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Do livro Ecce Homo por Louis Claude de Saint Martin, publicado pela Sociedade das Ciências Antigas
Capítulo IV
Independente dos meios comuns e gerais de que se servem o erro e a mentira para obscurecer, quotidianamente, nosso olhar sobre nosso próprio estado de miséria, assim como para nos iludir com esperanças inúteis, o espírito das trevas descobriu instrumentos ainda maiss desviantes e funestos.
De fato, os erros de que já falamos parecem recair mais sobre o aspecto exterior do homem e suas características visíveis, do que sobre seu universo interior e espiritual. A simples moral seria, portanto, suficiente para mantê-lo afastado de tais erros; e esses, mesmo sendo a causa de tanta dor, no máximo tornariam o caminho da vida mais difícil. Mas os instrumentos de fraqueza dos quais iremos falar, têm pelo contrário, o tremendo poder de transtornar o homem a ponto de não permitir-lhe reencontrar a via justa. Aqui o sentido da frase Ecce Homo se revela num trágico pranto.
O nosso estado primitivo permitia que nos aproximássemos de conhecimentos superiores e nos alegrássemos visivelmente com a vida do espírito, revestido do esplendor da sua própria luz. Nos conferia também autoridade sobre os diversos habitantes do mundo, que hoje se encontram ocultos para nós pelo denso véu dos elementos.
Depois da nossa queda, num instante providencial a Sabedoria escolheu um mortal qualquer, mesmo envolto em trevas, para torná-lo participante de tão grande privilégio.
Mas as mesmas trevas reanimaram-se, em contraste com a presença de tão grande luz, e procuraram tomar-lhe o lugar. Fizeram isso repetindo os eventos dos quais foram testemunhas e atingiram o espírito do homem com os meios certos para enganá-lo.
As potências obscuras podem, de fato, ler contemporaneamente nos férteis meandros do pensamento humano. Numa maneira ainda mais válida e capaz de dirigir contra o eu o mesmo pensamento que deveria constituir seu guia, seu apoio e sua certeza em um destino universal.
As graças superiores enviadas diretamente da Sabedoria para alguns mortais tinham esta dupla prerrogativa: ensinavam igualmente a doçura e a magnificência dos dons oferecidos à nossa alegria, para fazer-nos compreender o quanto absurda tem sido a negação na qual tivemos a imprudência de imergir. Em tal espírito, esses homens privilegiados divulgam as suas instruções para os outros seres.
As corruptas obras geradas pelas trevas têm, pelo contrário, o objetivo de convencer o homem de que ele goza ainda de todos o seus direitos. Ocultam-lhe seu real estado de privação espiritual, que é o verdadeiro sinal ao qual está ligada a definição Ecce Homo. Mas é no conhecimento de tal privação que está a condição indispensável da nossa reconciliação com a Sabedoria. Ao homem, não basta apenas se afastar de seu interior para que os frutos das trevas o envolvam e se misturem a sua atividade espiritual, analogamente a uma respiração que, se contaminada pelo ar poluído, torna-se sufocante e infectada pelo miasma podre da corrupção. A Sabedoria suprema sabe exatamente o estado dos nossos abismos e procura socorrer-nos o mais que possível; freqüentemente, porém, é obrigada a recolher-se em si mesma, devido a horrível desfiguração dada às suas próprias mensagens. A sorte para provar a aproximação de tal Sabedoria, o poder do homem para divisar com sua luz a decadente matéria da qual é composto e a amargura com que se aflige a Sabedoria, tornarão possível a qualquer mortal conhecer, por experiência ou analogia, os riscos que corre quando se afasta do seu centro interior e se dirige à exterioridade.
Os sábios procuram divulgar seus ensinamentos com a máxima prudência, precavendo-se para que os tesouros da verdade não sejam enlameados pela corrupção que opera nos abismos do mundo.
Sabem muito bem que a fonte da luz reside no Centro interior e invisível, e que a razão pela qual o mundo progride tão lentamente em direção aos caminhos consagrados do esplendor, é que só se serve exteriormente e superficialmente do instrumento de comunicação. Assim, deixa de fundamentar-se sobre as raízes vivas da Potência interior a única chama que pode reavivar todas as autênticas perspectivas do ato da comunicação. De fato, somente no interior reside a Palavra viva e criadora.
Além disso, freqüentemente o mundo parece esquecer que as verdades mais preciosas das quais tomou conhecimento, segundo a sua natureza, só podem vir expressas na dor e no silêncio, e que a boca física do homem não é digna de enunciar, assim como o ouvido físico não é digno de escutar.
A imprudência se transformou em hábito e devido a ela o homem permanece eternamente imerso nos abismos da confusão. Abismos destinados a tornarem-se sempre mais funestos e obscuros e a gerarem contínuos estados de oposição. Assim colocado no centro de potências múltiplas e terrificantes, a puxá-lo e arrastá-lo em todos os sentidos, seria um prodígio se o homem conseguisse conservar no coração um sopro do céu e na espiritualidade uma centelha de luz.
