terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Espírito e Liberdade - 3 - Nikolai Berdiaev

 


III

A vida espiritual é a vida mais real. O espírito e o mundo natural são dissemelhantes, e não se encontram exteriormente nem possuem nenhuma ação recíproca. Não é senão a uma profundidade inefável que o espírito absorve em si o mundo e o ilumina com uma claridade diferente. A vida espiritual não é uma realidade objetiva, mas ela é ainda menos uma realidade subjetiva. Ambas as compreensões, a objetiva e a subjetiva do espirito são igualmente errôneas.

A questão da realidade costuma ser colocada, no mundo natural, como uma questão de relação, de justa reflexão do objeto no sujeito. Existirá uma realidade em si mesma e por si mesma que possa corresponder ao mundo concebido e conhecido por nós? Existirão efetivamente o ser físico ou psíquico? Quando consideramos a Deus de um ponto de vista naturalista, a questão da realidade de Deus é posta dessa maneira. A ideia que temos de Deus, corresponderá ela a uma existência real de Deus? A prova ontológica da existência de Deus tende a deduzir a realidade divina da ideia de Deus, da ideia do Ser Perfeito. Definitivamente, todas as provas da existência de Deus possuem um caráter naturalista e concebem a Deus como uma realidade objetiva, semelhante àquela do mundo natural. Da mesma forma, os argumentos invocados contra a existência de Deus são naturalistas e tolamente realistas. O realismo ingênuo consiste justamente em transferir para o mundo espiritual e divino a qualidade de realidade do mundo natural; os argumentos de incredulidade, da negação de Deus e do mundo espiritual, sempre estiveram ligados a esse ingênuo realismo naturalista.

A ideia de Deus existe, o sentimento de Deus existe; mas existirá uma realidade correspondente a essa ideia, a esse sentimento? Eis a questão psíquica, que atormenta tantos homens e filósofos, e é ao redor dessa questão que se desencadeiam as discussões e a luta entre os que tentam provar a existência de Deus e os que a refutam. Mas a realidade do mundo espiritual e a realidade divina não correspondem a nenhuma realidade de nossos sentimentos psíquicos e de nossos pensamentos. A realidade do mundo espiritual, a realidade de Deus existe, não em relação ou por comparação, mas antes em si mesma, como uma realidade de qualidade diferente, infinitamente maior do que os sentimentos e os pensamentos do mundo psíquico, e do que os fenômenos do mundo natural. Não é senão na experiência da alma e no pensamento a ela ligado, que se coloca a questão referente à relação das realidades, que se concebe buscar as provas da existência divina e da vida espiritual. Dentro de uma experiência espiritual esse tipo de questão não se coloca; pois a experiência espiritual é a própria vida espiritual, a realidade do espírito, a realidade do divino. As realidades espirituais são reveladas na vida espiritual e, por conseguinte, não pode haver dúvida sobre a relação que existe entre as realidades e as revelações da vida espiritual no mundo espiritual. No mundo espiritual, as realidades objetivas não correspondem à experiencia, mas a experiência espiritual é ela própria uma realidade de ordem superior. A vida espiritual não é o reflexo de uma realidade qualquer, ela é a própria realidade. É impossível se perguntar se existe uma realidade que corresponde à experiência dos grandes santos, à dos místicos, à dos homens de vida espiritual superior, pois essa é uma questão psíquica, naturalista, ingenuamente realista e não espiritual. A experiência espiritual dos santos, dos místicos e dos homens de espiritualidade superior é a própria realidade, a aparição e a manifestação do Espírito e de Deus. O espírito existe, a vida espiritual aparece e se manifesta.

Esse é um fato primordial: ele pode ser constatado, mas não provado. A experiência espiritual é a maior realidade na vida da humanidade. O divino se mostra nela, mas não se demonstra. Deus e a divindade, o espírito e o espiritual, não são dados pela vida, pela experiência; eles se manifestam, mas não podem ser justificados pela reflexão.

A meditação que consiste em se perguntar se a realidade da experiência mística não seria uma ilusão e uma autossugestão, consiste numa reflexão da alma, separada do espírito e da experiência espiritual; ela representa a impotência do pensamento que se opõe à própria vida.

Para aquele que possui uma vida, uma experiência espiritual, a questão de sua realidade não se coloca: para esse, a realidade não implica uma correspondência, algo extrínseco, uma objetividade exterior. Nada corresponde à minha vida espiritual, ela existe por si mesma. Minha
vida espiritual é limitada, mas existe uma vida espiritual que é infinita, e essa vida infinita não é para si mesma uma realidade exterior. Nada nesse mundo pode me provar que minha experiência espiritual não existe. Pode ser que o mundo não exista, mas minha vida espiritual, minha experiência do divino existe, ela é a manifestação da realidade do divino, ela é incontestável.

