Nisbet, The Present Age (New York: Harper and Row, 1988). 4
Ver Murray N. Rothbard, “War Collectivism in World War I”, em A New History of Leviathan, edita-
do por Ronald Radosh e Murray N. Rothbard (New York: E. P. Dutton, 1972); e Robert Higgs, Crisis
and Leviathan: Critical Episodes in the Growth of American Government (New York: Oxford University
Press, 1987).
Ver Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (New York: Avon Books, 1992).
Assim, a Áustria dos Habsburgos e a prototípica experiência pré-de-
mocrática austríaca não receberam mais do que interesse histórico. Para
ser exato, não é que a Áustria não tenha mais alcançado qualquer reco-
nhecimento. Até mesmo os intelectuais e artistas pró-democracia de qual-
quer campo das atividades intelectuais e artísticas não podiam ignorar o
enorme nível de produtividade da cultura austro-húngara e, em particu-
lar, da cultura vienense. De fato, a lista de grandes nomes associados com
a Viena do fim do século XIX e do início do século XX parece infinita. 6
Contudo, essa elevada produtividade intelectual e cultural raramente foi
estudada em uma conexão sistemática com a tradição pré-democrática da
monarquia dos Habsburgos. Ao invés disso, nos casos em que não fora
considerada uma mera coincidência, a produtividade da cultura austro-
-vienense foi apresentada, de forma “politicamente correta”, como sendo
prova dos positivos efeitos sinergéticos de uma sociedade multiétnica e do
multiculturalismo. 7
Entretanto, a partir do fim do século XX, estão se acumulando cres-
centes evidências de que, em vez de assinalar o fim da história, o sistema
americano está mergulhado numa crise profunda. Desde o fim da década
de 1960 ou o começo da década de 1970, a renda salarial real nos Estados
Unidos e na Europa Ocidental estagnou-se ou até mesmo caiu. No Oeste
Europeu em particular, as taxas de desemprego têm constantemente au-
mentado, atualmente excedendo os 10%. A dívida pública tem crescido
em todo lugar a patamares astronômicos, em muitos casos excedendo o
Produto Interno Bruto (PIB) anual de um país.
Similarmente, os sistemas de previdência social (ou seguridade social)
em todos os lugares estão à beira da bancarrota – ou próximos disso. (...)
_____________________
A lista inclui Ludwig Boltzmann, Franz Brentano, Rudolph Camap, Edmund Husserl, Ernst Mach,
Alexius Meinong, Karl Popper, Moritz Schlick e Ludwig Wittgenstein entre os filósofos; Kurt Godel,
Hans Hahn, Karl Menger e Richard von Mises entre os matemáticos; Eugen von Böhm-Bawerk,
Gottfried von Haberler, Friedrich A. von Hayek, Carl Menger, Fritz Machlup, Ludwig von Mises,
Oskar Morgenstern, Joseph Schumpeter e Friedrich von Wieser entre os economistas; Rudolph von
Jhering, Hans Kelsen, Anton Menger e Lorenz von Stein entre os advogados e os juristas; Alfred
Adler, Joseph Breuer, Karl Bühler e Sigmund Freud entre os psicologistas; Max Adler, Otto Bauer,
Egon Friedell, Heinrich Friedjung, Paul Lazarsfeld, Gustav Ratzenhofer e Alfred Schutz entre os his-
toriadores e os sociólogos; Hermann Broch, Franz Grillparzer, Hugo von Hofmannsthal, Karl Kraus,
Fritz Mauthner, Robert Musil, Arthur Schnitzler, Georg Trakl, Otto Weininger e Stefan Zweig entre
os escritores e os críticos literários; Gustav Klimt, Oskar Kokoschka, Adolf Loos e Egon Schiele entre
os artistas e os arquitetos; e Alban Berg, Johannes Brahms, Anton Bruckner, Franz Lehar, Gustav
Mahler, Arnold Schonberg, Johann Strauss, Anton von Webern e Hugo Wolf entre os compositores.
Ver Allan Janik e Stephen Toulmin, Wittgenstein’s Vienna (New York: Simon and Schuster, 1973);
William M. Johnston, The Austrian Mind: An Intellectual and Social History, 1848–1938 (Berkeley:
University of California Press, 1972); e Carl E. Schorske, Fin-de-Siècle Vienna: Politics and Culture
(New York: Random House, 1981).
