Esta conversa
se encontra no http://tzal.org/conversa-sobre-sectarismos-e-conceptualizacao/
Posso recomendar
bastante esse site que é mantido por uma pessoa muito estudiosa do budismo e
com grande erudição em vários assuntos. Para mais detalhes novamente recomendo
ir diretamente ao site. Peço perdão ao autor por publicá-la aqui na íntegra sem
avisar, mas trata-se de uma parte importantíssima dos textos que compõem a
minha pesquisa sobre o tema. Tema este que apresentarei minha posição bem como
a posição das escolas que faço parte ao final da apresentação dos textos
selecionados.
CONVERSA
SOBRE SECTARISMOS E CONCEPTUALIZAÇÃO
Recebi
por e-mail o seguinte questionamento: Se se pensar que todas as deidades de
meditação emanam do Buda Primordial (Tathagatagarbha, Samanthabhadra,
Vajradhara etc. de acordo com leituras e escolas), temos aqui um
"emanacionismo técnico" muito equivalente ao modo Vedanta de enxergar
a função das deidades de meditação (Ishta-devata) no Tantrismo Indiano. Isso
nem é politeísmo hindu, mas "emanacionismo": todas as deidades
entendidas como "emanação de Um Primeiro"; algo muito menos distante
da noção de Ventre de Buda, ou Natureza Original (ou Buda Primordial)
subjacente à mente do que comumente se admite. Assim sendo, soa-me
perfeitamente clara a colocação de Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche sobre
"hindus sofisticados lerem o não teísmo do Vajrayana como teísmo".
Assim como, sofisticadamente, poderíamos ler, sob o ângulo Vedanta, o
politeísmo hindu como meramente "instrumental" (sim: upaya). De fato,
um emanacionismo técnico, para fins instrumentais, de acordo com a natureza
egóica/ "tonus de personalidade" de cada devoto-praticante. Se o
"locus" budista desse emanacionismo é a Mente Original, como por
exemplo uma "natureza prístina não maculável", subjacente a toda
ilusão, ou se cada deidade é promanada de um "Atman (fundamentalmente
Suprapessoal, porque Atman-Brahman!) entretecido ao carma-no-seio-de-Maya",
todas essas denominações seriam apenas interdependência e samsara, resguardadas
as sutilezas epistêmicas em cada uma das escolas? Primeiro vamos separar
tathagatagarbha de Samtabhadra-Vajradhara. O tathagatagarbha é a "essência
do tathagata", isto é, a essência do Buda, a natureza de Buda.
Samantabhadra e Vajradhara são budas especificos, algumas vezes ditos
"Budas primordiais" — mas mesmo essa expressão "Adi-Buddha"
é peculiar de algumas tradições budistas e não aceita por todas. É possível
pensá-los como uma coisa só, mas as ideias ocorrem em contextos diferentes. A
importante diferença entre hinduísmo e budismo realmente não é upaya, em upaya
se partilha muita coisa — um (mau) praticante do theravada, algumas vezes, pode
chamar o vajrayana de "aquele 'budismo' sujo de hinduísmo", ou mesmo
dizer que não é budismo é só hinduísmo. — Na verdade, mesmo entre as escolas
vajrayana, quando uma vai acusar a outra, algumas vezes eles podem dizer
acusadoramente "aqueles lá são é shivaístas". E no dzogchen, Longchen
Rabjam diz que tudo que se realiza sem dzogchen é realizável até mesmo pelos
samkhyas (hindus, curiosamente anacrônicos, porque eles só permanecem
textualmente nas discussões tibetanas, muito depois de serem tão comuns na
Índia, pelo menos como autoidentificados). Quando a acusação não é de
hinduísmo, a acusação é, exatamente de eternalismo. Então muito cuidado é tido
nos textos que usam a terminologia "tathagatagarbha" para não cair na
ideia de que isso é um atman, uma coisa que "realmente exista".
Quando o termo é usado de forma a lembrar uma ideia eternalista, nessa mesma
medida surgem acusações. Dzongsar Khyentse Rinpoche diz que a própria
cittamatra teria difículdade de lidar com certos pontos da argumentação hindu.