A elevação do espírito, sua intensidade, seu ardor existente, essas coisas são a própria realidade do espírito, a manifestação do mundo espiritual. Os que afirmam que essa elevação, essa intensidade e esse ardor são uma ilusão e uma autossugestão, esses provam simplesmente que ignoram sua existência. Ora, a ausência de vida espiritual não pode ser uma prova de sua inexistência, uma prova de que a elevação é uma ilusão. O Eros divino em mim é a própria realidade do divino. a experiência do divino não exige que se prove sua realidade, ela é em si mesma essa realidade. No mundo espiritual, a realidade não é determinada por um dado exterior, mas ela resulta da orientação e da intensidade da própria vida espiritual. A descoberta da realidade depende da atividade do espírito, de sua intensidade, de seu ardor. Não podemos esperar que as realidades espirituais nos sejam reveladas como o são os objetos do mundo natural, que elas nos sejam dadas desde o exterior como o são as pedras, as árvores, as mesas, as cadeiras, como nos são dadas as leis da lógica. Na vida espiritual, é a força do espírito que determina a realidade. No espírito, a realidade não é extrínseca, mas ela procede do interior do espírito. A questão da ilusão e da não-realidade da vida e da experiência espiritual decorre do fato
de que as identificamos com a vida e com a experiência psíquica.

Mas não será o espiritual unicamente o psíquico, não será a experiência espiritual simplesmente a vida emocional da alma? Não será a vida espiritual subjetiva e, por isso mesmo, não convincente?

Não podemos provar, a alguém que não conhece mais do que a experiência psíquica, que uma experiência espiritual é possível, não podemos, exteriormente, obrigar alguém mergulhado no isolamento subjetivo, a reconhecer a existência das realidades espirituais. Somente a experiência espiritual pode convencer de sua própria existência, somente a manifestação das realidades espirituais num homem pode provar a ele a existência dessas realidades. Quem não está orientado para Deus não pode exigir que esse lhe seja mostrado, ou que Sua realidade lhe seja demonstrada. É impossível constranger um homem a reconhecer a realidade da vida espiritual, como se pode obrigá-lo a admitir a realidade do mundo natural. É preciso que essa vida espiritual se revele por si mesma à pessoa. Mas, da mesma forma, não se pode provar que não exista uma vida espiritual, que o espírito e Deus sejam ilusões sem correspondência com coisa alguma. A vida espiritual é uma realidade extra-objetiva, ela não está ligada a nenhuma determinação do tempo, do espaço ou da matéria, ela é uma realidade ideal por comparação às realidades do mundo objetivo, ela é a realidade da vida inicial.

O espaço e o tempo dentro dos quais nos é ofertado o mundo natural, são criados pelo espírito, e não designam mais do que um estado do mundo espiritual. A realidade da vida espiritual não é determinada por uma série de causas no mundo físico e psíquico, mas ela se determina a partir da profundidade, do seio mesmo da vida inicial. Se, na história do mundo, mesmo que apenas em uns poucos homens, tenha se abrasado uma vida espiritual superior e tenha sido despertada uma sede do divino, bastaria isso para provar a realidade do espírito e de Deus, e o mundo natural seria alçado acima de si mesmo.

Como provar e justificar a própria existência da experiência espiritual? Muitas pessoas negam a originalidade qualitativa da experiência espiritual e a reduzem inteiramente a uma experiência psíquica, a um objeto da psicologia. Mas as objeções à possibilidade e à existência da experiência espiritual provêm sempre de sua inexistência naquele que as negam. Pelo fato de que as qualidades da experiência espiritual sejam inacessíveis a alguns, e mesmo à maior parte da humanidade, não se segue que essa experiência seja inexistente, ou que ela seja impossível. O fato de que a consciência de um homem seja limitada não lhe dá o direito de estender essa limitação a todos os homens. Se X ou Y jamais tiveram uma experiência mística, isso só prova a limitação de sua experiência, mas não os autoriza, de modo algum, a negá-la nos outros. O empirismo autêntico, consequente, absoluto, não dá o direito de estabelecer limites à experiência.

