Do livro PSICOTERAPIA ORTODOXA
Hieroteos Vlacos,
Metropolita de Naupactos
(Outra transliteração: Hierotheos Vlachos,
Metropolita de Nafpaktos)
(manual de espiritualidade ortodoxa)
Tradução: Tito Kehl
Capítulo I
CINCO PALAVRAS FUNDAMENTAIS
Antes de iniciarmos este estudo, é preciso absorver
alguns termos gregos cuja tradução nunca revela
exatamente o seu sentido original. O primeiro destes
termos é nous (mente, não cérebro), palavra que se refere
ao “olho do coração”, que costuma ser traduzida como
mente ou intelecto e que dá origem ao adjetivo “noético”.
Outras duas palavras, praxis (ação) e theoria (visão),
referem-se, nos escritos patrísticos dum modo geral, à
prática ascética e à visão de Deus, respetivamente. Nepsis
indica, a um tempo, a sobriedade e a vigilância,
características da vida dos santos Padres, e costuma ser
traduzida apenas como “vigilância”, o que a faz perder o seu
segundo, mas não menos importante, sentido, referente à
“sobriedade”. Finalmente, hesiquia significa repouso, paz, a
Paz de Cristo, que não é a paz do mundo, mas sim a paz na
presença de Deus.
1. A Ortodoxia como uma ciência terapêutica
Muitas interpretações do Cristianismo foram
formuladas e muitas respostas foram dadas às questões: o
que é o Cristianismo e qual a sua missão no mundo? Muitas
dessas respostas não são verdadeiras. A seguir, tentaremos
demonstrar que o Cristianismo, em especial a Ortodoxia,
consiste numa terapia. Tentaremos descrever esta terapia
e o modo como ela deve ser adquirida.
1.1. O que é o Cristianismo
Muitas pessoas, que interpretam o caráter do
Cristianismo, vêem-no como uma das numerosas filosofias
e religiões conhecidas desde a Antiguidade. Certamente, o
11
Cristianismo não é uma filosofia, no sentido que prevalece
hoje. A filosofia estabelece um sistema de pensamento que,
na maior parte das vezes, não traz, em si, relação alguma
com a vida. A principal diferença entre o Cristianismo e a
filosofia é que esta última consiste num pensamento
humano, enquanto o primeiro é uma revelação de Deus.
Não foi uma descoberta do homem, mas sim uma revelação
do próprio Deus ao homem. Teria sido impossível à lógica
humana encontrar as verdades do Cristianismo. Na medida
em que a palavra humana revelou-se impotente, surgiu o
Verbo divino-humano, Cristo, o Deus-Homem, o Verbo de
Deus. Essa revelação divina foi formulada nos termos
filosóficos do seu tempo, mas, repetimos, é preciso
enfatizar que não se trata duma filosofia. Apenas a
“roupagem” do Verbo divino-humano foi tomada da
filosofia do seu tempo.
São João Crisóstomo, ao interpretar o texto de Isaías
3:1, que diz: “Vede o Senhor, o Senhor dos Exércitos, tirou
a sustentação de Jerusalém e de Judá (...) o homem forte e o
soldado, o juiz e o profeta, o adivinho (...)”, observou: “Ele
parece chamar aqui de adivinho uma pessoa que é capaz de
conjeturar o futuro através duma profunda inteligência e
experiência das coisas. A adivinhação e a profecia são, de
facto, coisas diferentes: o profeta, ao colocar-se de parte,
fala sob a inspiração divina; o adivinho, por sua vez, parte
daquilo que já aconteceu, coloca a sua própria inteligência
a trabalhar e prevê muitos eventos futuros, como o faria
uma pessoa inteligente. Mas a diferença entre eles é
grande: é a distância que separa a inteligência humana da
graça divina”. Portanto, a especulação (ou filosofia) é uma
coisa, enquanto a profecia ou a palavra do profeta, ao
teologizar, é outra. A primeira consiste numa atividade
humana enquanto esta última é a revelação do Espírito
Santo.
12
Nos escritos patrísticos e, especialmente, nos
ensinamentos de São Máximo, a filosofia é apontada no
início da vida espiritual. Ele utilizou, porém, o termo
“filosofia prática” para significar a limpeza do coração das
suas paixões, que é, de facto, o primeiro estágio para a
jornada da alma em direção a Deus.
O Cristianismo não pode ser visto, também, como uma
religião; pelo menos não como a religião que se apresenta
hoje em dia, na qual, geralmente, Deus é visto a habitar nos
céus e a dirigir a história humana desde lá. Ele seria
extremamente detalhista, sempre a buscar a satisfação do
homem, que teria caído na terra devido à sua fraqueza e
enfermidade. Existiria, assim, um muro, que separaria Deus
do homem. Este muro teria que ser suplantado pelo homem
e a religião proveria um auxílio efetivo nessa tarefa. Vários
ritos religiosos seriam, assim, empregados com esse
propósito.
De acordo com outro ponto de vista, o homem sente-se
impotente perante o universo e necessita dum Deus
poderoso para ajudá-lo na sua fraqueza. Sob esta
perspetiva, Deus não criou o homem, mas este criou o seu
Deus. Mais uma vez, a religião é concebida como um
relacionamento do homem com um Deus absoluto, como
um relacionamento do tipo “eu e o Outro absoluto”.
Novamente, muitos veem a religião como um meio através
do qual as pessoas iludem-se ao transferir as suas
esperanças para a vida futura. Desta maneira, forças
poderosas estariam a pressionar o povo por intermédio da
religião.
Mas o Cristianismo é algo que vai muito além dessas
interpretações e teorias. Ele não pode ser contido dentro
das conceções usuais e da definição de religião fornecida
pelas religiões “naturais”. Deus não é o Outro absoluto, mas
uma Pessoa viva, que está numa comunicação orgânica com
13
o homem. Mais do que isso, o Cristianismo não transfere,
simplesmente, o problema para o futuro, nem espera as
delícias do reino celeste para depois da história e do final
dos tempos. No Cristianismo, o futuro é vivido no presente
e o reino de Deus começa nesta vida. De acordo com a
interpretação patrística, o reino de Deus é a graça do Deus
Triúno, é a visão da Luz incriada.
Nós, ortodoxos, não estamos à espera do fim da
história ou do fim dos tempos, mas, através da nossa vida
em Cristo, vamos ao encontro do fim da história e deste
modo de viver a vida, que se espera para depois da Sua
Segunda Vinda. São Simeão, o Novo Teólogo, disse-nos que,
aquele que viu a luz incriada e uniu-se a Deus, não está mais
à espera da Segunda Vinda do Senhor, mas vive-a. Assim é
que o eterno nos abraça e nos envolve a cada momento.
Desta forma, o passado, o presente e o futuro são vividos,
essencialmente, numa unidade inquebrantável. É o que se
chama de “tempo condensado”.
Portanto, a Ortodoxia não pode ser caracterizada como
o “ópio do povo”, precisamente porque não adia o
problema. Ela oferece a vida, transforma a vida biológica,
santifica e transforma as sociedades. Onde a Ortodoxia é
vivida, do modo correto e no Espírito Santo, existe a
comunhão entre Deus e o homem, entre o celeste e o
terreno, entre o vivo e o que está morto. Nessa comunhão,
todos os problemas que se apresentam na nossa vida são,
verdadeiramente, resolvidos.
É claro que, uma vez que a comunidade da Igreja inclui
pessoas doentes e iniciantes na vida espiritual, podemos
esperar que algumas dessas pessoas entendam o
Cristianismo como uma religião, no sentido a que nos
referimos anteriormente. Acima de tudo, a vida espiritual é
uma viagem dinâmica. Ela começa com o Batismo, com a
purificação da “imagem” e continua através da vida
14
ascética, que objetiva alcançar a “semelhança”, que consiste
na comunhão com Deus. De qualquer modo, deve ficar
esclarecido que, mesmo quando falamos do Cristianismo
como uma religião, devemos fazê-lo apenas a partir
dalguns pressupostos.
