IV
A vida religiosa constitui uma experiência espiritual e não uma experiência psicológica ou uma realidade que nos vem de fora. A vida espiritual é o despertar, a eclosão da alma. Eis porque a vida religiosa é uma obtenção de “parentesco”, uma vitória sobre a heterogeneidade e o “extrinsecismo”. A religião pode ser definida como uma experiência de intimidade, de parentesco com a existência. Na vida religiosa, o homem supera a angústia daquilo que é estranho e distante. Mas a intimidade e o parentesco com a existência só se revelam na experiência espiritual; na experiência psíquica e sensível ela se apresenta esfacelada e isolada.
Quando a existência nos parece estranha e distante, quando ela nos oprime, é porque não estamos no espírito, mas estamos num mundo isolado, corporal e psíquico. Eis porque o espírito não é apenas liberdade, mas também amor, união, penetração recíproca das partes da existência na vida única e concreta.
Eis porque o Cristianismo é a revelação da vida do espírito. É na experiência e no mundo espiritual, e não na experiência psíquica e no mundo natural, que se desenrola o drama da existência, as relações entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. A vida espiritual não significa ainda a vida perfeita, isenta de pecados. Nela subsistem, em estado latente, as fontes do pecado e as divisões que geraram nosso mundo natural. A vida espiritual pode decair de sua própria natureza. Nela se revelam e se realizam todos os acontecimentos religiosos que permanecem invisíveis na vida natural. A vida espiritual é a vida simbólica, vale dizer, a vida que une dois mundos, que une Deus e o mundo, e nela estão dados os encontros e as intersecções; é sobre o plano espiritual, na vida espiritual, que se realiza a criação do mundo; Deus desejou um outro si-mesmo e uma reciprocidade de seu amor, mas depois veio a queda e o Novo Adão revelou a natureza humana decaída. Todos esses acontecimentos do mundo espiritual não deixaram de se refletir simbolicamente no mundo natural e histórico. A teologia naturalista, que confunde e ao mesmo tempo separa os dois planos da existência, considera todos os acontecimentos do mundo espiritual como se realizando sobre essa terra, nesse tempo e nesse espaço. O mundo foi criado por Deus no tempo como um dado da ordem natural, um evento objetivo, o paraíso se encontrava sobre essa terra, entre o Tigre e o Eufrates, foi lá que se produziu a queda etc., etc.
Essa é a ingênua ciência bíblica que, refletindo o naturalismo primitivo, não concebe a diferença entre a natureza e o espírito. A teologia escolástica assimilou essa ciência bíblica infantil e concebeu os mistérios da vida espiritual como eventos da ordem natural. O mundo natural parece tão endurecido, que o pensamento religioso sofre para escapar de seus limites e tem dificuldade em conceber que esse mundo natural não é ele próprio senão o reflexo do mundo espiritual, não mais que um acontecimento na vida espiritual, que esse endurecimento é um estado de espírito que não poderá durar. A queda não pôde se realizar no mundo natural, porque esse mundo é ele próprio um resultado da queda. A queda é um evento do mundo espiritual; nesse sentido, ela é anterior ao mundo, ela aconteceu antes do tempo e gerou nosso tempo. Somente o intelectualismo supõe que as realidades estão fora do espírito, que elas são exteriores em relação a ele. Mas o intelectualismo é uma falsa teoria do conhecimento.
As ideias e crenças religiosas nada tem a ver com as verdades abstratas da metafísica. Elas estão ligadas aos fatos e acontecimentos do mundo espiritual, que se revelam na experiência espiritual.