Se na experiência de minha vida, uma coisa qualquer não se revelou, não posso concluir que ela não se revelará a outros. É preciso ter mais modéstia, mais consciência das limitações de nossa própria natureza, sem estendê-las à natureza humana em geral; essa é uma condição indispensável a todo conhecimento, a docta ignorantia. Mas os homens que possuem uma experiência limitada se orgulham de sua limitação e a erigem em norma para os demais. A “consciência média” cria uma espécie de tirania e seus limites são identificados aos da natureza humana em geral. Essa consciência nega absolutamente a experiência espiritual, a possibilidade do milagroso, e rejeita toda mística. Ela penetra na vida religiosa e afirma seu positivismo até mesmo nela. Essa “consciência média” é a consciência do homem natural, ela é a afirmação desse mundo natural, como se ele fosse o único real, e é também a negação do homem, da experiência e do mundo espirituais. Ela manifesta um contentamento de si e uma suficiência, uma consciência burguesa, sentindo-se a dona da situação do mundo. Mas a existência da experiência espiritual e do mundo espiritual nos são demonstradas por aqueles que os possuem. Os que não possuem essa experiência ou que não puderam se elevar até sua percepção, não têm o direito de se pronunciar a esse respeito. Devemos falar daquilo que conhecemos, não do que ignoramos.

O positivismo erige a ignorância como o próprio princípio do conhecimento, e confere as prerrogativas desse àqueles que são privados da experiência espiritual. O positivismo vê nessa ignorância e na ausência de experiência uma garantia de objetividade científica. Presume-se que são os seres desprovidos de experiência religiosa e de fé, os únicos que podem, de modo mais fecundo, se ocupar da ciência e da história das religiões. Essa é uma das maiores aberrações. As ciências do espírito se distinguem, por seu próprio caráter, das ciências naturais, pelo fato de que elas exigem um parentesco e uma afinidade entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. As ciências relativas ao espírito repousam sobre uma experiência espiritual, e quem não conheceu essa experiência, e que a nega todo o tempo, nada pode obter delas. A experiência espiritual não é uma experiência psíquica, psicológica, concentrada em si, na qual a personalidade é absorvida em si mesma. Ela é uma experiência de expansão que entreabre o mundo espiritual suprapessoal, que revela o laço que une o microcosmo ao macrocosmo. Ela corresponde sempre a uma fissura na mônada psico-corporal, a uma saída de si pela imersão nas profundezas de si; ela marca uma vitória sobre as divisibilidades e sobre todo “extrinsecismo”.

A negação da realidade do mundo espiritual provém habitualmente do fato de que ele é concebido sob a forma da existência metafísica substancial, como uma realidade objetiva. Mas a substância é uma mônada acabada e fechada. Uma concepção substancialista da alma a mantém separada do mundo espiritual e torna impossível a experiência espiritual. A substância fica encarcerada em seu próprio mundo psíquico. Um mundo concentrado em si é sempre um mundo da alma, e não do espírito. Para as substâncias psíquicas, o espírito se mostra, de certa forma, como uma realidade transcendente que se opõe a elas exteriormente e à distância. Assim se dá a inserção do homem no mundo natural e sua subordinação às suas leis. A metafísica espiritualista que ainda permanece naturalista é obrigada a negar a experiência espiritual. Assim é que ela habitualmente se liga a uma teoria racionalista do conhecimento. A alma é considerada como uma realidade análoga a do mundo material. Esse é um ponto de vista estático da alma e do mundo, que fecha ao conhecimento a dinâmica da vida. Nessa metafísica, Deus é visto como uma substância inerte; Deus, o mundo e a alma se encontram separados e, por conseguinte, toda experiência espiritual se torna impossível. Ela não é possível a não ser que se suponha o homem como constituindo um microcosmo, no qual se revela todo o universo, sem que existem limites transcendentes a isolar o homem de Deus e do mundo. Deus é espírito, e por isso mesmo Ele não pode ser uma substância. A natureza do espírito está mais para Heráclito, não para Parmênides. O espírito é um movimento incandescente.

É falso supor que a personalidade seja necessariamente uma substância, e que ela deva ser limitada, isolada, supor que a negação da substância seja a negação da personalidade. Na realidade, a personalidade concreta, viva, não possui nenhuma semelhança com a substância. A natureza da personalidade é dinâmica. A personalidade é antes de tudo uma energia espiritual qualitativamente original, uma atividade espiritual, ela é o centro da energia criativa. A existência da personalidade não implica necessariamente uma separação em relação a Deus e em relação ao mundo. O suprapessoal, na personalidade, não a nega, mas a constrói e a afirma. A existência da personalidade, no sentido verdadeiro do termo, não é possível senão pela eclosão nela de princípios espirituais que a ajudam a sair de seu estado de isolamento e a unem ao mundo divino. A personalidade é a ideia divina, o desígnio de Deus. Conceber a personalidade como uma substância naturalista, equivale a limitá-la na experiência e no caminho espirituais.

