quarta-feira, 12 de julho de 2017

Regras Universais do Zazen

Fukanzazengi – Regras universais do zazen (Manual de meditação de Eihei Dogen Zenji – Japão, 1200‐1253) Agora, quando procuramos a fonte do Caminho, descobrimos que é universal e absoluta. Torna-se desnecessário distinguir entre prática e iluminação. O ensinamento supremo é livre, então por que deveríamos estudar os meios de atingilo? Sem dúvida, o Caminho está bem longe da delusão. Por que, então, preocupar-nos com os meios de eliminá-la? O Caminho está completamente presente onde você está, então qual a necessidade de prática e de iluminação? Contudo, se no início houver a menor diferença entre você e o Caminho, o resultado será uma separação maior do que aquela entre o céu e a Terra. Se surgir o menor pensamento dualista, você perderá sua mente‐Buda. Por exemplo, algumas pessoas se orgulham de sua compreensão e acreditam que estão ricamente dotadas com a sabedoria de Buda. Crêem que já alcançaram o Caminho, iluminaram sua mente e conquistaram o poder de tocar os céus. Imaginam que estão andando no reino da iluminação. Mas o fato é que quase perderam o Caminho absoluto, que está além da própria iluminação. Ainda se vêem as marcas daquele que por seis anos sentou-se ereto1 e se ouvem os ecos do Monte Shaolin, onde por nove anos sentou-se de face para a parede aquele que transmitiu o selo da mente2 . Já que esses antigos sábios eram tão diligentes, como podem os praticantes dos dias atuais deixarem de praticar zazen? Devemos parar de correr atrás de palavras e de letras e aprender a nos retirar e refletir sobre nós mesmos. Quando assim fazemos, nosso corpo e nossa mente são naturalmente transcendidos, e nossa natureza‐Buda original se manifesta. Se almejamos realizar3 a sabedoria de Buda, devemos começar a praticar imediatamente. Para fazer zazen, é desejável um local tranquilo. Devemos ser moderados no comer e no bebe abandonando todo relacionamento deludido. Deixando tudo delado, não pensemos nem no bem, nem no mal, nem no certo, nem no errado. Assim, tendo cessado a agitação da mente, abandonamos até mesmo a ideia de nos tornar Buda. Isso é verdadeiro não só para o zazen, mas para todas as nossas ações cotidianas, sem apego ao nos sentar ou ao nos deitar. Geralmente, colocamos um acolchoado quadrado no chão, onde vamos nos sentar, e sobre ele, uma almofada redonda. Podemos nos sentar na posição de lótus ou na de meio-lótus. Na primeira, colocamos o pé direito sobre a coxa esquerda e, em seguida, o pé esquerdo sobre a coxa direita. Na segunda, apenas colocamos o pé esquerdo sobre a coxa direita. As roupas devem ser folgadas, mas bem arrumadas. Em seguida, colocamos o dorso da mão direita sobre o pé esquerdo e o dorso da mão esquerda sobre a palma direita, com a ponta dos polegares se tocando levemente. Devemos nos sentar perfeitamente eretos, nem inclinados à direita, nem à esquerda, nem para a frente, nem para trás. As orelhas devem estar alinhadas com os ombros, e o nariz, alinhado com o umbigo. A ponta da língua deve ser colocada no palato, e os lábios e os dentes devem se encostar suavemente. Mantendo os olhos entreabertos, respiramos suavemente pelas narinas. Finalmente, tendo regulado o corpo e a mente, fazemos uma respiração profunda, movendo nosso corpo para a esquerda e para a direita, e então devemos ficar imóveis, sentados tão firmes quanto uma rocha. Existe o pensar, existe o não pensar e existe o além do pensar e do não pensar. Essa é a verdadeira base do zazen. Zazen não é meditação passo a passo. É o portal do Darma da agradável tranquilidade, é a prática e a realização da iluminação, é tornar-se o koan4 . A verdade aparece, não mais havendo delusão. Se compreendermos isso, estaremos completamente livres, como um dragão na água ou um tigre recostado na montanha. O Darma Correto surge naturalmente, e ficamos completamente livres de todo o cansaço e confusão. Ao terminarmos o zazen, devemos mover o corpo devagar e nos levantar com calma. Não devemos nos mover bruscamente. Pela