Espírito e Liberdade
Nikolai Berdiaev
Nicolai Berdiaev, pensador religioso russo, nasceu em 1874 e morreu em 1948. Como alguns dos nobres de seu tempo, associou-se à causa revolucionária, no início do século, lutando contra a tirania czarista. Com a vitória da revolução soviética, Berdiaev foi nomeado professor de filo da Universidade de Moscou, mas foi exilado para Paris em 1922, diante da sua rebeldia em aceitar totalmente a doutrina marxista. Preocupou-se muito com a questão da liberdade individual. Escreveu "A Nova Idade Média", "Solidão e Sociedade" e "Escravidão e Liberdade", de onde foi adaptado este texto (capítulo II).
Capítulo I: Espírito e Natureza
ós perdemos toda a confiança na possibilidade e na fecundidade de uma metafísica abstrata. A metafísica abstrata estava fundamentada sobre a substantificação dos fenômenos da vida psíquica do homem, dos fenômenos do mundo material, ou ainda das categorias do pensamento,
vale dizer, do mundo das ideias. Assim se obtém o espiritualismo, o materialismo, o idealismo.
Mas o ser concreto, o ser enquanto vida, sempre escapou a esses ensinamentos metafísicos. As partes abstratas da realidade ou as ideias abstratas sobre o sujeito conhecedor eram tomadas como sendo a essência da realidade, sua plenitude. A abstração e a substantificação criaram uma metafísica tanto espiritualista como materialista. A vida foi objetificada como se fosse a natureza material ou espiritual. E a categoria essencial do conhecimento dessa natureza metafísica era a categoria da substância. O ser é uma substância objetiva, espiritual ou material. Deus é concebido como sendo a substância, o objeto, a natureza. A ideia é também uma substância. A metafísica, em todas as suas tendências dominantes, era naturalista e substancialista. Ela compreendia a realidade por analogia com a realidade dos objetos materiais. Deus e o espírito passam a ser uma realidade da mesma ordem que o mundo material. À metafísica naturalista opôs-se o fenomenismo, que reconhecia a existência do fenômeno, mas não a do noúmeno, uma metafísica que negava a possibilidade de conhecer a vida original.
O idealismo alemão do século XIX desempenhou um papel preponderante na liberação de toda a metafísica naturalista e marcou um progresso no conhecimento do espírito. Mas o idealismo de Hegel erigiu em realidades substanciais as categorias do pensamento e, malgrado suas pretensões, não atingiu a concretude no espírito. A metafísica panlogista[1] está também tão longe da concretude do espírito quanto a metafísica naturalista. A substantificação do sujeito pensante não atinge seu objetivo, tanto quanto a substantificação do objeto pensado. Falta a essência da vida, tanto quando se erige em absoluto o conceito de sujeito, como quando se erige em absoluto a natureza do objeto. Mas a metafísica do idealismo alemão é mais dinâmica do que a metafísica naturalista da filosofia pré-Kantiana. Ela deve a isso seu sucesso incontestável. Esse dinamismo tem suas raízes na liberação de toda concepção estática e substancialista da natureza material, espiritual ou divina. O idealismo alemão, malgrado todas as falhas de seu monofisismo e de sua abstração, colocou o problema da filosofia do espírito e da vida espiritual; por assim dizer, ele aplainou-lhe o caminho. Ele compreendeu essa verdade: que a existência é ação e não substância, movimento e não imobilidade, vida e não coisa. A metafísica naturalista, que tomou as formas mais diversas, ensinava a opressão do “espírito” pela “natureza”, e ela certamente influenciou poderosamente a consciência religiosa e os sistemas de teologia.
Os sistemas teológicos trazem em si a marca fatal da metafísica objetiva e materialista: eles dão testemunho de um realismo ingênuo inerente à concepção naturalista do mundo, segundo a qual Deus é um objeto, uma realidade objetiva, no mesmo nível das demais realidades da natureza. Dessa forma, Deus é conhecido nas categorias da natureza, e não naquelas do espírito; a realidade de Deus aparece como algo semelhante àquela das substâncias materiais. Mas Deus é espírito, e espírito significa atividade. O espírito é liberdade. A natureza do espírito é oposta à passividade e à necessidade; é por essa razão que o espírito não pode ser uma substância. A concepção aristotélica de Deus, como ato puro, priva justamente a Deus de uma vida interior ativa, e o transforma num objeto fixo. Já não existe potência em Deus, vale dizer, não há mais a fonte de movimento e de vida. O tomismo houve por bem afirmar a diferença entre o “natural” e o “sobrenatural”, encontrando-se assim sob o império da metafísica naturalista da divindade. O “sobrenatural” é também um “natural”, apenas situado mais acima e que possui uma extensão maior. A palavra “sobrenatural” se compõe de dois termos que em si mesmos não implicam nada positivo.