Toda experiência religiosa, autêntica e mística, testemunha que a personalidade não é uma substância isolada, mas que ela traz, oculta em si mesma, possibilidades inéditas, que diante dela se estende um mundo infinito, e que ela é o reservatório da energia espiritual.

Na vida espiritual, o pessoal e o suprapessoal estão unidos de maneira antinômica, de modo que o suprapessoal não nega o pessoal, enquanto que esse último se eleva até ele sem se aniquilar nele. A existência se revela em sua natureza interior quanto vida, enquanto experiência espiritual, destino, mistério divino, e não como substância ou natureza objetiva. A vida espiritual é dinâmica no mais alto grau, ela é uma vida em tudo semelhante à vida. A doutrina de Leibnitz relativa à alma humana, como uma mônada fechada, e relativa a Deus, como mônada suprema, que existe no mesmo nível que as demais mônadas, é um exemplo de metafísica naturalista, embora nela existam alguns elementos de uma concepção espiritual autêntica.

Na vida espiritual, não existe heterogeneidade absoluta, nem impenetrabilidade substancial, que possam impor limites intransponíveis. As substâncias são criadas pelo espaço, pelo tempo, pela matéria, e é seu caráter que adquirem as almas presas ao mundo corporal. A substancialidade não passa de um estado do mundo, ela não é mais do que sua solidificação, sua ossificação e sua escravidão, e não sua essência interior. Esse mundo natural é filho do ódio e da divisão, que geram o aprisionamento e a servidão. O espírito é liberdade. Essa definição de Hegel permanece sendo uma verdade imutável, que nos é confirmada pela experiência espiritual da humanidade. As restrições e os limites exteriores são criados pelos dejetos da vida exterior, pela existência em modo extrínseco das coisas desse mundo. A coisa é justamente aquilo que se se encontra fora, e não na profundidade. O espírito reside sempre na profundeza, o próprio espírito é profundidade, ele é interior e não exterior, e sua vida não pode gerar absolutamente nada de exterior, de superficial, de extrínseco, nada que possua inércia e impenetrabilidade. A profundidade é um símbolo do espírito. O mundo natural, tomado em si mesmo, não conhece a profundidade; sua profundidade só pode ser revelada no espírito, quando se considera esse mundo natural como um símbolo do espírito, como um momento interior do mistério do espírito. Mas a compreensão do mundo espiritual exige sua delimitação em relação ao mundo natural, a vitória sobre todas as confusões, a recusa de uma naturalização da vida espiritual, tão típica dos sistemas metafísicos.

Assim como não existe nenhum “extrinsecismo”, nem divisibilidade, na vida espiritual, tampouco existe nela essa oposição entre a unidade e a pluralidade, sobre a qual repousa a vida do mundo natural. A unidade não se opõe à pluralidade como se fosse uma realidade exterior, mas, ao contrário, ela a penetra, cria sua vida, sem lhe retirar o estado de pluralidade. “Eu estou no Pai, vós estais em mim e eu em vós [5]”. “Não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim [6]”. É sobre essa vitória interior sobre o “extrinsecismo” do um e do múltiplo, que repousa a vida espiritual. A oposição entre o um e o múltiplo, o “extrinsecismo” de um em relação ao outro tem origem no espaço, no tempo, na matéria, que são já resultados da Queda, da separação de Deus. A vida espiritual se desenrola fora do tempo, do espaço, da matéria, ainda que esteja ligada a elas como a uma imagem simbólica da divisão interior do espírito. Na vida e na experiência espiritual me é dada a unidade interior de meu destino, do destino do mundo e do destino de Deus. Na experiência espiritual meu destino deixa de ser divisível e isolado, e isso significa que a vida espiritual está num grau mais elevado do que a vida concreta. A realidade natural é uma realidade abstrata e divisível, na qual jamais se realizam a integridade a plenitude e a união absoluta. Na vida espiritual a integridade e a plenitude da existência são dadas, todos os degraus da existência, transformados e transfigurados, fazem parte dela, o ódio e a heterogeneidade são superados, a objetividade é vencida. A vida espiritual não é uma separação da vida do mundo natural, e o sentido do ascetismo e da purificação, que lhe são indispensáveis, não reside nisso. A espiritualidade abstrata é uma forma de espiritualidade muito imperfeita. Infinitamente mais elevada é a espiritualidade concreta que transfigura e ilumina a vida do mundo.

