Do livro A Anatomia do Estado -
Murray N. Rothbard
Tradução de Tiago Chabert.
São Paulo : Instituto Ludwig von
Mises. Brasil, 2012.
O estado é quase universalmente considerado uma
instituição de serviço social. Alguns teóricos veneram
o estado como sendo a apoteose da
sociedade; outros
consideram-no uma organização afável,
embora muitas
vezes ineficiente, que tem o intuito
de alcançar objeti-
vos sociais. Porém quase todos o consideram um meio
necessário para se atingir os
objetivos da humanidade,
um meio a ser usado contra o “setor
privado” e que fre-
quentemente ganha essa disputa pelos
recursos. Com o
advento da democracia, a
identificação do estado com a
sociedade foi redobrada ao ponto de
ser comum ouvir a
vocalização de sentimentos que violam
quase todos os
princípios da razão e do senso comum,
tais como: “nós
somos o governo” ou “nós somos o
estado”.
O termo coletivo
útil “nós” permite
lançar uma
camuflagem ideológica sobre a
realidade da vida po-
lítica. se “nós somos o estado”, então qualquer
coisa
que o estado faça a um indivíduo é
não somente justo
e não tirânico, como também
“voluntário” da parte do
respectivo indivíduo. se o estado incorre numa dívi-
da
pública que tem
de ser paga
através da cobrança
de impostos sobre um grupo para
benefício de outro,
a realidade deste fardo é obscurecida
pela afirmação
de que “devemos a nós mesmos” (ou “a
nossa dívida
tem de ser paga”); se o estado
recruta um homem, ou
o põe na prisão por opinião
dissidente, então ele está
“fazendo isso a si mesmo” — e, como
tal, não ocorreu
nada de lamentável.
Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assas-
sinados pelo governo nazista não
foram mortos; pelo
contrário, devem ter “cometido
suicídio”, uma vez que
eles eram o governo (que foi eleito
democraticamente)
e, como tal, qualquer coisa que o
governo lhes tenha
feito foi voluntário da sua
parte. não seria necessário
insistir mais
neste ponto; no
entanto, a esmagado-
ra
maioria das pessoas
aceita esta ideia
enganosa em
maior ou menor grau.
Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós”
não somos o estado; o governo não
somos “nós”. o es-
tado
não “representa” de
nenhuma forma concreta
a
maioria das pessoas1. mas, mesmo que o fizesse, mes-
mo que 70% das pessoas decidissem
assassinar os res-
tantes 30%,
isso ainda assim
seria um homicídio
em
massa e não um suicídio voluntário
por parte da mi-
noria chacinada2. não se pode permitir que nenhuma
metáfora organicista, nenhuma
banalidade irrelevante,
obscureça este fato essencial.
Se, então, o
estado não somos
“nós”, se ele
não é
a “família humana” se reunindo para
decidir sobre os
problemas mútuos, se ele não é uma
reunião fraterna
ou clube social, o que é afinal? em poucas palavras, o
estado é a organização social que
visa a manter o monopólio
do
uso da força
e da violência
em uma determinada
área
territorial; especificamente, é a
única organização da so-
ciedade que obtém a sua receita não
pela contribuição
voluntária ou
pelo pagamento de
serviços fornecidos
mas sim por meio da coerção.
enquanto os outros indivíduos ou instituições ob-
têm o seu rendimento por meio da
produção de bens e
serviços e da venda voluntária e
pacífica desses bens e
serviços ao próximo, o estado obtém o
seu rendimento
através do uso da coerção; isto é,
pelo uso e pela ameaça
de prisão e pelo uso das armas3. depois de usar a força
e
a violência para
obter a sua
receita, o estado
geral-
mente passa a regular e a ditar as
outras ações dos seus
súditos. Poderíamos pensar que a
simples observação
de
todos os estados
ao longo da
história e de
todo o
globo seria prova suficiente para
esta afirmação; mas o
miasma do mito incrustou-se na
atividade do estado há
tanto tempo, que se torna necessária
uma elaboração.
1
não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e
enganos
da “democracia”. É o suficiente dizer
que o verdadeiro agente de um indivíduo,
ou “representante”, está sempre
sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode
ser demitido a qualquer momento e não
pode agir em contrário aos interes-
ses ou desejos do seu chefe.
obviamente, o “representante” numa democracia
nunca poderá satisfazer estas funções
de agente, as únicas conformes com uma
sociedade livre.
2
os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a esco-
lha majoritária dos governantes —
implica logicamente que a maioria tem de
deixar determinado grau de liberdade
à minoria, pois a minoria pode um dia
tornar-se a maioria. Aparte de outras falhas, este argumento
obviamente não se
mantém onde a minoria não se pode
tornar a maioria, por exemplo, quando a
minoria pertence a um grupo étnico ou
racial diferente da maioria.
3 Joseph A.
schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, So-
cialismo
e Democracia) (new York: Harper and Bros., 1942), p. 198.
A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a
pública
foi intensificada desde o princípio
pelo fato de que. o estado
tem vivido do rendimento que tem sido
produzido na esfera
privada com propósitos privados e que
tem que ser desviado
desses propósitos através da força
política. A teoria que in-
terpreta os impostos em analogia à
filiação de um clube ou à
aquisição do serviço de, digamos, um
médico só prova quão
removida se encontra esta parte das
ciências sociais dos hábi-
tos mentais
científicos.
Ver
também murray n. Rothbard, “the Fallacy of the ‘Public sector’”, new
individualist Review (summer, 1961):
3ff.
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