Há certos pontos de debate que, segundo Rinpoche, apenas a madhyamaka poderia
vencer. Ainda assim, creio que a distinção da madhyamaka entre prasangika e
svatantrika, por exemplo, que é um debate essencialmente epistêmico, é um
debate apenas entre budistas — nenhum hindu parece ter penetrado esse nível do
debate — mas isso ainda pode vir a acontecer, é claro. Então é preciso deixar
bem claro que há diferenças (grandes) em nível prático e filosófico quanto a
postulação de uma realidade independente ou um atman e a vacuidade (ainda que
expressiva, luminosa, viva) do budismo. Quando alguém fica animado com a ideia
de que, sim, há "alguma coisa", esquece que "forma é vazio e
vazio é forma", isto é, o budismo nunca negou a expressão da vacuidade —
agora compatibilizar isso com as várias ideias de Deus é mais temeroso. Quando
parece chegar perto, geralmente a acusação (de todas as outras escolas
budistas) é de que aquele professor ou escola caíram numa visão eternalista. A
maioria das escolas budistas no tibete, e portanto a maioria das escolas tântricas
do budismo (há algumas no Japão e em outros países, mas é bem menos intenso, e
filosoficamente com consideravelmente menos produção intelectual) assume para
si a visão madhyamaka prasangika. As escolas se cutucam dizendo "o que
você diz ser prasangika é svatantrica (inferior)", então há disputas nesse
nível. A escola nyingma também diz estar de acordo com a madhyamaka prasangika,
mas SS o Dalai Lama diz que os textos de prática algumas vezes tem uma
"estética" cittamatra-yogachara. Isto é, usam terminologia que, na
superfície, pode levar a reificação da mente, e assim, reificação de
tataghatagarbha, reificação do Buda Primordial etc. mas os lamas muito
veementemente fogem de uma conexão com reificação da mente/essência/natureza de
Buda. Em outras palavras, não são esses hindus mais gerais, que proclamam
atman, que causariam dificuldade para um budista nesse nível de debate. O
advaita-vedanta sim, segundo DJKR, provavelmente venceria a cittamatra e
estaria no nível de debate da madhyamaka. Mas... possivelmente não há a
distinção sutil prasanga-svatantrika — isto é, como afirmei antes, esse nível
de debate está ainda restrito ao budismo. E a prasanga parece simplesmente
simplesmente se recusar a propor até mesmo uma asserção negativa, quanto mais
positiva. Isto é, eles não dizem nem mesmo que "algo" não exista,
muito menos que esse algo de alguma forma substancioso exista. O importante é
não reificar os Budas, isto é, eles só surgem como projeções dos méritos das
pessoas, não há um Buda que exista por si só, independentemente, que tenha
precedência temporal, que seja criador, que seja a fonte de tudo etc. A não ser
meramente como upaya, mas upaya é o mesmo que usar o bicho-papão para assustar
uma criança que se comporta mal — você usa a ignorância do outro em proveito
dele. Upaya é o modo da sabedoria projetar ignorância, até mesmo em conceitos
errôneos que podem ser adventiciamente benéficos. Todo o vajrayana é montado
dessa forma, as pessoas tem superstições e ideias religiosas absurdas: porque
lutar com isso? Os lamas na compaixão deles usam nossa ignorância a nosso
proveito: pode ser que daí surjam termos como "Buda primordial" — e,
na verdade, tudo que é passível de ser expresso, no budismo, tem uma raiz de
ignorância. A noção de tempo sem princípio, acausal, já quebra essa noção de
"primordial". Ele é um Buda (como todos) além do tempo, ele não é o
Buda que estava lá, sozinho, no "início". A própria noção de
"início" requer ignorância. Porém é bom lembrar que a prasangika é a
forma superior entre todas no uso da linguagem, e a terminologia de
tathagatagarbha, alayavijnana etc., são terminologias essencialmente
cittamatra-yogachara. Não estou dizendo que esta terminologia esteja errada: a
prasanga, e a madhyamika de forma geral, não tem problema com essas palavras e
coisas. A prasanga não chega nem mesmo a negar, porque isso seria reificar
demais essa terminologia, mas é radical em expor a não reificação de nenhum
darma (reificação de que os hindus são geralmente acusados). E há escolas que
dizem que, enquanto que para o debate a prasangika é superior, para a própria
prática e conduta budista, a visão yogachara é superior. Compreendo
perfeitamente o contexto em que você coloca a questão: um contexto de estrito
debate entre escolas budistas de lógica e epistemologia budistas e suas
nomenclaturas. Correto. Ocorre que minha "simplificação" vem de um