A vida espiritual não é uma realidade de mesma ordem que a realidade física e psíquica, que a realidade do mundo natural, mas ela absorve em si toda a realidade, considerando-a apenas como uma “simbolização”, como um reflexo de seus estados, de seus eventos interiores e de seus caminhos. O espírito não se opõe absolutamente à carne; a carne é a encarnação e o símbolo do espírito. A vida espiritual é uma vida histórica, pois essa é uma vida concreta. Mas a realidade histórica exterior não passa de uma imagem da vida espiritual no tempo, na divisibilidade. Tudo o que é exterior não passa de um símbolo do que é interior. A própria matéria não é mais do que a “simbolização” dos estados interiores do mundo espiritual, a “simbolização” de seu ódio e de sua divisibilidade, e não uma substância que existe por si mesma. Não estamos afirmando o espiritualismo, a espiritualidade abstrata, mas o simbolismo, a espiritualidade concreta.

A vida espiritual não é percebida na análise psicológica dos processos da alma. A psicologia é uma ciência que trata da natureza, não do espírito. A vida espiritual, enquanto qualidade específica da vida da alma, normalmente escapa à ciência psicológica. A maior parte dos processos psicológicos devem ser relacionados com os fenômenos do mundo natural, processos que são ligados ao corpo e ao mundo material, que escoam no tempo, que possuem algum tipo de relação com o espaço e se desenvolvem no isolamento, na divisibilidade, na união exterior. A psicologia analisa de um modo abstrato a vida espiritual e se vê em presença de uma realidade abstrata. Ora, a vida espiritual é concreta e exige um estudo concreto, ela se revela no
conhecimento de uma cultura espiritual concreta, e não no conhecimento dos elementos abstratos da alma. O conhecimento da vida espiritual é uma ciência histórica, uma ciência que trata da cultura e não uma ciência natural, para empregarmos a expressão imperfeita de Rickert.

Os materiais da filosofia da vida espiritual são constituídos pela própria vida espiritual da humanidade, tal como ela se desenvolveu na história: é sempre a vida concreta, quer se trate de religião, de mística, de filosofia, de ciência, de moral, de criação artística. Basta que consideremos os grandes monumentos do espírito, as grandes manifestações da vida espiritual!

Essa experiência espiritual, histórica, da humanidade, deve ser relacionada com a experiência espiritual da pessoa, e a ela deve ser comparada.

A pessoa que pretende conhecer deve abrir sua alma, até que nela se derrame essa vida espiritual única que se revela na história do espírito. É nos estados mais elevados da cultura espiritual que se manifesta a experiência espiritual autêntica. Por meio deles se adquire uma vida
espiritual intemporal. Quem busca a vida espiritual deve estar com todos aqueles que participaram do desenvolvimento do conhecimento do espírito na história. Eis porque a filosofia do espírito contém inevitavelmente em si um elemento tradicional, que ela pressupõe uma comunhão com a tradição. A personalidade, ao se isolar, não pode conhecer a vida, pois ela não pode começar por si mesma. O ponto de partida de Descartes não favorece o conhecimento da vida espiritual. O reconhecimento da autenticidade da vida espiritual na humanidade anterior é uma premissa indispensável na filosofia da vida espiritual. Platão não é para nós simplesmente um objeto de investigação; nós vivemos com ele uma vida em comum, uma mesma experiência, nós nos encontramos com ele na vida espiritual, em suas profundezas. O mundo espiritual não se revela no mundo natural exterior, mas no espírito humano, na vida espiritual do homem e da humanidade, e seu conhecimento pressupõe um espírito ecumênico dentro da humanidade [7]. Esse ecumenismo espiritual é em tudo estranho à psicologia e à metafisica espiritualista. A biografia dos santos e dos gênios, as criações dos inovadores religiosos, dos grandes pensadores, dos grandes artistas, os monumentos da vida espiritual da humanidade, são de uma importância infinitamente maior dos que as deduções do pensamento abstrato. A vida espiritual se manifestou de forma concreta e real na experiência espiritual da humanidade, e nos legou numerosas criações. Já não mais se trata de uma manifestação da natureza, mas de uma manifestação do espírito. O sentido profundo da tradição religiosa consiste em descobrir a vida espiritual, não n
a natureza exterior ou no pensamento abstrato, mas no ecumenismo espiritual.

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