O primeiro deles é que o Cristianismo é,
principalmente, uma Igreja e esta significa o Corpo de
Cristo. Existem muitas passagens, no Novo Testamento, em
que o Cristianismo é chamado de Igreja. Vamos citar
apenas as palavras de Cristo a esse respeito: “(...) Tu és
Pedro e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja (...)[6]”,
as palavras do Apóstolo Paulo aos Colossenses: “É Ele a
cabeça do Corpo, que é a Igreja.[7]” e ao seu discípulo
Timóteo: “(...) Quero que saibas como deves proceder na
casa de Deus, esta Igreja do Deus vivo, coluna e
sustentáculo da verdade.[8]” Isso significa que Cristo não
mora, simplesmente, nos céus e que dirige, desde lá, a
história e a vida dos homens, mas sim que ele está unido a
nós. Ele assumiu a natureza humana e deificou-a. Assim, em
Cristo, a natureza deificada do homem encontra-se à direita
do Pai. Cristo é a nossa vida e nós somos os “membros de
Cristo”.
O segundo pressuposto é que o objetivo do
Cristianismo é o de alcançar o abençoado estado de
deificação. A deificação é idêntica à “semelhança”, ou seja,
consiste em ser como Deus. É claro que, para atingir a
semelhança, para alcançar a visão de Deus, e para que esta
visão não se transforme num fogo devorador, mas numa luz
vivificante, é preciso que seja feita, primeiramente, uma
purificação. Esta purificação e a cura constituem-se no
trabalho da Igreja. Quando o cristão participa do culto sem
ter experimentado essa purificação vivificadora –
principalmente dos atos de adoração que objetivam a
purificação do homem – ele não está, realmente, a viver no
seio da Igreja. O Cristianismo sem a purificação é uma
15
utopia. Assim, só podemos falar em religião, na medida em
que estivermos a ser purificados, a buscar a nossa cura. Isso
concorda com as palavras do irmão do Senhor, Tiago: “Se
alguém considera-se uma pessoa piedosa, mas não refreia
a sua língua, enganando assim o seu coração, a sua religião
é vazia. A religião pura e sem mácula diante daquele que é
Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas
tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo”[9].
Essa abstinência permite-nos afirmar que o
Cristianismo não é nem uma filosofia, nem uma religião
“natural”, mas, principalmente, uma cura. É a cura das
paixões da pessoa, de modo a que ela possa alcançar a
comunhão e a união com Deus.
Na parábola do Bom Samaritano, o Senhor mostrou-
nos muitas verdades. Assim que o samaritano viu o homem
que caiu nas mãos dos bandidos que o feriram e o deixaram
à morte “(...) chegou ao pé dele e, ao vê-lo, encheu-se de
compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando
nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria
montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele[10]”.
Cristo tratou do homem ferido e levou-o até a hospedaria,
o hospital, que é a Igreja. Aqui, Cristo é apresentado como
o médico, que cura a enfermidade do homem, e a Igreja é
mostrada como um hospital.
É bem característico que, ao analisar essa parábola,
São João Crisóstomo tenha apresentado as verdades que
acabamos de enfatizar. O homem proveio “dum estado
celestial para o estado de ilusão demoníaca e ele sente-se
no meio de ladrões, ou seja, em meio ao diabo e aos seus
poderes hostis”. As feridas que ele apresenta são os seus
inúmeros pecados. Como disse David: “as minhas feridas
estão sujas e infetadas devido à minha loucura[11]”. Pois
“todo o pecado causa ferimentos e hematomas”. O
samaritano é o próprio Cristo, que desceu dos céus à terra
16
para salvar os homens feridos. Ele emprega o vinho e o
azeite nas feridas. Isso equivale a dizer que, “ao misturar o
Espírito Santo ao Seu sangue, Ele trouxe a vida ao homem”.
De acordo com outra interpretação, “o azeite traz a palavra
de conforto, o vinho traz a loção adstringente e a instrução
traz concentração à mente dispersa”. Ele colocou o homem
sobre a sua montaria: “Ao carregar a carne sobre os Seus
ombros divinos, Ele ergueu-a até o Pai nos Céus”. Assim, o
bom samaritano, Cristo, conduziu o homem “até a
maravilhosa e espaçosa hospedaria, a Igreja universal”. Ele
entregou-o ao hospedeiro, que é o Apóstolo Paulo e
“através deste, aos altos sacerdotes, professores e
ministros de cada igreja”, dizendo: “Cuida do povo dos
gentios, que entreguei-te na Igreja. Quando os homens
estiverem doentes, feridos pelo pecado, cura-os, colocando
sobre as suas feridas um emplastro, ou seja, as palavras
proféticas e os ensinamentos evangélicos, devolvendo-os
incólumes por meio das admoestações e das exortações do
Velho e do Novo Testamentos”. Assim, de acordo com São
João Crisóstomo, Paulo é aquele que sustenta as igrejas de
Deus “e cura os homens por meio das admoestações
espirituais, distribuindo o pão da oferenda para cada qual”.
Na interpretação de São João Crisóstomo, fica,
claramente, evidente que a Igreja é o hospital, que cura
aqueles que estão enfermos pelo pecado, sendo que os
bispos e os padres, tal como o Apóstolo Paulo, são os que
curam o povo de Deus.
Essas verdades também aparecem em muitas outras
passagens do Novo Testamento. O Senhor disse: “Os que
têm saúde não precisam de médico, mas sim os que estão
doentes[12]”. Assim é que Cristo, como um médico dos
corpos e das almas, “curava todo o tipo de enfermidades e
todos os tipos de moléstias entre o povo (...) eles levavam-
Lhes as pessoas doentes que eram afligidas por diferentes
enfermidades e tormentos e também as que estavam
17
possuídas por demónios, e os epiléticos e paralíticos; e a
todas Ele curava[13]”. O Apóstolo Paulo também sabia que
a consciência dos homens, especialmente dos mais simples,
é fraca: “Quando pecas contra os irmãos e feres a sua frágil
consciência, pecas contra Cristo[14]”. O Livro do
Apocalipse diz que João, o Evangelista, viu um rio de água
da vida que procedia do trono de Deus e do Cordeiro. “De
cada lado do rio havia uma árvore da vida (...) e as folhas da
árvore eram para a cura das nações[15]”.
Portanto, o trabalho da Igreja é terapêutico. Ela
procura curar as enfermidades do homem, em especial as
da alma, que muito o atormentam. Esse é o ensinamento
fundamental do Novo Testamento e dos Padres da Igreja.
Na sequência deste capítulo e nos próximos, muitas
passagens dos Padres trarão novamente essa verdade.
Mais uma vez, quero enfatizar que a Igreja é
indispensável. Agradeço ao padre e professor, John
Romanides, por dissertar sobre isso nos seus escritos.
Estou convencido de que ele é muito versado nos Padres
népticos – em particular nos escritos contidos na Filocalía
– e que, realmente, alcançou o sentido real do Cristianismo.
Acredito ser esta a sua maior contribuição. Pois nesta era,
na qual o Cristianismo vem sendo apresentado como uma
filosofia ou como uma teologia cultural, ou ainda como uma
cultura e tradição popular (usos e costumes), ele
apresentou o seu ensinamento a respeito da disciplina
terapêutica e do tratamento.
Concretamente, ele disse: “Proclamar a fé em Cristo
sem se submeter à cura em Cristo é como não ter fé,
absolutamente. É a mesma contradição que encontramos
numa pessoa doente, que tem uma grande confiança no seu
médico, mas que não segue o tratamento que ele
recomenda. Se o Judaísmo e o seu sucessor, o Cristianismo,
tivessem aparecido no século XX pela primeira vez, eles
18
teriam sido caracterizados, não como religiões, mas como
ciências médicas relacionadas com a psiquiatria. Eles
teriam uma larga influência sobre a sociedade devido ao
seu sucesso em curar as doenças duma personalidade que
funciona apenas em parte. O Judaísmo e o Cristianismo não
podem, de maneira alguma, ser colocados como religiões,
que usam diversos métodos mágicos e crenças, no sentido
de prometer um escape dum mundo supostamente
material, mau e cheio de hipocrisia, para um também
suposto mundo de segurança e sucesso”.
Num outro trabalho, o mesmo professor disse: “A
tradição patrística não é nem uma filosofia social, nem um
sistema ético e, menos ainda, um dogmatismo religioso: ela
é um tratamento terapêutico. A esse respeito, lembra, de
perto, a medicina e, em especial, a psiquiatria. A energia
espiritual da alma que ora incessantemente no coração é
um instrumento fisiológico que todos possuem e que
requer ser curado. Nem a psicologia, nem nenhuma das
ciências positivas ou sociais conhecidas, são capazes de
curar esse instrumento. Isso só pode ser feito através dos
ensinamentos népticos e ascéticos dos Padres. Por essa
razão, aqueles que nunca foram curados sequer suspeitam
da existência desse instrumento”.