Os milhões de vítimas
do comunismo, do nacional-socialismo (nazismo) e da Segunda Guerra
Mundial teriam sido salvos. A extensão da interferência e do controle go-
vernamentais na economia privada dos EUA e do Oeste Europeu jamais
teria alcançado o tamanho que hoje se vê. E, em vez de a região que abran-
ge a Europa Central e a Europa Oriental (e, em consequência, metade do
globo) cair em mãos comunistas e por mais de quarenta anos ser saqueada,
devastada e coercitivamente excluída dos mercados ocidentais, a Europa
inteira (e todo o globo) teria permanecido economicamente integrada (tal
como ocorrera no século XIX) a um sistema de divisão do trabalho e de
cooperação social de âmbito global. O padrão de vida no mundo como um
todo teria sido imensamente mais elevado do que já foi até agora.
Diante do pano de fundo desse exercício imaginativo e do verdadeiro
curso dos eventos, o sistema americano e a pax Americana demonstram
ser – ao contrário da história “oficial”, a qual é sempre escrita pelos vence-
dores, i.e., a partir da perspectiva dos proponentes da democracia – nada
mais do que um desastre colossal; e a Áustria dos Habsburgos e a era pré-
-democrática demonstram ser mais atraentes. 10 Certamente, então, seria
de grande valia realizar uma pesquisa sistemática sobre a transformação
histórica da monarquia para a democracia.
Embora a história desempenhe um importante papel, o que se segue
não é o trabalho de um historiador, mas sim o de um economista políti-
co e filósofo. Não são apresentadas informações novas ou desconhecidas.
Na verdade, na medida em que se reivindica originalidade, os seguintes
estudos contêm novas e desconhecidas interpretações de fatos geralmente
aceitos e conhecidos; (...)
___________________________
Sobre a relação entre o comunismo e a ascensão do fascismo e do nacional-socialismo (nazismo), ver Ralph Raico, “Mises on Fascism, Democracy and Other Questions”, em Journal of Libertarian Studies, 12, n. 1 (1996); e Ernst Nolte, Der europäische Bürgerkrieg, 1917–1945. Nationalsozialismus und Bolschewismus (Berlim: Propyläen, 1987). 10
Ninguém menos do que George F. Kennan, um integrante do establishment, escrevendo em 1951, chegou tão perto de admitir isso:
Contudo, hoje, se fosse oferecida a oportunidade de ter de volta a Alemanha de 1913 – uma
Alemanha governada por pessoas conservadoras, mas relativamente moderadas, sem na-
zistas e sem comunistas, uma Alemanha vigorosa, unida e não ocupada, cheia de energia e
confiança, capaz de fazer parte da frente a contrabalançar o poder russo na Europa... Bem,
haveria objeções a isso de muitos lugares, e isso não faria todo mundo feliz; porém, de
várias maneiras, em comparação com os nossos problemas de hoje, isso não seria tão ruim.
Agora, pensemos no que isso significa. Quando verificamos o escore total das duas guerras,
nos termos dos seus objetivos declarados, compreendemos a dificuldade de perceber e dis-
cernir, afinal, algum ganho.
(George F. Kennan, American Diplomacy, 1900–1950 [Chicago: University of Chicago Press, 1951], pp. 55–56)
Excelente livro, ainda pouco conhecido no Brasil, precisa ser conhecido com urgência.
ResponderExcluirAcrença nesse ídolo, esse deus falso, tem atrasado o mundo em pelo menos 100 anos. O discurso pro-democracia serve atodo tipo de parasita, socialista, comunista, republicano, populistas, etc. serve pra qualquer coisa, tanto que o mais incrível é que os que querem implantar a DITADURA do proletariado também dizem que são democratas, que lutam pela democracia e muita gente acredita, tanto que elege. Não percebe que é a merda defendendo o cocô.
ResponderExcluirPara mim, tenho uma conclusão a mais: não existe esperança de paraíso terrestre, boas soluções políticas para esse mundo, justiça, democracia real ou falsa, nada vai solucionar o mal desse mundo que está dentro do ser humano, o pecado. Enquanto o estado se proclamar laico, enquanto existir o estado que tem o monopólio do uso da força, poucos dominarão muitos para o caminho da perdição. Só sendo prudentes conservadores e voltando às raízes cristãs de nossa civilização teremos, não um paraíso, mas um fator equilibrador e moderador... A mudança tem que partir do indivíduo, daí num crescente um resgate cultural, depois podemos pensar em mudança efetiva do sistema no sentido de abandonar os erros e ampliar o que dá certo. Voltemos aos nossos valores fundadores, os valores cristãos, o que deu mais certo no Brasil até hoje e o período mais de fato democrático da história, a monarquia, e a educação cristã, pois já sabemos que educação laica é mesmo que esquerdista, marxista, materialista, amoral...
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