background de apreciar teses neoplatônicas cristãs (Duns Scotus, Escoto
Erígena, Pseudo-Dionísio Areopagita) e representantes de uma teologia apofática
(Nicolau de Cusa, Meister Eckhart) superando a aparente tensão entre ambas as
leituras e nomenclaturas na minha própria "maneira idiossincrática"
de perceber o escopo da discussão. Isso depois de vencer o "terror"
provocado por leituras do Antigo Testamento desde os quatro anos de idade, e
tentar conciliar Jesus com Jeová (o que me tornou anti-clerical, mas não
anti-religioso). Da mesma forma que entendo Ramanuja, Ramananda, Kabir, e o
casal Sarada Devi e Sri Ramakrishna como se valendo de misticismos devocionais
"instrumentalmente". Não discuto aqui os possíveis graus de liberação
dessas pessoas, mas não as coloco como "pessoas mundanas". Entendo
essa instrumentalidade (que faz Kabir ser amado por hindus e muçulmanos, e
Ramakrishna ter familiaridade com ambos e com a devoção cristã) como entendo
que a escola jônica dos pré-socráticos só pôde ser uma escola, e não uma
"corrente de dissidentes de cada discípulo em reação ao tutor",
portanto uma "não escola", porque o "elemento primordial"
alegadamente buscado não foi mais do que uma tentativa metafórica de definir o
tal elemento-matriz-de-base (metafórico-fisicista, mas menos literalista em seu
fundo e seu fim, do que sua fisicalidade formal-aparente: aliás,
metáfora-fisicalista que o conceito de "ápeiron" problematiza, ou
"sutiliza", em grande medida). Indo ainda mais longe, coloco o Ser de
Parmênides e o Fogo-Devir de Heráclito como face e contraface de uma mesma
moeda. Verso e avesso de uma mesmíssima intuição, em sua aparente dicotomia
irreconciliável. Nem a mesma (formalmente), nem outra, nem não a mesma, nem não
só a mesma. E acho que, nas discussões escolásticas inter-escolas budistas,
pode-se afiar o gume do intelecto, ou pode-se perder algo mais importante. Como
escalonar Arhats no theravada e bodisatvas nas escolas mahayana (acho o uso do
termo "hinayana", mais do que meramente técnico, desnecessariamente
pejorativo), perdendo-se de vista a singularidade de um Maha Ghosananda, por
exemplo (entre tantos theravadas extremamente compassivos, e nada "egoístas"
em sua busca). 1) dificilmente uma pessoa será capaz de praticar até o fim um
único método, que dizer então de comparar vários; 2) o termo hinayana é
pejorativo, mas é de uso tradicional desde o início do mahayana, e se torna uma
boa fonte de exame da própria prática, e nesse sentido e contexto, pode (e
deve) ser usado. (Veja que eu não usei o termo hinayana, não sei porque você o
trouxe para cá); 3) a classificação de siddhantas (escolas de pensamento) é o
cerne da atividade intelectual budista — você não precisa necessariamente falar
em grupos de pessoas, mas com certeza rotular e comparar grupos de ideias é por
excelência a atividade discursiva na academia (mosteiro) budista.
Inevitavelmente grupos serão identificados com determinados pensamentos e nomes
de grupos e assim por diante, mas isso é secundário. O que o praticante faz ao
estudar os grupos de ideias é afiar o seu próprio debate compassivo, isto é,
depurar os próprios juizos, porque é muito fácil uma pessoa que, por exemplo,
veja mérito no mahayana e aspire praticar os ideais do mahayana recair em
motivação hinayana — e o mais provável é que a pessoa desenvolva várias visões
errôneas ou pelo menos incompletas quanto a vacuidade, e assim uma refutação
completa de todas as visões desse tipo redunda necessariamente no entendimento
intelectual da vacuidade. E esse é um método didático tradicional; 4) é preciso
reconhecer a diferença entre siddhanta (cittamatra, madhyamaka), veículo
(yanas) e tradição (theravada, zen, budismo tibetano) — é perfeitamente
adequado comparar siddhantas (mesmo quando eventualmente uma tradição já morta
efetivamente existiu com aquele nome — a prasangika nunca existiu como escola,
por exemplo), e a ideia de veículo é essencialmente comparativa. Já tradições é
eventualmente sectário comparar (hierarquicamente); 5) quanto aos místicos
cristãos, ótimo que você gosta deles. Acho que a erudição pode ter certo
mérito, e já ouvi gente comparando esses "hereges" com dzogchen e
sabe-se lá mais o que. Por outro lado, do ponto de vista do dzogchen e até
diria do budismo em geral, sem um guru a pessoa não vai muito longe — e acho
difícil você encontrar um guru vivo da linhagem de Escoto Erígena. Já um guru
