Do livro
Liberalismo
– Segundo a Tradição Clássica
de Ludwig von
Mises. -- São Paulo : Instituto Ludwig von Mises
Brasil,
2010. 125p.
Prefácio à edição de2010
SOBRE UMA SOCIEDADE
LIVRE
Qualquer
filosofia política deve voltar-se para uma questão cen
tral: sob
quais condições a iniciação de violência deve ser considerada
legítima? Uma
filosofia pode endossar
tal violência em
nome dos
interesses
de um grupo racial majoritário, como fizeram os Nacional
Socialistas
da Alemanha. Outra pode endossá-la em nome de uma
classe econômica
em particular, como
fizeram os Bolcheviques
da
Rússia
Soviética. Uma outra pode preferir evitar uma posição doutri
nária de uma
forma ou de outra, deixando para o bom juízo daqueles
que
administram o estado decidir quando o bem comum demanda
a iniciação
de violência e quando não. Essa é a posição das sociais
democracias.
O liberal
determina um limiar muito alto para a iniciação da vio
lência. Além
da tributação mínima necessária para manter os servi
ços
jurídicos e de defesa — e alguns liberais recusam até mesmo isso
—, ele nega
ao estado o poder de iniciar violência, e procura somente
soluções
pacíficas para os problemas sociais. Ele se opõe à violência
praticada em
nome da redistribuição de riqueza, do enriquecimento
de grupos de
interesse influentes ou da tentativa de aprimorar a con
dição moral
do homem.
Pessoas
civilizadas, diz o liberal, interagem entre si não de acordo
com a lei da
selva, mas por meio da razão e da discussão. O homem
não pode se
tornar bom por meio do guarda da prisão e do carrasco;
caso estes
sejam necessários para torná-lo bom, então sua condição
moral já
está muito além de qualquer possibilidade de salvamento.
Como Ludwig
von Mises afirma em seu livro Liberalismo, o homem
moderno
“deve se libertar do hábito de chamar a polícia sempre que
algo não lhe
agrada”.
Tem havido
uma espécie de renascimento dos estudos misesianos
no rastro da
crise financeira que assolou o mundo em 2007 e 2008,
dado que
foram os seguidores de Mises que apresentaram as mais con
vincentes
explicações sobre os fenômenos econômicos que deixaram
a maioria
dos “especialistas” gaguejando. A importância das contri
buições
econômicas de Mises para as discussões atuais tendem a nos
fazer negligenciar
suas contribuições como
teórico social e
filósofo
político.
Seu livro Liberalismoajuda a retificar esse descuido.
O
liberalismo que Mises descreve nesse livro não é, obviamente,
o
“liberalismo” do qual se fala hoje em dia, mas sim o liberalismo
clássico, que
é como o
termo continua a
ser conhecido na
Europa.
O
liberalismo clássico defende a liberdade individual, a propriedade
privada, o
livre comércio e a paz — os princípios fundamentais dos
quais todo o
resto do programa liberal pode ser deduzido.
Não seria
nenhum insulto a Mises descrever sua defesa do liberalis
mo como
parcimoniosa, no sentido de que, seguindo a lógica da nava
lha de
Occam, ele não emprega em sua defesa nenhum conceito que não
seja
estritamente necessário ao seu argumento. Sendo assim, Mises não
faz nenhuma
referência aos direitos naturais, por exemplo, um conceito
que possui
um papel central em tantas outras exposições do liberalis
mo. Ele
enfoca principalmente a necessidade de uma cooperação social
de larga
escala. Essa cooperação social — por meio da qual complexas
cadeias de
produção geram um aprimoramento do padrão de vida de
todos — pode
ser criada somente por um sistema econômico baseado
na
propriedade privada. A propriedade privada dos meios de produ
ção, em
conjunto com a progressiva ampliação da divisão do trabalho,
ajudou a
libertar a humanidade das horríveis aflições que antigamente
devastavam a
raça humana: doenças, pobreza opressiva, taxas pavoro
sas de
mortalidade infantil, miséria e imundícies generalizadas, e uma
radical
insegurança econômica, com pessoas frequentemente vivendo a
apenas uma
colheita ruim da completa inanição.
