quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A GNOSIOLOGIA DE SÃO PAULO

 

A carta aos irmãos de Colosso se aproxima mais de um tratado do conhecimento humano do que uma carta contra os hereges. Mas, vez ou outra, ao lutar contra as heresias, os santos recorrem ao tema gnose. Assim, São Paulo, apóstolo de Nosso Senhor, tal qual Irineu de Lyon, retoma um dos temas magnos da filosofia.

O Apóstolo inicia a carta e indica de imediato que a verdade do Evangelho produz bons frutos, que são: I) a fé em Cristo e II) o amor para com todos os santos, ou seja, o amor a Deus e o amor ao próximo. De forma que, reduzindo-se a mensagem do Evangelho — em sentido de podar-se, não de diminuí-la — , sobram-se o amor a Deus e ao próximo — a centralidade da mensagem neotestamentária.

  • CAPÍTULO I, 9–12: Os desejos do Apóstolo.

Eis os três desejos e seus detalhamentos:

I) MORAL

Deus deseja que a Igreja cumpra Sua Lei. Ele quer que andemos “de modo digno do Senhor”, ou seja, que sejamos justos perante Deus. Uma leitura aprofundada do trecho não nos revelará muitos detalhes acerca disso. O Apóstolo deixa aberta a questão da integridade. Por isso, vale aqui dizer que, muito provavelmente — e que não se firme dogmas sobre isso — está sendo ordenado que a Igreja ande segundo as leis positivas, as leis litúrgicas e as leis divinas.

II) BOA OBRA

A Igreja que pratica boas obras estará, inevitavelmente, ligada à piedade e à caridade. São os dois bastiões das boas obras que a Igreja leva. A “piedade” está voltada à misericórdia (para com os transgressores que vêm pedir perdão); a caridade, ao bom trabalho que a Igreja realiza amparando os órfãos e as viúvas (no sentido maximamente literal).

III) CONHECIMENTO.

Aqui, então, São Paulo adentra o tema central da epístola. A palavra grega é epignosis (επιγνωσιν), que, como se vê, é diferente de gnosis.

A palavra epignosis (versículo 10 — “…pleno conhecimento…”) vem do grupo ginosko, cujos termos são:

1) GINOSKO — conhecimento geral.
2) GNOSIS — compreensão inteligível, mas não experimental.
3) EPIGNOSIS — conhecimento íntimo, pessoal e experimental.
4) EPIGNOSKO (verbo — mesma raiz de epignosis) — perceber.

O prefixo “epi” aparece — em 80% das vezes — nos textos homéricos como significando “sobre”, “superior” ou “acima de”. Em Platão, da mesma forma. Com o grego koiné, o “epi” é usado ainda mais nesse significado, o que nos leva à conclusão de que “epignosis” (epi + gnosis) seria uma forma evoluída e perfeita de gnose. Isso porque a gnose simplesmente conhece, já a epignose experimenta. Por exemplo, os homens sabem que levar um tiro dói. Isso é gnose. Mas saber disso por experimentação é epignose. O tradutor, muito provavelmente, não sabia como traduzir o termo “epi”, então adicionou o adjetivo que não há no grego, que é “pleno”. Podemos procurar em vários versículos do NT: conhecimento, quando relacionado a Deus, é dito como “pleno conhecimento”. Esse “pleno conhecimento”, essa epignose, é conhecer a Deus por experimentá-lo.

É o que Santo Anselmo chamou de “crer em” e não “crer no” ou “crer de”. Quando se “crê em”, tem-se a participação, a penetração, no objeto da fé. Deus, em relação a fé, é objeto e sujeito. Objeto porque é crido; sujeito porque Ele oferece a fé (sendo a fé dom de Deus). Esse conhecimento não pode estar separado da experiência com Deus. Essa experiência só pode ser adquirida com o tempo. Isso fica claro quando se vê que o Apóstolo sempre associa a epignose à sabedoria (σοφια / Cf. verso 9).

Assim, três coisas Deus deseja para a Igreja: que ela seja íntegra para com Ele e para com os governantes, que ela pratique caridade e piedade com os de dentro e com os de fora, e que ela O experimente, ou seja, participe nEle em plenitude. Falando em termos práticos, uma igreja corrupta, uma igreja que não tem misericórdia ou uma igreja que não usa dos meios de graça/sacramentos para se aprofundar no conhecimento pleno de Deus é, em poucas palavras, uma igreja perdida.

  • CAPÍTULO II, 1–5.

Não somente nesse capítulo, mas especialmente no capítulo I e em quase todas as cartas, o Apóstolo traz o conecito de epignosis (“pleno conhecimento”, em português), como já tratamos aqui. Epignosis é um conhecimento de Deus empírico, a posteriori, que necessita de uma vivência diária da Igreja, um conhecer a Deus pessoalmente, afetivamente. Mas São Paulo trata também de outro dois conhecimentos. Ao todo, são três:

1) EPIGNOSIS
2) GNOSIS
3) DIANOIA

Sobre a primeira já nos debruçamos.

Gnosis (v. 2) é o conhecimento geral não-sensível. É o conhecer clássico. Quando avistamos um livro, intuímos algumas de suas características básicas imediatamente, mas é a razão que irá formar conceitos/definições e impressões de igualdade/diferença, classificar, remover, trabalhar arduamente num processo mais demorado. Gnosis (ou Gnose) é conhecer por meio da razão. O que São Paulo inaugura não é o conceito, mas ele põe o conhecimento geral em seu lugar: junto com a Sofia (Sabedoria), em Cristo. Toda a gnose está em Cristo. Não é a gnose que nos levará a Cristo. É Cristo que nos levará à gnose. Todo o conhecimento está em Cristo e o ímpio, por ignorância, jamais atingirá o conhecimento total. Isso porque a Epignosis é o caminho para toda a Gnose. O conhecimento está em Cristo e somos levados a Cristo pela epignose.

A última forma de conhecer é a Dianoia (1:21) que, diferente da dianoia platônica, é o conhecimento objetivado (não objetivo, mas objetivado). Um conhecimento quase teleológico. É o “conhecer o objetivo”. É esse conhecimento que leva o homem à conversão, ao “sintonizar-se” conforme Deus.

Em suma, a ordem do conhecer é:

DIANOIA (conversão) -> EPIGNOSE (conhecimento íntimo) -> GNOSE

Mas ordenar é reduzir a questão, pois a gnose é discursiva em todas as outras e a dianoia perpetua-se em todo o percorrer.

Em São Paulo, muitíssimo diferente do Solipsismo de Bekeley ou do Empirismo Cartesiano, o sujeito apreende o objeto, mas o objeto o transforma, gerando assim novos esquemas necessários à nova compreensão. Em Cristo e somente em Cristo temos a plena gnose. Por isso, enfatizamos: vida intelectual sem vida devocional é morta e seus frutos, quer em uma época ou noutra, murcharão

por Diego Cândido

Autor: Diego Cândido, editor do Instituto Aletheia.

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