Assim, na Igreja, dividimo-nos entre aqueles que estão
doentes, os que estão sob tratamento terapêutico e aqueles
– santos – que já foram curados. “Os Padres não
categorizam as pessoas em morais ou imorais, em boas ou
más, com base nas leis morais. Essa divisão é superficial. No
fundo, a humanidade diferencia-se entre os enfermos na
alma, os que estão a ser curados e os que já estão curados.
Todos os que não possuem um estado de iluminação estão
doentes na alma. Não bastam apenas a boa vontade, uma
boa resolução, uma prática moral e uma devoção à
Tradição Ortodoxa para fazer um ortodoxo, mas, sim, a
purificação, a iluminação e a deificação. Esses estágios de
19
cura são o propósito da vida mística da Igreja, da qual os
textos litúrgicos dão-nos testemunho”.
1.2. A Teologia como uma ciência terapêutica
Daquilo que foi dito, fica evidente que o Cristianismo é,
principalmente, uma ciência que cura, vale dizer, um
método psicoterapêutico e um tratamento. O mesmo pode
ser dito da teologia. Ela não é uma filosofia, mas, em
primeiro lugar, um tratamento terapêutico. A teologia
ortodoxa mostra claramente que, dum lado, ela é fruto
duma terapia e, de outro, mostra o caminho dessa terapia.
Noutras palavras, apenas aqueles que foram curados e que
alcançaram a comunhão com Deus são teólogos e somente
estes podem mostrar aos cristãos o verdadeiro caminho
para atingir o “sítio” da cura. Assim, a teologia é, a um
tempo, o fruto e o método da terapia.
Aqui, precisamos estender-nos sobre o que foi dito
para poder ver essas verdades com uma maior clareza.
Citaremos alguns ensinamentos dos Santos Padres
relativos à teologia e aos teólogos. Creio que podemos
começar com São Gregório de Nazianzo, pois não foi por
acaso que a Igreja atribuiu-lhe o título de Teólogo. No
início dos seus famosos textos teológicos, ele escreveu que
teologizar não é para qualquer um, que nem todos podem
falar a respeito de Deus, porque este assunto não é simples
e fácil. Não se trata duma tarefa para todos os homens, “mas
para aqueles que foram examinados, que se tornaram
mestres na visão de Deus e que, previamente, purificaram
as suas almas e os seus corpos ou que, no mínimo, estão a
ser purificados”. Apenas estes, os que passaram da praxis
para a theoria, da purificação para a iluminação, podem
falar a respeito de Deus. E quando isso acontece? “Quando
nos libertamos de toda a contaminação e perturbação e
quando aquele que nos regra não se encontra mais confuso
20
com vexações e imagens errantes e desordenadas”. Então,
advertiu o santo: “Pois é preciso estar verdadeiramente
desembaraçado para conhecer Deus”.
Nilo, o Asceta, ligou a teologia à prece, principalmente
à prece noética. Sabemos bem, a partir dos ensinamentos
dos Santos Padres que, qualquer um que tenha obtido a
graça da prece do coração, penetrou, por isso mesmo, nos
primeiros estágios da visão de Deus, porque esse tipo de
oração é uma forma de theoria. Por isso, todos os que oram
com a mente estão em comunhão com Deus e essa
comunhão constitui o conhecimento espiritual de Deus
para o homem. Foi, por essa razão, que São Nilo afirmou:
“Se fores um teólogo, orarás verdadeiramente. E, ao orares
verdadeiramente, serás um teólogo”.
São João Clímaco introduziu a verdadeira teologia em
muitas passagens do seu tesouro espiritual “A escada”. “A
pureza total é o fundamento da teologia”, disse ele.
“Quando os sentidos do homem estão perfeitamente
unidos com Deus, então, as coisas que Deus fala são, de
algum modo, misteriosamente esclarecidas. Mas onde não
existe esse tipo de união, é extremamente difícil falar a
respeito de Deus”. Ao contrário, o homem que, de facto, não
conhece a Deus fala sobre Ele apenas “em possibilidades”.
Conforme o ensinamento patrístico, é muito ruim opinar
sobre Deus sem fundamento, porque isso leva a pessoa a
iludir-se. O santo sabia como a “teologia dos demónios”
desenvolve-se em nós. Num coração cheio de vanglória,
que não tenha sido previamente purificado pela operação
do Espírito Santo, os demónios impuros “dão-nos lições de
interpretação das Escrituras”. Desse modo, a pessoa, que é
escrava das paixões, não deve “babar a teologia”.
Os Santos receberam “as coisas divinas sem
pensamentos” e, de acordo com os Padres, eles não
teologizaram segundo uma forma de pensamento
21
aristotélica, mas “à maneira dos Apóstolos”, ou seja, através
duma operação do Espírito Santo. Se uma pessoa não foi
previamente lavada das suas paixões, em particular da
fantasia, ela não está capacitada para conversar com Deus
ou para falar a respeito de Deus, uma vez que a mente “que
constrói noções é incapaz de teologizar”. Os Santos vivem
uma teologia “escrita pelo Espírito”.
Encontramos o mesmo ensinamento nos trabalhos de
São Máximo, o Confessor. Quando uma pessoa vive pela
filosofia prática, com o arrependimento e a limpeza das
paixões, “ela avança no entendimento moral”. Ao
experimentar a theoria, “ela progride no conhecimento
espiritual”. No primeiro caso, ela pode discernir entre as
virtudes e os vícios; no segundo, a theoria “conduz o
participante às qualidades interiores das coisas
incorpóreas e corpóreas”. São Máximo afirmou que o
homem “é agraciado com a graça da teologia quando é
levado pelas asas do amor” na theoria e quando, “com a
ajuda do Espírito Santo, ele discerne – tanto quanto é
possível à mente humana – as qualidades de Deus”. A
teologia, o conhecimento de Deus, abre-se para a pessoa
que alcançou a theoria. Noutra parte, o mesmo Padre disse
que uma pessoa que sempre “se concentrou na vida
interior”, torna-se não apenas moderada, resiliente, gentil
e humilde, como também “capaz de contemplar, teologizar
e orar”. Também aqui a teologia está estreitamente
conectada com a theoria e a prece.
Devemos enfatizar que uma teologia que não é o
resultado da purificação, ou seja, da praxis, é demoníaca. De
acordo com São Máximo, o “conhecimento sem a praxis é a
teologia do demónio”. São Talássis, que partilhava do
mesmo ponto de vista, escreveu que, quando a mente do
homem começa com uma simples fé, “ele, eventualmente,
atingirá a teologia que transcende a mente e que se
caracteriza por uma fé irredutível do mais alto grau e pela
22
visão do invisível”. A teologia está além da lógica. Ela é uma
revelação de Deus ao homem e os Padres definem-na como
theoria. Também aqui a teologia é, sobretudo, a visão de
Deus. Noutra passagem, o mesmo santo escreveu que o
genuíno amor faz nascer o conhecimento espiritual e que
“este é sucedido pelo desejo dos desejos: a graça da
teologia”.
Nos ensinamentos de São Diádoco de Foticéia, a
teologia é apresentada como o maior dos dons oferecidos
ao homem pelo Espírito Santo. Todos os dons da graça de
Deus são “perfeitos, mas o dom que inflama o nosso
coração e coloca-o em movimento para o amor da Sua
bondade, mais do que todos os demais, é a teologia”.
Porque esta, “como as primícias da graça de Deus, concede
à alma o maior de todos os dons”.
De acordo com o Apóstolo Paulo, o Espírito Santo
concede o conhecimento espiritual a uma pessoa e a
sabedoria a outra[16]. Ao interpretar essa afirmação, São
Diádoco disse que o conhecimento espiritual une o homem
a Deus, mas não o move para expressar aquilo que sabe.
Existem monges que amam a hesiquia e que são iluminados
pela graça de Deus, “ainda que não falem sobre Ele”. A
sabedoria é um dos dons mais raros, um dom que Deus
concede a quem possui tanto a expressão quanto a
capacidade intelectual. Assim, o conhecimento de Deus
“chega por intermédio da oração, duma profunda calma e
dum completo desprendimento, enquanto a sabedoria
provém duma humilde meditação sobre as Sagradas
Escrituras e, acima de tudo, por intermédio da graça
concedida por Deus”. O dom da teologia é um trabalho do
Espírito Santo em cooperação com o homem, uma vez que
Aquele atualiza neste o conhecimento espiritual dos
mistérios “independentemente dessa faculdade, já
existente, que busca, naturalmente, por tal conhecimento”.