Esses fatos e acontecimentos não guardam semelhança com as categorias do pensamento abstrato, nem com as substâncias da natureza. As ideias e as crenças religiosas não podem ser expressas senão pelas categorias da experiência espiritual, pela tragédia interior da vida e do destino. Percebemos a vida espiritual como um paradoxo. Seus eventos, nos quais se revela a mais profunda substância da existência, são, para a razão e a consciência racional, paradoxais e antinômicos, eles são inacessíveis a conceitos. Na vida religiosa, enquanto vida espiritual e não natural, a identidade dos contrários se revela a nós: a identidade do monismo e do dualismo, da unidade e da pluralidade, da imanência e da transcendência, de Deus e do homem. Todas as tentativas feitas pelos sistemas de teologia naturalista e racionalista para eliminar o paradoxo da vida espiritual são inteiramente exotéricos e não possuem mais do que um valor temporário e pedagógico. Elas correspondem ao estágio naturalista na história da consciência religiosa, na apreensão do Cristianismo. O naturalismo teológico é um realismo ingênuo, ele constitui uma percepção do espírito objetivado na natureza, invertido no mundo natural objetivo; mas a revelação do mundo espiritual representa uma vitória sobre o naturalismo, vitória que tem seu lugar na mística religiosa. Para os místicos, tudo se realiza em profundidade, vale dizer, no mundo espiritual. As religiões se dividem em religiões do espírito e religiões da natureza. O Cristianismo é a religião do espírito, mas não no sentido que nos ensina Hartmann. Não podemos deixar de apreciar a espiritualidade da Índia, mas ela é uma espiritualidade abstrata que ignora a personalidade concreta.
Uma atitude materialista em relação a Deus, concebido como um ser metafísico transcendente, imóvel e substancial, representa a última forma de idolatria na história do espírito humano. O monoteísmo também pode ser um paganismo. O homem sujeitado pelo mundo natural concebe Deus como sendo uma grande força exterior, como uma potência “sobrenatural”, em tudo semelhante à potência “natural”. Deus não passa de uma potência mais elevada, a mais perfeita, ou seja, a projeção do ser natural. Essa força suprema deve ser apaziguada. O deus transcendente se vinga, assim como os deuses e os homens do mundo natural. O Cristianismo apareceu no mundo como a vitória perfeita sobre a idolatria e a submissão. Ele afirmou a religião do espírito e da vida espiritual, a religião da Trindade, como pátria do espírito, na qual Deus se revela como um Pai, amoroso e próximo. Mas a humanidade natural apôs seu selo naturalista sobre a percepção e a revelação das verdades cristãs. Os próprios dogmas da fé cristã, que são fatos e encontros místicos do mundo espiritual, foram traduzidos pelos sistemas teológicos na linguagem do mundo natural e da razão. Mas Deus é vida, não é possível expressá-Lo por meio das categorias de pensamento feitas para a natureza, pois ele não difere das realidades do mundo natural, e ao mesmo tempo ele não pode ser concebido como “sobrenatural”, pois o sobrenatural é ainda algo semelhante ao “natural”. Deus é vida, e não pode se revelar senão na vida espiritual.
Mas os mistérios da vida divina não podem ser expressos senão pela linguagem interior da experiência espiritual, por uma linguagem de vida e não pela linguagem da natureza objetiva e da razão. Veremos que a língua da experiência espiritual é inevitavelmente simbólica e mitológica, que se trata sempre de eventos, de encontros, de destino, e nessa língua não existe nenhuma categoria ou substância fixa. As próprias noções de alma e de espírito possuem uma origem mitológica. Todas as verdades relativas a Deus devem ser incorporadas à profundidade espiritual.
O deus do naturalismo religioso é ainda um objeto de idolatria. Ele representa a última forma de divinização da natureza, mesmo quando é concebido a partir da perspectiva de um teísmo extremo, ou quando se supõe o criado como não divino. a relação entre Deus e o homem é uma relação interior, que se revela na vida espiritual, e não uma relação exterior entre o “sobrenatural” e o “natural”, que se revelaria no mundo natural. É assim que o compreendiam os místicos cristãos e é com eles que devemos aprender o conhecimento dos mistérios da vida espiritual. Esse se revela, não na teologia, que jamais se libertou inteiramente de uma forma de pensamento naturalista, mas na mística, constantemente absorvida pelo mundo espiritual. O Cristianismo sempre viveu dessa profundidade, nela encontrando seu alimento. Quando aconteceu dele se voltar para o exterior, para a superfície, assimilando-se ao mundo natural, ele se degenerou e se arruinou.
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