Com nossa leviandade, que vantagens não oferecemos ao Príncipe das trevas, sempre em busca de estabelecer seu reino na imitação da verdade? Certamente, procuramos nos abandonar o menos possível à fraqueza secreta que nos induz a procurar fora de nós o apoio que podemos encontrar somente em nós mesmos. Tentemos, portanto, conservar-nos, restabelecendo nossa qualidade de Seres naturais, verdadeiros e simples, que como crianças ainda permanecem suscetíveis para acolher os dons enviados do alto. Mas como se não bastassem as várias missões espirituais e divinas de que estamos investidos, o Príncipe das trevas nos leva a adentrar sempre mais na espacialidade exterior.
Uma vez imersos nela, ele nos retém com o fascínio e com as alegrias que lá começamos a experimentar e que nos fazem esquecer rapidamente das alegrias da vida interior - tão calmas e pacíficas quanto são agitadas e turbulentas as primeiras. Depois de nos reter na exterioridade física, ele nos induz a habitá-la com o veneno da nossa contemplação e o instrumento funesto dos olhos de nossos semelhantes. Esses, estando afastados como nós do próprio mundo interior, exercitam sua influência desviante sobre nossas manifestações imprudentes; arrastam-nos na obscuridade e na mentira, despertando finalmente em todos nós os instintos opostos à simplicidade, à tranqüilidade e à humildade - inalteráveis e duráveis e que nos teriam animado em direção ao nosso interior.
Certamente o homem não violaria a liberdade do próprio semelhante, conscientizando-o sobre o quanto a verdadeira obra humana encontra-se longe de todos os impulsos exteriores. Como já foi dito, o nosso lugar no mundo exprime o aspecto típico da Divindade. Todos repousamos sobre uma raiz viva que deve operar em nós atividades regulares para uma harmonia germinativa. Em torno a nós e por nosso intermédio, verificam-se fatos exteriores no que diz respeito ao curso ordinário da natureza. Mas quer exista uma natureza e um mundo, quer não exista, nossa obra deve ter sempre seu próprio curso. Nós representamos uma insignificante nulidade, enquanto Deus resume a razão de tudo. Devemos, portanto, venerar à Deus e não nos ancorarmos em fatos impuros ou mesmo nos fatos legítimos, sejam quais forem.
Entre os caminhos secretos e perigosos dos quais o Príncipe das trevas se assenhora para desviar-nos, devemos ressaltar todas as extraordinárias manifestações que têm caracterizado os séculos.
Elas não teriam nos prejudicado tanto, se não houvéssemos perdido de vista o verdadeiro caráter do nosso ser, sobretudo se conhecêssemos melhor a perspectiva espiritual da nossa história desde a origem de todas as coisas.
A maior parte desses caminhos secretos foram abertos de boa fé por aqueles que os conheciam, sem nenhum objetivo perverso. Mas não podendo encontrar em tais homens favorecidos pela sorte a “prudência da serpente” em união com a “inocência da pomba”, esses mesmos homens incorporaram em si o entusiasmo da inexperiência, ao invés do sentimento sublime e profundo da santa magnificência de Deus.
Assim, o Príncipe do mal teve a possibilidade de intrometer-se nesses caminhos e de gerar neles uma infinidade de diferentes combinações que tendem a obscurecer a simplicidade ditada pela Luz.
Em alguns, o Príncipe das trevas provoca somente sombras leves, quase imperceptíveis em relação à abundância de luzes que as contrabalançam; em outros, a contaminação é suficiente para dominar o elemento puro. Noutros casos, o Príncipe das trevas estabelece o próprio domínio com o objetivo de tornar-se o único chefe e o único regulador das situações.
Alguns escritores inspirados e de boa vontade nos mostraram que na constituição do universo está uma das vias das quais o Príncipe das trevas se serve para propagar suas ilusões. Esses escritores prestaram às nações desviadas o maior serviço que se poderia esperar. Essas nações deverão meditar atentamente sobre este raio de luz. Raio que revelará claramente a fonte da abominação e dos erros religiosos, que por outro lado já atraíram sobre povos famosos as vinganças da cólera divina. As nações poderão obter os conhecimentos mais vastos e úteis de que necessitam os tempos modernos - tempos mais semelhantes aos antigos do que se possa imaginar. A inteligência do homem tem à disposição esta chave.
Podemos portanto, limitar-nos a considerar os frutos da obra das forças tenebrosas que desviaram tantos mortais e percorrer os diferentes sinais onde tais frutos podem ser reconhecidos, assim como as desilusões reservadas àqueles que se nutrem deles.
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