23
Nos ensinamentos de São Gregório Palamas, os
teólogos propriamente ditos são aqueles que veem Deus e
a teologia, a theoria: “Pois existe um conhecimento sobre
Deus e as suas doutrinas, uma theoria a que chamamos de
teologia”. Qualquer um que, sem o conhecimento e a
experiência a respeito dos assuntos da fé, oferece
ensinamentos sobre essas coisas “de acordo com o seu
próprio raciocínio, tentando, por meio de palavras, mostrar
Deus, que transcende todas as palavras, este simplesmente
perdeu completamente a noção das coisas”. Sobretudo,
existem casos nos quais há pessoas que não realizaram
obras, ou seja, que não se submeteram à purificação, mas
encontraram e escutaram homens santos e “tentaram
formar as suas próprias conceções”, terminando por
rejeitar a estes homens e inflar-se a si próprios de orgulho.
Todas essas coisas demonstram que a teologia é,
propriamente, o fruto da cura do homem e não uma
disciplina racional. Somente uma pessoa que tenha sido
purificada ou que, no mínimo, esteja em processo de
purificação, pode ser iniciada nos mistérios inefáveis e nas
grandes verdades, receber as revelações e, posteriormente,
levá-las ao povo. Por essa razão, na tradição patrística
ortodoxa, a teologia é ligada e identificada com o pai
espiritual, sendo este o teólogo por excelência, vale dizer,
aquele que experimentou as coisas de Deus e que, assim,
pode conduzir o seu filho espiritual sem volteios.
O Padre John Romanides escreveu: “O verdadeiro
teólogo ortodoxo é aquele que possui um conhecimento
direto de algumas das energias de Deus através da
iluminação ou que as conhece, mais ainda, pela visão. Ora,
ele conhece-as indiretamente, por intermédio dos Profetas,
Apóstolos e Santos ou pelas Escrituras, os escritos dos
Padres e as decisões e atos dos seus Concílios locais e
ecuménicos. O teólogo é aquele que, através desse
conhecimento espiritual direto ou intermediado e da visão,
24
sabe claramente distinguir entre as ações de Deus e as das
criaturas, em especial as obras do diabo e dos demónios.
Sem o dom do discernimento dos espíritos, não é possível
testá-los para ver até que ponto algo é resultado da ação do
Espírito Santo ou do diabo e dos demónios”.
“Assim, o teólogo e o pai espiritual são a mesma coisa.
Uma pessoa que pensa e fala na busca dum entendimento
conceitual das doutrinas da fé, a partir dum padrão franco-
latino, não é um pai espiritual, nem pode ser chamado de
teólogo, no sentido próprio do termo. A teologia não é um
conhecimento abstrato ou prático, como a lógica, as
matemáticas, a astronomia ou a química mas, ao contrário,
ela possui um caráter polémico, como a logística e a
medicina. A primeira está relacionada às matérias de
defesa e ataque por meio dum treinamento corporal e a
estratégias para o desenvolvimento de armas, fortificações
e esquemas ofensivos e defensivos, enquanto a segunda
luta contra as doenças físicas e mentais na busca da saúde
e dos meios para restaurá-la”.
“Um teólogo que não está familiarizado com os
métodos do inimigo ou com a perfeição em Cristo não é
apenas incapaz de lutar contra o inimigo para o seu próprio
aperfeiçoamento, como também não está na posição de
guiar e curar os outros. É como ser chamado de general –
ou mesmo ser um – sem ter jamais recebido treinamento
ou lutado, sem ter estudado a arte da guerra, tendo apenas
prestado atenção à bela e gloriosa aparência do exército
nas suas esplêndidas e brilhantes fardas, utilizadas nas
receções e nas paradas militares. É como um talhante que
se porta como um cirurgião ou como aquele que sustenta
uma posição de médico sem conhecer as causas das
doenças ou os métodos para curá-las, ou até mesmo como
o estado de saúde do paciente pode vir a ser recuperado”.
25
1.3. O que é a Terapia
Uma vez que dissemos que o Cristianismo e a teologia
são fundamentalmente uma ciência terapêutica, devemos
descrever, brevemente, no que consiste uma terapia. O que
faz com que a Ortodoxia, com a sua teologia e o seu culto de
adoração, possa curar-nos?
A terapia da alma significa, essencialmente, a terapia e
a libertação da mente. A natureza humana torna-se
“doente” por causa da sua queda, do seu afastamento de
Deus. Essa enfermidade consiste, principalmente, no
cativeiro e na queda da mente. O pecado ancestral é o
afastamento do homem em relação a Deus, a perda da graça
divina, que resulta em cegueira, escuridão e morte da
mente. Podemos dizer, com mais exatidão, que “a queda do
homem ou a situação de haver herdado o pecado consiste
na incapacidade do seu poder noético em funcionar
completamente ou mesmo a perda total dessa função; na
confusão desse poder com as funções do cérebro e do corpo
em geral e na consequente sujeição à angústia mental e às
condições circunstantes. Toda pessoa experimenta a queda
da sua própria faculdade noética em graus variados, na
medida em que é exposta a um meio no qual essa faculdade
não funciona ou está abaixo da sua potencialidade. O mau
funcionamento do poder noético resulta nas más relações
entre o homem e Deus e entre as pessoas. Também resulta
numa utilização individual de Deus e do homem decaído
para fortalecer uma sensação pessoal de segurança e
felicidade”.
Essa perda da graça de Deus obscureceu a mente do
homem. Toda a sua natureza adoeceu e ele legou essa
enfermidade aos seus descendentes. No ensinamento
ortodoxo, é assim que entendemos a herança do pecado. Os
Padres interpretaram as palavras de São Paulo, “por causa
da desobediência dum homem muitos tornaram-se
26
pecadores [17]”, não em termos legais, mas
“medicamente”, ou seja, a natureza humana tornou-se
doente. São Cirilo de Alexandria interpretou, deste modo, a
situação: “Depois de Adão ter caído no pecado e afundado
na corrupção, os prazeres impuros devastaram-no e a lei da
selva alastrou-se pelos seus membros. Dessa maneira, a
natureza tornou-se enferma por intermédio da
desobediência dum único homem, Adão. Então, muitos
tornaram-se pecadores, não como companheiros
transgressores de Adão, porque ainda não existiam, mas
por serem da mesma natureza que havia tombado sob a lei
do pecado (...) A natureza humana em Adão tornou-se
enferma por intermédio da corrupção da desobediência e,
desde então, as paixões penetraram-na”. Noutro trecho, o
mesmo Padre utilizou-se da imagem da raiz. A morte
atingiu toda a raça humana por meio de Adão, “do mesmo
modo como a raiz duma planta é prejudicada e todos os
rebentos que dela nascem embranquecem”.
São Gregório Palamas disse: “A mente que se rebelou
contra Deus tornou-se tão bestial como demoníaca, depois
de se ter rebelado contra as leis da natureza, ao cobiçar
aquilo que pertencia a outros”.
Através do “rito do nascimento em Deus”, o Santo
Batismo, a mente humana ilumina-se, liberta-se da
escravidão do pecado e do diabo e une-se a Deus. É por isso
que o Batismo é chamado de iluminação. Mas, depois disso,
por causa do pecado, novamente a mente é obscurecida e
entorpecida. Os escritos patrísticos deixam bem claro que
cada pecado e cada paixão contribuem para entorpecer a
mente.
São João Clímaco escreveu que os demónios malignos
esforçam-se “para obscurecer o nosso espírito”. Em
especial, o demónio da luxúria que, “ao obscurecer a nossa
27
mente, que nos guia”, empurra as pessoas “a fazer coisas
que somente os loucos pensariam em fazer”.
Num próximo capítulo, daremos mais atenção à
natureza da mente humana. Neste momento, estamos mais
interessados no tema do obscurecimento. São Máximo
ensinou-nos: “Assim como o mundo do corpo consiste em
coisas, o mundo da mente consiste em imagens conceituais.
Então, se o corpo fornica com o corpo duma mulher, a
mente, ao formar uma imagem do seu próprio corpo,
fornica com a imagem conceitual da mulher”. Nisto consiste
o obscurecimento e a queda da mente.