virtude do zazen, é possível transcender a diferença entre o comum e o sagrado e obter a capacidade de morrer sentado ou de pé. Além do mais, é impossível para nossa mente discriminatória compreender como os Budas e Ancestrais do Darma comunicaram a essência do Zen a seus discípulos com o levantar de um dedo, com uma vara, jogando uma agulha ou batendo com o martelo de madeira5 ; ou como eles transmitiram a iluminação com o levantar de um hossu6 , de um punho, de um bastão ou com um grito. Tampouco esse assunto pode ser compreendido por meio de poderes sobrenaturais ou de uma visão dualista de prática e iluminação. Zazen é a prática além dos mundos subjetivo e objetivo, além do pensamento discriminatório. Assim, nenhuma discriminação deverá ser feita entre o inteligente e o não inteligente. Praticar o Caminho com todo o respeito é, em si mesmo, iluminação. Não existe separação entre a prática e a iluminação, ou entre o zazen e a vida cotidiana. Os Budas e Ancestrais do Darma, tanto neste país quanto na Índia e na China, todos preservaram cuidadosamente a mente‐Buda e incentivaram assiduamente o treinamento zen. Devemos, pois, nos dedicar exclusivamente e ser completamente absorvidos pela prática do zazen. Apesar da divulgação de inúmeras maneiras de compreender o budismo, devemos praticar somente o zazen. Não há motivo para abandonarmos nosso assento de meditação e fazermos viagens inúteis a outros países. Se nosso primeiro passo for errado, inevitavelmente tropeçaremos. Já tivemos a boa fortuna de nascer com um corpo precioso, então não devemos desperdiçar nosso tempo à toa. Agora que sabemos qual é a coisa mais importante no budismo, como podemos ficar satisfeitos com o mundo transitório? Nosso corpo é como o orvalho sobre a relva, e nossa vida, como o clarão de um raio, que desaparece num instante. Sinceros praticantes zen, não se espantem com o Verdadeiro Dragão7 , nem gastem muito tempo inutilmente apalpando apenas uma pequena parte do elefante8 . Dediquem seus esforços ao Caminho que leva diretamente à natureza‐Buda. Respeitem aqueles que alcançaram o conhecimento completo, que estão sem intenção de intenção. Tornem-se um com a sabedoria dos Budas e, assim, sucessores legítimos da iluminação dos Ancestrais. Praticando dessa maneira, certamente serão capazes de compreender tudo isso. Então, a casa do tesouro naturalmente se abrirá e vocês poderão se servir à vontade.
__________________________________
1 Xaquiamun Buda. i 2 Bodidarma. 3 Tornar real, autenticar. Não é exatamente alcançar. O significado aqui é mais próximo de perceber, de despertar, de vivenciar a sabedoria suprema e torná-la real na vida de cada praticante. Permitir que essa sabedoria se manifeste com a prática. Dogen Zenji Sama insiste em afirmar que prática é realização. Não praticamos para nos tornar Buda, mas porque somos Buda praticamos. Sem prática, porém, não há iluminação (estado Buda).
4 Algumas vezes traduzido como “pegadinha zen”, koan originalmente significa um Édito Imperial na China antiga. Atualmente, refere-se a situações históricas de perguntas e respostas de antigos e famosos mestres zen, com o objetivo de levar os praticantes à iluminação, ao despertar (satori ou mezameru, em japonês), por meio da transcendência da mente dualista. Na tradição Soto, a vida diária é considerada o koan essencial, a manifestação da verdade.
5 Alusão ao han, instrumento de ma eira tocado para anunciar atividades no mosteiro. d 6 Bastão com pelos em uma das extremidades, usado nas cerimônias, simbolizando os fios de cabelo que saem do terceiro olho de Buda. 7 Referência a um monge que desenhava e colecionava imagens de dragões, mas, quando encontrou um dragão de verdade, fugiu apavorado. 8 Menção a um ensinamento de Buda segundo o qual um elefante foi apresentado a algumas pessoas om deficiência visual e pediu-se que descrevessem o que era. Cada uma delas conseguiu ter apenas ma ideia parcial do animal, conforme a parte que apalpou.


Nenhum comentário:

Postar um comentário