Em vão os filósofos se esforçaram em sugerir que uma filosofia absolutamente autônoma,
independente de toda vida religiosa e de toda ligação com a “vida”, é possível. Existe nisso um orgulho que sofre necessariamente um castigo imanente. Ao se liberar da submissão à religião, a
filosofia passa ao jugo escravo da ciência. Jamais houve, nem haverá jamais uma filosofia absolutamente autônoma, que se erga acima da “vida”. A filosofia é uma função da vida que toma consciência de si mesma, ela é sua iluminação; ela cumpre sua tarefa na vida e para a vida, ele depende sempre daquilo que acontece nas profundezas dessa vida. A filosofia tentou dissimular sua natureza, que é sempre, positiva ou negativamente, religiosa. A filosofia grega, considerada como o modelo mais puro da filosofia autônoma, foi religiosa nas suas fontes e nos seu pathos, e refletiu a concepção religiosa dos gregos. A filosofia dos jônicos não pode ser compreendida a menos que se a relacione com os sentimentos religiosos que a antiga Grécia possuía pela natureza. A filosofia de Platão não pode ser decifrada senão à luz do Orfismo e de seus mistérios, nos quais se buscava a libertação em relação ao mal e à morte. A filosofia de Plotino e dos neoplatônicos se afirma conscientemente religiosa. O idealismo alemão está ligado ao Protestantismo e a uma certa época do desenvolvimento interior do Cristianismo. Kant e Hegel não puderam se colocar à margem do Cristianismo, malgrado o afastamento considerável entre sua consciência e a consciência da Igreja. A filosofia racionalista do século XVIII, bem como a filosofia positivista e materialista do século XIX, negativamente religiosas em seu pathos, refletem a luta contra Deus, contra a fé cristã, e nelas não existe nenhuma autonomia, nenhuma pureza, nem existe abnegação nesses movimentos filosóficos. O racionalismo, o criticismo, o empirismo, conduzem a uma luta religiosa, mas eles não se livram de suas ligações que os prendem à vida. O ateísmo consiste num estado da vida e da luta religiosa, tanto quanto a fé. Quase toda a ciência objetiva consagrada à crítica bíblica e às pesquisas históricas sobre as origens do Cristianismo levaram a uma luta religiosa; ela era movida por um pathos negativamente religioso. Essa ciência jamais se elevou ao conhecimento puro e inteiramente desimpedido. A incredulidade é uma premissa da vida, na mesma medida que a fé. O positivismo sempre teve sua fé, que o guiava pelos caminhos do conhecimento. A filosofia é o espírito que toma consciência de si mesmo, e ela não pode ser independente de tal ou qual aspiração espiritual. Ela é determinada pela estrutura do espírito, por sua qualidade, por sua aspiração ao mundo superior ou inferior, conforme esse espírito seja fechado em si ou desabrochado. Podemos concluir daí que a filosofia é determinada pela vida, porque o espírito é vida, porque o conhecimento que o espírito tem de si mesmo é o conhecimento que a vida tem de si mesma.
A orientação do espírito determina a estrutura da consciência, a qual, por sua vez, determina a consciência. O conhecimento é a vida espiritual, a atividade do espírito. O fato de que a filosofia depende da vida, de modo algum justifica o relativismo. No próprio espírito, na própria vida, se revelam as qualidades, de onde emana a luz do conhecimento. As qualidades do espírito possuem uma natureza que não é relativa. O conhecimento é dinâmico, ele tem seu próprio destino, sua história espiritual, suas épocas, suas etapas de desenvolvimento. Aquilo a que chamamos metafísica ou teologia naturalista é a expressão da orientação do espírito, o reflexo da concepção religiosa do mundo, que constitui uma das épocas anteriores no destino da consciência. Não podemos considerar a metafísica e a teologia naturalista simplesmente como um erro. Elas constituem um estágio indispensável no destino da consciência, no da vida religiosa. É por essa via que o homem se encaminha para a luz. Não se descobriu imediatamente que o espírito consiste num devir criador. Imaginava-se o espírito como algo acabado, ou seja, substancial. A metafísica naturalista, com suas substâncias e seus objetos fixos, reflete mais ou menos bem certos aspectos do ser, vistos a partir de uma orientação específica do espírito e de uma dada estrutura da consciência. Ela indica o caminho, e não pretende exprimir a verdade absoluta e definitiva do ser. O procedimento de substantificação dos metafísicos e dos teólogos, o fato de que eles objetificam e erigem em absolutos certos momentos do desenvolvimento espiritual e certos aspectos da vida espiritual, não é capaz de dar um significado perfeito, como aquele pretendido pelos dogmas da fé. Esses não constituem nem uma metafísica, nem uma teologia, mas fatos da experiência espiritual e da vida espiritual.
Um outro estado, uma nova orientação espiritual se torna possível, um novo momento começa, quando a metafísica e a teologia naturalistas, com suas substâncias fixas, já não exprimem a verdade da vida, porque o espírito toma consciência de si mesmo de outra maneira e se abre a outra coisa, quando ele tende a se libertar da operação da natureza substancial, do jugo da objetividade que havia ele conferido a si próprio. A fé, os dogmas da religião, não podem por causa disso perder seu significado absoluto, mas passamos a vê-los sob outra luz, e eles se revelam em uma nova profundidade. A religião não pode depender da filosofia, e a filosofia não pode limitar e modificar a religião à sua maneira. O erro do “modernismo” consiste em querer subordinar a religião à razão e ao conhecimento contemporâneo. Na realidade, trata-se de outra coisa. A religião sempre teve sua filosofia, sua metafísica religiosa; esta não expressava senão uma época do desenvolvimento espiritual do homem, não uma verdade religiosa absoluta e definitiva. Sobre essa via espiritual, e na própria vida original, podem surgir modificações que exigirão um novo simbolismo no conhecimento, uma outra estrutura de consciência. Não é a filosofia que trará modificações à religião, mas na vida original alguns acontecimentos podem exigir que as fases naturalistas e objetivas dos mistérios da vida religiosa sejam ultrapassados.
No decurso da história do Cristianismo existiram homens que dominaram a metafísica naturalista e a teologia, e para os quais os mistérios do Cristianismo se revelaram de maneira diferente. Elevar-se acima da metafísica naturalista e da teologia, vencer essa concepção estática da vida religiosa, que não vê nela senão substâncias e objetos, implica compreender o que são o espírito, a vida espiritual, e no que o espírito se distingue da natureza. Uma metafísica abstrata não pode existir, mas uma filosofia e uma fenomenologia da vida espiritual são possíveis.
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