Noutro comunicado, o mesmo santo Padre ensinou-
nos que “assim como o corpo peca por intermédio das
coisas materiais, mas possui as virtudes corporais para
aprender a ter domínio sobre si próprio, também a mente
peca através de imagens conceituais passionais, mas possui
as virtudes da alma para instruí-lo”. Essa verdade mostra
que a queda da mente cria uma confusão em todo o
organismo espiritual. Ela cria a angústia e a agitação e, de
modo geral, faz com que a pessoa viva a queda em toda a
sua dramaticidade. Assim, muitos dos problemas que nos
assolam provêm dessa moléstia interior. É por isso que os
psicoterapeutas não nos podem ajudar muito, porque
somente Cristo pode restaurar a mente entorpecida pelas
paixões.
Citamos, mais uma vez, São Máximo que, ao tentar
definir, mais claramente, no que consiste a impureza da
mente e, consequentemente, a sua queda, escreveu que ela
contempla quatro itens: “em primeiro lugar, um falso
conhecimento; depois, a ignorância sobre os universais (...);
em terceiro, possui pensamentos passionais; em quarto,
acede ao pecado”. Assim é que a mente precisa de terapia,
duma terapia que os Padres chamam de “estimular e
purificar a mente”.
28
Muitas coisas estão ditas, nos ensinamentos do Senhor
e dos Apóstolos, acerca da pureza da mente e do coração. O
Senhor, ao se referir aos fariseus do seu tempo, zelosos
duma extrema pureza externa, mas negligentes com a
pureza interna, disse: “Fariseu cego, limpa primeiro o lado
de dentro do cálice e do prato e o lado de fora também
ficará limpo [18]”. No encontro dos Apóstolos em
Jerusalém, Pedro, ao se confrontar com o problema de os
gentios cristãos deverem ser circuncidados ou não, de
forma a manter a lei do Antigo Testamento, disse: “Deus,
que conhece os corações, reconhece-os, pois lhes deu o
Espírito Santo tanto quanto nos deu a nós e não fez
distinção entre nós e eles, ao purificar os seus corações pela
fé[19]”. O Apóstolo Paulo recomendou aos cristãos de
Corinto: “Devemo-nos limpar de toda a imundície da carne
e do espírito, aperfeiçoando a santidade com temor a
Deus[20]”. O sangue de Cristo deve “purgar a nossa
consciência das obras mortas[21]”. Do mesmo modo, ao
escrever ao seu discípulo Timóteo, ele afirmou que só
podemos captar o mistério da fé “com uma consciência
pura[22]”. O Apóstolo Pedro também estava consciente de
que o amor pelo próximo constitui o fruto dum coração
puro, ao dizer: “Amai-vos uns aos outros, fervorosamente,
com um coração puro[23]”.
Dessa forma, a purificação, da mente e do coração, é
essencial. Escrevemos a respeito da mente e do coração,
ainda que saibamos que, na teologia patrística, estes dois
termos são utilizados indistintamente. Voltaremos a essa
questão noutro capítulo.
São Máximo dividiu a vida espiritual em três estágios,
que são: a filosofia prática ou praxis; a theoria natural ou,
simplesmente, theoria e a teologia mística ou,
simplesmente, teologia. A primeira purifica a pessoa das
paixões e adorna-a de virtudes; a segunda ilumina a sua
mente com o conhecimento verdadeiro e a terceira coroa-a
29
com a mais alta experiência mística, à qual São Máximo
chamou de “êxtase”. Essas três partes constituem os
estágios fundamentais no caminho da salvação pessoal do
homem. Deve-se notar, inclusive, que muitos Padres
distinguem estes três estágios na vida espiritual: a filosofia
prática ou a purificação do coração, a theoria natural ou a
iluminação da mente e a teologia mística ou a comunhão
com Deus através da theoria.
De acordo com outra divisão, que aparece nos escritos
patrísticos, a vida espiritual é dividida em praxis e theoria,
sendo que a primeira precede sempre a segunda, que é a
visão de Deus. “A praxis é a padroeira da theoria”. Duma
forma mais analítica, “a praxis, naquilo que se refere ao
corpo, consiste no jejum e na vigília, assim como a boca está
para a salmodia. Mas orar é melhor do que salmodiar e o
silêncio é mais valioso do que a fala. No caso das mãos, a
praxis é o que elas fazem sem reclamar”. Quanto à theoria,
“ela é a visão da mente; a fim de se admirar e compreender
o que foi e o que será”.
Certamente, de acordo com o ensinamento de São
Máximo, a theoria não é independente da praxis. “A praxis
não é segura sem a theoria, nem esta é verdadeira sem
aquela. Pois a praxis deve ser inteligente e a theoria deve
ser eficaz”. Ele enfatizou que, “no caso dos mais instruídos,
a theoria precede a praxis, enquanto que, para os mais
simples, a praxis vem em primeiro lugar”. Nos dois casos,
porém, o resultado é bom, pois ambas conduzem ao mesmo
resultado, que é a purificação e a salvação do homem.
De facto, ao falarmos em purificação da alma,
queremos dizer, principalmente, libertá-la das suas
paixões, ou antes, transformar essas paixões. Mais do que
isso, a purificação implica, também, um “desenvolvimento
uniforme” do ser humano, que conduz à iluminação da
mente. Portanto, a purificação não é apenas negativa, mas
30
também positiva. As qualidades da alma pura são “a
inteligência desprovida de inveja, a ambição livre de
malícia e um incessante amor pelo Senhor da glória”.
Noutras palavras, se estivermos motivados pela inveja, se a
nossa ambição contiver malícia e se o nosso amor por Deus
for intermitente, isso significa que o nosso coração ainda
não foi purificado.
A mente é aquilo que foi feito à imagem de Deus. Nós
desfiguramos esta imagem com o pecado e agora ela deve
ser restaurada. Foi assim que Abba Doróteo ordenou-nos:
“Tornemos a nossa imagem tão pura quanto a recebemos”.
Devemos sofrer trabalhos e uma intolerável amargura até
que purifiquemos a mente, “este rafeiro que fareja à volta
do talho e que se alegra na balbúrdia”. Se um homem luta
para não cometer pecados e debate-se contra os
pensamentos passionais, ele é humilhado e despedaça-se
durante a luta, “mas os sofrimentos do combate purificam-
no pouco a pouco, trazendo-o de volta ao seu estado
natural”. Apesar do esforço do homem, se o Espírito Santo
não descer sobre ele, a mente, que está morta, não poderá
ser purificada e trazida à vida, porque “somente o Espírito
Santo é que pode purificar a mente”.
Em qualquer caso, quando, por meio dum trabalho
conjunto da graça divina e da vontade do homem, a mente
é purificada, ela se ilumina, uma vez que “onde há
purificação, há iluminação”. Depois de purificada, se a
pessoa resguardar a mente para que não seja desfigurada
pelo pecado, esta será iluminada e iluminará. É por isso que
a guarda da mente pode ser chamada de “produtora de luz
e de iluminação, iluminante e portadora do fogo”.
Em poucas palavras, podemos afirmar que a cura do
homem é, de facto, a purificação da mente, do coração e da
imagem; a restauração da mente ao seu estado de beleza
primordial e original e algo mais: a sua comunhão com
31
Deus. Quando a mente se torna um templo do Espírito
Santo, podemos dizer que a cura teve sucesso. Os que se
curam são os santos de Deus.
1.4. O método da terapia: o tratamento terapêutico
Tendo visto no que consiste o Cristianismo, qual o
caráter da teologia ortodoxa e o que é uma terapia,
devemo-nos voltar, agora, para o método de tratamento
terapêutico, que é o método da fé ortodoxa. Se demorámos
tanto para colocar o problema, devemo-nos esforçar, agora,
para fazer um inventário dos métodos utilizados para a
aquisição da pureza do coração, ou seja, para a cura. Pois
não existe mérito em listar os estados mais elevados, a
menos que possamos trazê-los à nossa consciência e aplicá-
los.
1.4.1. Como se dá a cura da alma?
Primeiro, devemos enfatizar a fé correta. Nós,
ortodoxos, damos grande importância à preservação da fé,
porque sabemos que quando esta é distorcida, também a
cura é, automaticamente, distorcida. Já enfatizámos que a
teologia deve ser interpretada como uma medicina. A
ciência médica tem em vista a pessoa saudável, quando
tenta guiar a pessoa enferma para a saúde mediante os
vários métodos terapêuticos. O mesmo podemos dizer a
respeito da teologia. Ela é o ensinamento da Igreja sobre a
saúde espiritual, mas também versa sobre o caminho que
nós, os doentes, devemos seguir para sermos curados. É
por isso que nós, os ortodoxos, damos tanto valor em
manter a doutrina intacta, não apenas porque tememos o
enfraquecimento do ensino e da transmissão, mas porque
podemos perder a possibilidade da cura e, portanto, da
salvação. Ademais, “o conflito entre Palamas e Barlaão não
foi tanto sobre o tipo da doutrina, mas sobre a sua
32
fundamentação metodológica. Barlaão baseava-se numa
metafísica e numa epistemologia lógica, enquanto Palamas
tinha o seu fundamento numa verificação empírica e na
confirmação de resultados demonstráveis”.
