quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Espírito e Liberdade - 2 - Nikolai Berdiaev

 

Espírito e Liberdade

Nikolai Berdiaev

II

Não é a distinção entre o espírito e a matéria, entre o psíquico e o físico, que aparece como a oposição fundamental e última. É sobre essa distinção que foram elaboradas as metafísicas espiritualista e materialista, todas as duas naturalistas. Estabeleceu-se, na “natureza”, uma distinção entre o psíquico e o físico, que foram identificados com o espírito e a alma. A metafísica religiosa e a teologia vão ainda mais longe ao estabelecer uma oposição entre o Criador e a criação, entre a graça e a natureza. Mas nessa oposição, cujo sentido é pragmático e profundo, a criação é naturalizada e objetivada, e, por conseguinte, naturaliza-se e objetiva-se o Criador. No mundo natural criado, já não encontramos mais o espírito – o mundo é inteiramente naturalizado e desprovido de qualquer profundidade. A profundidade só existe no Criador, que lhe é oposto, e o espírito não está senão na ação da graça divina, de onde se pode deduzir que que somente o Espírito Divino existe. Vemos o homem sob o ponto de vista do naturalismo, concedemos a ele uma alma, mas retiramos dele o espírito. O homem passa a ser exclusivamente um a ser natural; somente pela ação da graça ele se torna um ser espiritual. A teologia cristã afirma em geral que o homem é constituído de uma alma e de um corpo, e que o espírito não passa da resultante, neles, da ação do Espírito Santo. São Tomás de Aquino expressou em seu sistema, de uma maneira clássica e clara, a antítese entre o “natural” e o “sobrenatural”. O tomismo naturaliza definitivamente a existência do mundo criado, a existência do homem, e reduz a filosofia a um conhecimento natural do natural. Nessa concepção da criatura natural, existe uma verdade relativa aos caminhos seguidos pelo homem, a verdade de uma experiência autêntica. Entretanto, a metafísica religiosa e a teologia, que pretendem expressar a verdade última e definitiva da existência, consistem numa metafísica e numa teologia naturalistas. Não apenas a “natureza”, como também a “graça”, são ambas naturalizadas, porque são objetificadas, porque são sitiadas “desde fora” e não “na profundeza”.

A antítese entre Espírito e Natureza deve ser considerada como primordial. Essa antítese não significa que uma metafísica dualista qualquer deva ser estabelecida. A oposição se afirma numa esfera que não é aquela da existência objetificada, vale dizer, naturalizada. O espírito não é a realidade e a existência, no sentido em que a natureza é vista como realidade e existência. Essa é precisamente a falta cometida pela teologia naturalista: o dualismo extremo entre o Criador e a criação, entre o sobrenatural e o natural aí se alia a um monismo extremo na compreensão da realidade e daquilo que constitui a existência. O sobrenatural se encontra sobre a mesma linha ascendente que o natural, ele é também um natural, mas levado a um grau mais alto, a uma altura incomensurável. A antinomia que existe entre o espírito e a natureza não nos fornece uma metafísica dualista da existência, mas introduz uma distinção na compreensão da própria realidade. Trata-se, antes de tudo, da antítese entre a vida e a coisa, entre a liberdade e a necessidade, entre o movimento criador e a submissão passiva aos impulsos exteriores. O primeiro ponto, e o mais elementar, que se pode estabelecer para conhecer o espírito é a distinção de princípio entre “espírito” e “alma”. A alma pertence à natureza, sua realidade é uma realidade de ordem natural, ela não é menos natural do que o corpo. A alma é uma entidade diferente do corpo, do que a matéria [2]. Mas o espírito não pode ser oposto ao corpo e à matéria como se ele fosse uma realidade de mesma ordem do que o corpo e o mundo material. É desde dentro, das profundezas, que o espírito absorve em si o corpo e a matéria, assim como a alma, embora o espírito pertença a uma outra realidade, a um plano diferente. A natureza não é negada, mas iluminada no espírito. O espírito une interiormente à alma e a transfigura. A distinção entre espírito e alma não implica a separação do espiritual e do psíquico. Mas todo psicologismo, em filosofia, não passa de uma forma de naturalismo. O espiritualismo não é ainda uma filosofia do espírito, ele é uma metafísica naturalista, que tende a ver a substância da existência no psíquico, nos fenômenos objetificados da alma.

A distinção entre o espiritual e o psíquico é muito antiga. Platão a conhecia. O apóstolo Paulo a expressou com um profundo religioso. “O homem animal não compreende as coisas que são do Espírito de Deus, pois elas lhe parecem loucura; e ele não as pode escutar, porque elas só podem ser julgadas espiritualmente. Mas o homem espiritual julga todas as coisas, e ninguém pode julgá-lo [3]”. “Ele foi semeado num corpo animal, mas ressuscitará num corpo espiritual [4]”. As categorias do “espiritual” e do “físico” são categorias religiosas e metafísicas. Os gnósticos salientaram a diferença entre o espiritual e o psíquico, e abusaram dela. Hegel tinha consciência dessa diferença, e considerava o conhecimento do espírito como o conhecimento mais concreto. A distinção entre o espiritual e o psíquico é característico de toda mística. Todos os místicos ensinaram o homem espiritual, a experiencia e o caminho espiritual. O espiritual, para eles, não era jamais uma categoria metafísica abstrata, ele era a vida autêntica. A confusão entre o espiritual e o psíquico nas categorias da existência metafísica objetificada, foi uma das fontes do falso naturalismo e do falso espiritualismo. O espírito não é uma substância, ele não é uma realidade objetiva, da mesma qualidade que as outras. O espírito é a vida, a experiência, o destino. Uma metafísica racional do espírito é impossível. A vida não se revela senão na experiência. O espírito é vida e não objeto, e, por conseguinte, ele não pode ser conhecido a não ser por uma experiência concreta, numa experiência de vida espiritual, na realização do destino.

No conhecimento do espírito, o sujeito e o objeto não se opõem um ao outro. O espírito que conhece é o mesmo que o espírito conhecido. A vida espiritual não é objeto do conhecimento, ela é o próprio conhecimento da vida espiritual. A vida não se abre, senão para a vida. O conhecimento da vida é a própria vida. A vida do espírito não se opõe ao conhecimento como uma coisa objetiva, semelhante à natureza. Na vida do espírito e no seu conhecimento, tudo se passa no interior, nas profundezas. Tudo o que se realiza no mundo espiritual, se realiza em mim.

Filosofia

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