Até o
momento em que a economia de mercado surgiu para ilus
trar a
criação de riqueza possibilitada pela divisão do trabalho, era
tido como
certo que essas características grotescas das condições de
vida do
homem eram imposições irreversíveis de uma natureza fria e
impiedosa,
sem possibilidades de ser substancialmente aliviada, mui
to menos
subjugada inteiramente, pelo esforço humano.
Os
estudantes foram ensinados, por várias gerações, a pensar na pro
priedade
como sendo uma palavra suja, a exata materialização da avare
za. Mises
não tolera tal concepção. “Se há algo que a história pode pro
var em
relação a essa questão, é que em nenhum lugar e em nenhuma
época já
houve algum povo que, sem a propriedade privada, tenha me
lhorado seu
padrão de vida para além da mais opressiva penúria e sel
vageria, uma
situação dificilmente distinguível da existência animal.”
A cooperação
social, Mises demonstrou, é impossível na ausência de
propriedade
privada, e quaisquer tentativas de restringir o direito de
propriedade
irão solapar a coluna central da civilização moderna.
De fato,
Mises ancora firmemente o liberalismo na propriedade pri
vada. Ele
estava perfeitamente cônscio de que defender a propriedade
significa
atrair a acusação de que o liberalismo é meramente uma apo
logia velada
ao capital. “Os inimigos do liberalismo o rotularam como
a ideologia
que defende os interesses especiais dos capitalistas”, obser
vou
Mises. “Isso é típico da mentalidade
deles. Eles simplesmente
não
conseguem entender uma ideologia política. Para eles, qualquer
ideologia
que não seja a deles representa a defesa de certos privilégios
especiais em
detrimento do bem-estar
geral.” Mises mostra
em seu
livro, e em
todo o restante de sua obra, que o sistema de propriedade
privada dos
meios de produção resulta em benefícios não apenas para
os donos
diretos do capital, mas também para toda a sociedade.
Na
realidade, não há nenhum motivo em particular para que as
pessoas em
posse de grandes riquezas sejam a favor do sistema libe
ral de livre
concorrência, em que um esforço contínuo deve ser feito
para se
estar sempre atendendo aos desejos dos consumidores — caso
contrário,
essa riqueza será reduzida gradualmente. Aqueles que pos
suem grande
riqueza, especialmente os que herdaram
essa riqueza,
podem com
efeito preferir um sistema intervencionista, o qual tem
maior
propensão a manter congelados os padrões de riqueza existen
tes. Não é
de se estranhar, por exemplo, que as revistas de negócios
dos EUA,
durante a Era Progressiva (1890-1920), estivessem repletas
de apelos
pela substituição do laissez-faire, um sistema em que os lu
cros não
estão protegidos, por um arranjo de cartéis sancionados pelo
governo e
por vários outros esquemas de conluio.
Naturalmente,
dada a ênfase de Mises na importância da divisão
do trabalho
na manutenção e no progresso da civilização, ele é parti
cularmente
franco em relação aos males das guerras, as quais, além de
seus danos
físicos e humanos, geram um progressivo empobrecimen
to da
humanidade em decorrência de seu radical rompimento da har
moniosa
estrutura de produção que abrange todo o globo. Mises, que
raramente
mede as palavras, mas cuja prosa é geralmente elegante e
comedida,
fala com indignação e revolta quando o assunto passa a ser
o
imperialismo europeu, uma causa da qual ele não admite qualquer
argumento a
favor. Assim como seu pupilo, Murray Rothbard, iria
mais tarde
identificar guerra e paz como a questão fundamental de
todo o
programa liberal, Mises da mesma forma insiste em dizer que
essas
questões não podem ser negligenciadas — como elas frequente
mente são
por liberais clássicos atuais — em prol de questões políticas
mais inócuas
e menos delicadas.