Mas, para sermos curados, é essencial que nos
sintamos doentes. Quando uma pessoa enferma não tem a
consciência da sua moléstia, não irá à procura dum médico.
O autoconhecimento é, assim, um dos primeiros passos
para a cura. São Máximo ensinou-nos: “A pessoa que
chegou a entender a fraqueza da natureza humana,
adquiriu, por isso mesmo, uma experiência do poder
divino” e, assim, torna-se ávida por adquirir novas coisas
além das que adquiriu por intermédio desse poder divino.
Pedro de Damasco, ao descrever o grande valor da oração
noturna, disse: “A prática das virtudes morais é efetuada
pela meditação sobre aquilo que aconteceu durante o dia”,
ou seja, quando meditamos a respeito dos deslizes
ocorridos “na confusão do dia, de modo que, no repouso da
noite, possamo-nos tornar conscientes dos pecados
cometidos e afligir-nos por causa deles”. Somente quando
conhecemos o nosso estado, podemo-nos afligir por ele.
É indiscutível que muitos cristãos, hoje em dia, não
estão conscientes da sua condição espiritual. Nós estamos
mortos pelo pecado mas, não apenas não percebemos isso,
como ainda cremos estar cheios dos dons do Espírito Santo,
adornados de virtudes. Desafortunadamente, essa
autossatisfação, que está presente em nós mesmo quando
estamos cheios de chagas, está a destruir o trabalho da
salvação. Como pode Cristo falar a alguém que se
autojustifica? Somos como o Fariseu do tempo do Senhor,
que não sentia a necessidade dum médico. Como pode o
grande dom do arrependimento e do enlutamento habitar
num coração que não sente a sua desolação, quando a sua
vida interior é incapaz de se desenvolver?
33
Em conexão com a sensação de estar doente, deve
existir também uma “autocondenação”, ou seja, o grande
dom da autocrítica. Isso mostra que existe humildade na
alma, pois “a autocrítica está sempre associada com a
humildade”. Essa autocrítica é uma responsabilidade
espiritual que, quando colocada na alma, “esmaga,
pressiona e espreme o vinho que regozija o coração do
homem, vale dizer, do homem interior. A compunção é esse
vinho”. A autocrítica, juntamente com o enlutamento que a
caracteriza, também esmaga as paixões e enche o coração
com a mais ditosa felicidade. “Devemos sempre condenar e
criticar a nós mesmos, de modo a que, por meio duma
humilhação deliberadamente escolhida, possamo-nos
proteger do pecado da presunção”.
Mas a sensação de estar doente não é suficiente em si.
Em qualquer caso, o terapeuta será necessário. Esse
terapeuta é o padre ou o pai espiritual. Ele já foi curado das
suas aflições ou, no mínimo, luta para curar-se e, assim, é
capaz de curar os seus filhos espirituais. Já dissemos que o
pai espiritual deve ser um teólogo e vice-versa. Mas, nesse
caso, aplica-se o ditado: “Médico, cura-te a ti mesmo[24]”.
Alguém que conseguiu passar pelas armadilhas do diabo
pode, com segurança, guiar o seu filho espiritual. Alguém
que sabe o valor do imenso tesouro chamado saúde
espiritual pode ajudar os outros a curarem-se. Alguém que
encontrou a sua própria mente pode ajudar os outros a
fazer o mesmo. “A mente, que é como um verdadeiro
médico, é aquela que primeiro curou a si mesma e que, a
partir de então, passou a curar, nos outros, as doenças das
quais ela própria curou-se”.
Muitos cristãos contemporâneos veem padres e
ministros do Altíssimo como oficiais da Igreja que são úteis
em diversos assuntos burocráticos, que celebram os
diferentes sacramentos quando são chamados para tal ou
que celebram a Divina Liturgia e, desse modo, satisfazem as
34
necessidades das suas almas ou cumprem um dever
tradicional. Eles são vistos como mágicos que operam a
magia! Sabemos, é claro, que a graça de Deus não é
transmitida mágica ou mecanicamente, mas
sacramentalmente. É verdade que até o mais indigno dos
sacerdotes pode celebrar os sacramentos – mas ele não
pode curar. Pois a remissão dos pecados é uma coisa e a
cura é outra. Muitos cristãos ficam satisfeitos com uma
confissão formal ou um acompanhamento formal da
Liturgia, ou mesmo com uma Comunhão formal e nada
mais. Eles não se preocupam com a cura das suas almas.
Mas os padres, os pais espirituais, não apenas celebram a
Comunhão como também curam as pessoas. Eles possuem
um sólido conhecimento a respeito do caminho da cura das
paixões e transmitem-no aos seus filhos espirituais. Eles
mostram-lhes como se livrar do cativeiro, ou seja, de que
modo a sua mente pode ver-se livre da escravidão.
Eis como os santos Padres encaravam a paternidade
espiritual. O pastor é, também, um médico. “O médico é
alguém cujo corpo está perfeito, que não necessita de
curativos”. São João Clímaco foi bastante específico em
relação ao que o padre deve fazer para curar: “Ó homem
maravilhoso, adquire emplastros, poções, navalhas,
colírios, esponjas, instrumentos para a sangria e a
cauterização, unguentos, poções para dormir, facas,
ligaduras, algo contra a náusea (repulsa ao fedor das
feridas). Se não colocarmos essas coisas em uso, como
poderemos praticar a nossa ciência? É impossível, porque
um médico não recebe o seu pagamento pelas suas
palavras, mas pelos seus feitos”.
“Um emplastro é uma cura para as paixões exteriores,
ou seja, as paixões corporais. Uma poção é uma cura para
as paixões interiores, para drenar as impurezas invisíveis.
Uma navalha é a humilhação que morde, mas que purifica
a putrefação da empáfia. O colírio serve como um castigo
35
cáustico, que traz uma cura rápida. A sangria é uma
drenagem para as purulências ocultas. Ela é, também, um
instrumento que constitui, eminentemente, um remédio
intenso e breve para a salvação dos doentes. Uma esponja
é usada após a sangria para aliviar e refrescar o paciente
com as palavras gentis, delicadas e ternas do médico. A
cauterização é uma regra de penitência dada com amor ao
pecador por um período definido de arrependimento. Um
unguento é um tranquilizante oferecido ao paciente como
algumas palavras ou uma breve consolação após a
cauterização”.
“Uma poção para dormir é o que usamos para aliviar o
peso duma pessoa e, por intermédio da obediência, dar-lhe
o descanso, o sono da vigília e uma sagrada cegueira em
relação às suas próprias virtudes. As ligaduras servem para
atar e fortalecer aqueles que estão nervosos e debilitados
pela vanglória. O último instrumento é a faca, que é uma
sentença ou um decreto para cortar fora o membro pútrido
e um corpo morto na alma para que não contagie todo o
resto”.
“Abençoada e louvável é a resistência à náusea por
parte dos médicos, como é a imparcialidade entre os
pastores. Os primeiros, ao evitar a náusea, esforçam-se
incansavelmente para dissipar o fedor. Os últimos serão
capazes de restaurar a vida à toda alma fenecida”. O Padre
João escreveu ainda: “Assume-se que, acima de todos os
outros terapeutas, quem guia os enfermos para esses
estágios de terapia são os bispos e os sacerdotes, sendo que
os primeiros, dum modo geral, são egressos do
monasticismo. Hoje, porém, depois de um século duma
catastrófica propaganda neo-helenística contra o
hesicasmo, esse tipo de clérigo é raro. Existem poucos
monges hesicastas. O sacerdócio, tal como descrito por
Dionísio, o Areopagita, praticamente desapareceu”.
36
Finalmente, o sacerdote terapeuta recomenda,
também, ao seu filho espiritual um caminho, o da devoção
ortodoxa. Veremos, a seguir, o método por meio do qual a
pessoa doente poderá obter a sua cura, sob a orientação do
seu pai espiritual.