dzogchen, felizmente, existem linhagens preservadas. Em geral o conhecimento de
textos de outras tradições não necessariamente vai ajudar o progresso na
prática — na verdade nem mesmo dos textos budistas, se eles não forem
prescritos por um guru — isso se estamos falando de dzogchen. O mesmo se
aplica, até certo ponto, ao zen. Tendo dito isso, já vi alguns desses nomes
citados por você sendo louvados por professores dzogchen; 6) a compaixão está
presente no hinayana, o que não está presente no hinayana é a bodicita. Existe
uma diferença marcante entre as duas coisas. Eventualmente, como qualquer um tem
o potencial para desenvolver bodicita, pode haver bodisatvas mahayanistas
ocultos em outras tradições, inclusive no theravada (que não possui o conceito
de bodicita) ou no cristianismo (que não possui o conceito de iluminação). Sei
que isso pode parecer "devorar" a tradição por trás, mas é assim que
o mahayana descreve a ação dos bodisatvas. Não existe, porém, registro textual
de bodicita no theravada (ou no cânone que normalmente é associado ao
hinayana), e não existe o conceito, isto é, ele não é ensinado. A diferença
entre o mahayana e o hinayana é uma espécie de coragem baseada nesse conceito,
e o theravada claramente diz que não possui essa coragem ("não podemos
ajudar a todos até a iluminação, então sigo para o nirvana e dou meu exemplo a
partir disso: foi o que o Buda ensinou", o que não é a atitude do
bodisatva mahayanista, que ironicamente concorda que o Buda realmente ensinou
também dessa forma). Já discuti isso extensamente com praticantes do theravada.
E a confusão é comum: a diferença entre mahayana e theravada não é compaixão. É
óbvio que o theravada, e os praticantes theravada, têm muita compaixão. Só não
tem bodicita, pelo menos não textualmente e enquanto ensinamento — e certamente
não como ideia comum e generalizada, embora provavelmente essas pessoas
conheçam o conceito de seus estudos paralelos do mahayana. Mas não sei porque
você entrou nessa discussão, uma vez que eu não mencionei o hinayana — eu
mencionei uma atitude comum dos praticantes theravada, uma informação
"anedotal", que diz respeito a como se dá o debate no budismo. Isto
é, é preciso entender que existe uma diferença clara entre darma do Buda e o
que não é darma do Buda, e todas as escolas possuem critérios para dizer
"isso entra" ou "isso não entra" — por mais que a
tolerância religiosa seja pregada e se veja benefício em algumas doutrinas que
não entram exatamente sob o escopo de darma do Buda; 7) quanto aos praticantes,
o que importa é se há coerência, isto é, não haja energia dispersa no que se
segue. Se a pessoa tem confiança num guru hindu, ela deve seguir essas
instruções de forma pura, só misturando aquilo que eventualmente o guru
autorize. E é claro que, se a pessoa segue o guru, é porque acredita na
realização dele. Que haja realização fora do budismo é evidente: mesmo sem
considerar a possibilidade de realização fora do budismo (que é duvidosa do
ponto de vista da maioria dos textos budistas), muitos budistas (eu já vi)
fazem até o voto de entrar disfarçados em outras tradições para beneficiar
pessoas ali dentro — sem que para si tomem como verdadeiras aquelas doutrinas.
Então, sabe-se lá. A pessoa tem uma a interdependência particular com alguns
professores. O que importa é coerência, sem energia dispersa, no que se
pratica; 8) Quanto aos conceitos, a maioria das pessoas sabe um vasto arcabouço
de termos místicos sem ter as experiências correspondentes. É como um cego de
nascença perguntando "o verde é parecido com o vermelho, né"? Claro
que são cores, e nesse sentido, há identidade. Mas o que há de importante nos
conceitos é a diferença — daí a sinalização de trânsito usar cores, etc. No
entanto muitas vezes as pessoas simplesmente batem um liquidificador de
conceitos de várias tradições (acuso você disso), e provavelmente (no meu caso,
como não tenho fé em que você possua alguma realização, o que até poderia ser,
mas não se apresenta dessa forma para mim) simplesmente dizem que x = y sem
saber o que é x ou o que é y — sendo que a igualdade ou diferença de algo só
poderão ser estabelecidas com o conhecimento (direto e intelectualmente
profundo) de ambas as coisas. E, em geral... as pessoas não realizam nem x, nem
y. A maioria das pessoas não tem realizações espirituais, se é que posso
lembrá-lo disso (um dos motivos para compaixão e bodicita serem valores tão
importantes);
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