A principal
ferramenta do liberalismo, afirmou Mises, era a razão.
Isso não
significa que Mises achava que todo o programa liberal deve
ria ser
realizado por meio de tratados acadêmicos densos e elaborados.
Ele admirava
consideravelmente aqueles que transmitiam essas ideias
nos palcos
de teatro, nas telas de cinema e no mundo dos livros de
ficção.
Porém, é extremamente importante que a defesa do libera
lismo
permaneça arraigada em argumentos racionais, uma fundação
muito mais
sólida do que o instável irracionalismo da emoção e da
histeria, os
quais outras ideologias utilizam para agitar as massas. “O
liberalismo
não tem nada a ver com tudo isso”, insistia Mises. “Não
tem flores
nem cores, não tem música nem ídolos, não tem símbolos
e nem
slogans. Ele tem a substância e os argumentos. Ambos devem
levá-lo ao
triunfo.”
Atualmente,
estamos vivendo em um momento perigoso da his
tória. Com
várias crises fiscais ocorrendo ao redor do mundo — e as
consequentes
escolhas difíceis que elas impõem — e ameaçando uma
onda de
agitação civil por toda a Europa, as promessas impossíveis
feitas por
estados assistencialistas, hoje
completamente quebrados,
estão se
tornando crescentemente óbvias. Como argumentou Mises,
não há
nenhum substituto para a economia livre que seja estável no
longo prazo.
O intervencionismo, mesmo em prol de uma causa tão
ostensivamente
positiva quanto o bem-estar social, cria mais proble
mas do que
soluções, levando assim a ainda mais intervencionismos,
até que o sistema
esteja inteiramente socializado — isso se o colapso
não ocorrer
antes.
A posição de
Mises é contrária à daqueles que afirmavam que o
mercado era
de fato um lugar de rivalidade e discórdia, em que os
ganhos de
uns implicavam perdas para outros. Podemos pensar, por
exemplo, em
David Ricardo e em sua alegação de que salários e lucros
se movem
necessariamente em direções
opostas. Thomas Malthus
alertou para
uma catástrofe populacional, a qual implicava um con
flito entre
alguns indivíduos (aqueles já nascidos) e outros (no caso,
o suposto
excesso que viria
depois). E depois,
é claro, veio
toda a
tradição mercantilista, a
qual via o
comércio e as
relações de troca
como um tipo
de combate de baixa intensidade que produzia um gru
po definido
de vencedores e de perdedores. Karl Marx apresentou
uma clássica
declaração de que há um inerente antagonismo de clas
ses no
mercado em seu O Manifesto Comunista. Ainda mais velho que
todas essas
figuras era Michel de Montaigne (1533-1592), que em seu
ensaio “O
Fardo de um Homem é o Benefício de Outro” argumentou
que “todo e
qualquer lucro só pode ser feito em detrimento de outro”.
Mises mais
tarde veio a rotular essa ideia de “a falácia de Montaigne”.
Para o bem
da própria civilização, Mises nos exortou a descartar os
mitos
mercantilistas que opõem a prosperidade de um povo à prospe
ridade de
outro, os mitos socialistas que descrevem as várias classes
sociais como
inimigas mortais, e os mitos intervencionistas que di-
zem que a
prosperidade só pode ser alcançada por meio da pilhagem
mútua dos
cidadãos. No lugar
dessas ideias juvenis
e destrutivas,
Mises
forneceu um convincente argumento em prol do liberalismo
clássico, o
qual vê “harmonias econômicas” — pegando emprestada
a formulação
de Frédéric Bastiat — onde outros veem antagonismos
e
discórdias. O liberalismo clássico, tão habilmente defendido por
Mises, não
busca dar a ninguém nenhuma vantagem obtida coerci
vamente, e
exatamente por essa razão ele gera os mais satisfatórios
resultados
de longo prazo para todos.
Thomas Woods
Ludwig von Mises Institute
Julho de
2010
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