Queremo-nos ater, em especial, ao ascetismo. “A
poderosa prática do autocontrolo, do amor, da paciência e
da perseverança destruirá todas as paixões em nós
ocultas”. Nicetas Sthethatos, discípulo de São Simeão, o
Novo Teólogo, descreveu essa prática ascética. O homem
possui cinco sentidos, de maneira que as práticas ascéticas
são também em número de cinco: a vigília, o estudo, a
prece, o autocontrolo e a hesiquia. O asceta deve combinar
os seus cinco sentidos com essas cinco práticas: a visão com
a vigília, a audição com o estudo, o olfato com a prece, o
paladar com o autocontrolo e o tato com a hesiquia. Ao
obter sucesso com essas cinco ligações, “ purificará,
rapidamente, a mente da sua alma e, por esse refinamento,
torná-la-á desapaixonada e lúcida”.
Em poucas palavras, podemos dizer que a prática do
ascetismo consiste em aplicar as leis de Deus, os Seus
mandamentos. O esforço que fazemos para subordinar a
vontade do homem à vontade de Deus e para transformar
aquela por meio desta, chama-se ascese. Estamos cientes, a
partir dos ensinamentos dos nossos santos Padres, que
todo o Evangelho consiste em “preceitos de salvação”. Tudo
o que está contido nas Escrituras são mandamentos de
Deus, que devem ser observados por aqueles que buscam a
sua salvação. Isso está bastante claro nas Beatitudes[25].
“Bem-aventurados os pobres em espírito” é o
mandamento do Senhor que devemos observar para a
nossa pobreza espiritual, ou seja, para que possamos
experimentar a nossa miserabilidade. “Bem-aventurados
37
os que choram” é o mandamento do Senhor para que
choremos sobre as paixões que existem em nós, para que
choremos sobre a nossa desolação. “Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça” é o mandamento do Senhor
sobre a fome e a sede que precedem a comunhão com Deus.
“Bem-aventurados os puros de coração” é o mandamento
de Cristo para que purifiquemos os nossos corações.
Quando Ele nos diz “bem-aventurados”, é como se nos
dissesse: “Tornai-vos pobres, chorai, sede sedentos por
justiça” e assim por diante.
Portanto, os mandamentos de Cristo consistem numa
prece incessante, numa celebração da Divina Liturgia,
numa vigilante atenção sobre a mente, na pureza do
coração etc. “A lei é santa e o mandamento é santo, justo e
bom [26]”. João Evangelista, o discípulo do amor, enfatizou
aos cristãos: “Sabemos que conhecemos Deus por isto: se
guardamos os Seus mandamentos. Quem diz: “Conheço-O”,
mas não guarda os Seus mandamentos é um mentiroso e a
verdade não está nele; ao passo que quem guarda a Sua
palavra, nesse é que o amor de Deus é verdadeiramente
perfeito; por isto reconhecemos que estamos Nele[27]”. O
mesmo Evangelista enfatizou com toda a autoridade: “Pois
este é o amor de Deus: que sigamos os Seus mandamentos”.
De acordo com Dionísio, o Areopagita, “o objetivo da
nossa hierarquia é tornarmo-nos, o tanto quanto possível,
semelhantes a Deus e unidos a Ele. Mas a Escritura nos
ensina que o nosso desejo somente terá sucesso através da
amorosa observância aos mandamentos e da realização
dos serviços divinos”. São Gregório Palamas ensinou-nos
que o conhecimento das coisas criadas vem por meio das
ações virtuosas. Quando perguntado a respeito da
finalidade dessas ações, ele escreveu: “A união com Deus e
a semelhança com Ele”. Realizar ações virtuosas liga-se à
observância dos mandamentos. O santo hesicasta
observou, ademais, que o amor por Deus “vem somente por
38
intermédio da sagrada realização dos mandamentos
divinos”.
A seguir, gostaria de mencionar alguns preceitos dos
Padres a respeito do valor dos mandamentos. “O propósito
dos mandamentos do Salvador é o de libertar a mente do
ódio e da dissipação[28]”. Os mandamentos de Deus
“excedem todos os tesouros do mundo. O homem que
recebeu a sua posse interior encontra o Senhor[29]”.
“Manter os mandamentos de Deus gera a impassibilidade
da alma e esta preserva o conhecimento espiritual[30]”. A
obediência aos mandamentos de Deus “é a ressurreição dos
mortos[31]”.
São Gregório, o Sinaíta, ao descrever os dois modos
através dos quais o Espírito Santo opera e que recebemos,
secretamente, no Santo Batismo, considerou a observância
dos mandamentos como um deles: “Quanto mais
conservamos os mandamentos, mais se manifesta a
brilhante luz do Espírito Santo em nós[32]”.
Todas essas coisas mostram o quão essencial é a vida
ascética para a cura e a restauração da alma. Como
dissemos, essa vida consiste, basicamente, na observância
dos mandamentos de Cristo, o nosso Salvador. Os
mandamentos básicos, que afetam a nossa cura espiritual –
conforme os Tropários que cantamos na Igreja – são os
jejuns, as vigílias e as preces.
Se a esmola cura o poder insensível da alma e a prece
purifica a mente, o jejum enfraquece o desejo sensual, de
modo a que toda a alma ofereça-se curada a Deus. O jejum
também torna o corpo mais humilde: A provação de comida
mortifica o corpo do monge. Mas o jejum em excesso não
apenas enfraquece o corpo, como ainda faz com que a
faculdade contemplativa da alma desanime e tenha
dificuldades de concentração.
39
São João Clímaco falou a respeito do jejum: “Jejuar é
fazer violência contra a natureza. O jejum deve ser dirigido
contra tudo o que agrada ao paladar. Ele acaba com a
luxúria, desenraíza os maus pensamentos e liberta dos
sonhos diabólicos. Ele permite a pureza na oração, uma
alma iluminada, uma mente alerta e a libertação da
cegueira. Ele é a porta da compunção, dos suspiros de
humildade, da contrição alegre e acaba com a tagarelice,
fazendo-se uma ocasião para o repouso da mente, para a
custódia da obediência, para a iluminação do sono e a saúde
do corpo, sendo ainda um agente da impassibilidade e da
remissão dos pecados: uma porta para as delícias do
Paraíso”.
Todas essas coisas que mencionámos, por um lado,
mostram o âmbito do jejum e, de outro, indicam os frutos
que obtemos quando a alma se esforça. É por isso que todos
os santos amavam o jejum. É importante mencionar que,
quando uma pessoa começa a se arrepender, começa,
também, a jejuar por si mesma, o que mostra que o jejum
acompanha a oração e o arrependimento.
É claro que o jejum é um meio e não um fim, “é uma
ferramenta para treinar os que desejam o autocontrolo”;
porém, sem essa ferramenta, é quase impossível dominar
as paixões e alcançar a impassibilidade. São João Clímaco
foi claro a esse respeito. Assim como os hebreus se
libertaram do faraó e celebraram a Páscoa depois de comer
ervas amargas e pão sem fermento, também nós devemo-
nos libertar do nosso faraó interior através do jejum e da
humildade: “Não deveis vos enganar. Não escapareis do
Faraó, nem vereis a Páscoa celeste, a menos que comais
constantemente ervas amargas e pão sem fermento: as
amargas ervas do trabalho árduo e o pão sem fermento da
mente que se humilha”. É essencial manter os jejuns fixados
pela Igreja e tentar, sempre, não satisfazer, por inteiro, os
desejos da carne.
40
Além do jejum, outro meio de cura é a vigília. Ao
manter a vigília, que é também um método ascético de
terapia, a pessoa é purificada e curada das paixões. O
Senhor disse-nos para que orássemos à noite e Ele próprio
passava noites inteiras na montanha. “E, após ter
despedido as multidões, dirigiu-se, sozinho, à montanha,
para rezar. E quando chegou a manhã, ainda estava lá[33]”.
Os santos Padres experimentaram, nas suas vidas, o
efeito benéfico das vigílias. Santo Isaac disse nos seus
escritos ascéticos: “O monge que persevera na vigília, com
uma mente atenta, não será visto como coberto de carne,
porque esse é um trabalho do estado angélico”. Uma alma
que trabalha e que se excede na prática das vigílias “terá os
olhos do Querubim e poderá sempre olhar e contemplar as
visões celestiais”.
São João Clímaco, com a sua delicadeza característica,
apresentou-nos o modelo do monge desperto e os
benefícios da vigília: “Uma atitude alerta mantém a mente
limpa. A sonolência ata a alma. O monge alerta luta contra
a fornicação, enquanto o sonolento se deixa levar por ela. O
alerta extingue a luxúria, liberta-se das fantasias, mantém
os olhos em lágrimas, suaviza o coração e torna-o gentil,
domina os pensamentos, digere os alimentos, vence as
paixões, sujeita os espíritos, controla a língua e afasta as
imaginações ociosas. O monge vigilante é um pescador de
pensamentos que, na calada da noite, pode observá-los e
capturá-los”.
A prece acompanha a vigília. Este é o método, por
excelência, que cura as moléstias da alma. Pois muitas
graças alcançam a alma do homem por intermédio da
prece. Mais adiante veremos a prece noética como um
método para libertar a mente e ver Deus, no capítulo
denominado “A hesiquia como um método de terapia”.
Consideramos ser esse o mais importante meio para a
41
salvação do homem. Existem, ainda, outros meios
terapêuticos de cura para todas as paixões da alma.
Trataremos disso mais adiante, porém, no capítulo
denominado “Patologia Ortodoxa”.
Talvez o leitor esteja a pensar que todos esses métodos
terapêuticos, que são bálsamos para o olho do coração[34],
somente podem ser praticados pelos monges. Isso não é
verdade. Qualquer um, mesmo os que vivem no mundo,
pode viver segundo os mandamentos de Cristo. A prece, o
arrependimento, as lamentações, a compunção, o jejum, a
vigília e tudo o mais são mandamentos de Cristo, o que
significa que todos podem viver segundo os mesmos. Cristo
nunca disse coisas que fossem impossíveis para o homem.
São Gregório Palamas, ao falar sobre a pureza do coração,
enfatizou que “é possível, mesmo para aqueles que são
casados, buscar essa pureza, embora com muito mais
dificuldade”. Toda pessoa pode desenvolver uma vida de
acordo com o Evangelho, fazendo para si o correspondente
ajuste.
Acima de tudo, se existir um bispo e a Divina Liturgia,
isso significa que a salvação é possível. Afinal, porquê a
Igreja existe e funciona? Há, também, uma aplicação
apropriada dos mandamentos de Cristo para cada pessoa.
Na literatura patrística, encontramos muitos desses casos.
Os Padres, eles próprios tendo sido curados, adquiriram a
graça do discernimento e aconselharam a cada pessoa
sobre como encontrar o seu caminho, o qual é,
essencialmente, o caminho da tradição ortodoxa.
São João Clímaco foi característico a esse respeito. Ele
conta ter visto um médico estúpido a desonrar e levar ao
desespero um homem doente, que se apresentava contrito
e com o espírito humilde. Ao mesmo tempo, ele viu outro
médico espiritual “inteligente” operar um “coração
arrogante” com a faca da desonra e, assim, drenar deste
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todo o fedor pecaminoso. Ele também disse ter visto o
mesmo homem enfermo tratar as suas impurezas com os
remédios da obediência e, às vezes, curar “o olho doente da
sua alma” através do repouso e do silêncio. Fica claro,
assim, que o mesmo homem enfermo precisava da
obediência, num dado momento, e do repouso e do silêncio,
em outro. O remédio apropriado deve ser ministrado no
tempo apropriado.
Confessor criterioso, o mesmo santo disse: “O remédio
para um homem pode ser o veneno para outro”. E mais, o
mesmo preparado, para a mesma pessoa doente, pode ser,
num momento, um remédio e em outro, um veneno.
Quando ministrado no momento oportuno, serve como
remédio, mas, no tempo errado, torna-se um veneno. Assim
é que enfatizamos, uma vez mais, que um terapeuta
Ortodoxo criterioso (médico-confessor) é essencial para
ajustar a medicação e fornecer a orientação terapêutica
adequada.
A seguir, gostaria de apresentar alguns ditos dos
Padres do deserto, nos quais fica claro que existe uma
variedade de práticas ascéticas, com grandes
possibilidades de ajustes.
Alguém perguntou a Santo António: ”Quais boas obras
poderei realizar?”. Ele respondeu: “Não são todas as boas
obras iguais entre si? A Escritura diz-nos que Abraão era
hospitaleiro e que Deus estava com ele. David era humilde
e Deus estava com ele. Elias amava a paz interior e Deus
estava com ele. Assim, faz o que a tua alma desejar, de
acordo com Deus, e guarda o teu coração”.
João de Tebas disse: “Três obras ganham aprovação
aos olhos do Senhor: a primeira, quando um homem está
doente, as tentações caem sobre ele e ele as recebe com
gratidão; a segunda, quando alguém realiza as suas obras
apenas na presença de Deus, sem buscar nada humano; e a
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terceira, quando alguém é submisso ao seu pai espiritual
em completa renúncia à sua própria vontade. Esta última
receberá, ainda, uma eminente coroa”. Ele acentuou:
“Quanto a mim, escolhi a doença”.
Do mesmo modo, o Abade Pémen disse: “Se três
homens estiverem no mesmo lugar e um deles preservar a
sua paz interior, o segundo agradecer a Deus pela sua
enfermidade e o terceiro o servir com uma mente pura, os
três terão realizado a mesma obra”.
A partir desses exemplos, podemos ver que a luta do
homem é comum a todos, mas que existem diferentes
modos de lutar. Todos devem guardar as palavras de Deus
e os Seus mandamentos, todos devem guardar a pureza dos
seus corações enquanto estiverem a trabalhar. Não
obstante, existe uma variedade de aplicações que o pai
espiritual pode fazer.
Pode ser considerada uma falta não termos listado a
Santa Comunhão como um tratamento terapêutico. Mas
devemos sublinhar e enfatizar o facto de vermos a
Eucaristia, a comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo,
como indispensável ao homem. O Senhor enfatizou: “A
menos que comais a carne do Filho do homem e bebais o
Seu sangue, vós não tereis a vida[35]”. Mas é sabido que a
Santa Comunhão é precedida pela purificação e
preparação. Se a terapia sobre a qual falamos não vier
antes, então a receção do Corpo e do Sangue de Cristo
acarretará “juízo e condenação”. A eclesiologia e a
escatologia não podem ser compreendidas sem a prática
terapêutica. Assim, não estamos a subestimar a Santa
Eucaristia, mas, ao enfatizar o valor da prática ascética e da
terapia, exaltamos o grande dom da Eucaristia. Por outro
lado, o objetivo daquilo que escrevemos é, principalmente,
o de esclarecer o caminho preciso que termina no altar, de
modo a que a Santa Comunhão torne-se a luz da vida.
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Espero que estas poucas palavras tenham mostrado,
com clareza, que o Cristianismo é uma ciência terapêutica.
Ele cura as pessoas doentes. Esta doença manifesta-se na
mente. A Igreja, através dos seus ensinamentos, do seu
culto, da sua ascese e dos seus sacramentos, liberta a mente
e torna-a um Templo do Espírito Santo. Esse caminho
terapêutico foi aplicado e confirmado por todos os santos.
É o único caminho que conduz a Deus. Acredito que a perda
da tradição deve ser vista como o principal motivo da perda
do método terapêutico e do surgimento dos terapeutas
atuais. O retorno ao caminho da Tradição Ortodoxa é,
essencialmente, o caminho de volta para esses dois
fundamentos.
[1] A edição inglês, que serviu de base para esta tradução,
não contém as referências mencionadas.
[2] Basílio Magno; Gregório, o Teólogo e João Crisóstomo.
[3] Prólogo dos editores, Filocalía Grega, pg. 9.
[4] Filocalía Grega I, pg. 1-11.
[5] I Coríntios 11: 27-30.
[6] Mateus 16:18.
[7] Colossenses 1:18.
[8] I Timóteo 3:15.
[9] Tiago 1:26-27.
[10] Lucas 10:33 ss.
[11] Salmo 38:5.
[12] Mateus 9:12.
[13] Mateus 4:23 ss.
[14] I Coríntios 8:12.
[15] Apocalipse 22:1 ss.
[16] I Coríntios 12:8.
[17] Romanos 5:19.
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[18] Mateus 23:36.
[19] Atos 15:8 ss.
[20] II Coríntios 7:1.
[21] Hebreus 9:14.
[22] I Timóteo 3:9.
[23] I Pedro 1:22.
[24] Lucas 4: 23.
[25] Mateus 5:1
-12.
[26] Romanos 7:12.
[27] I João 2:3
-5.
[28] Máximo, o Confessor, Filocalía
.
[29] Isaac, o Sírio, Homilias Ascéticas.
[30] Talássis, Filocalía
.
[31] Ibid.
[32] Filocalía 4.
[33] Mateus 14:23.
[34] Cf. Apocalipse 3:18.
[35] João 6:53.