quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A LIBERDADE...

 


— Nikolai Berdiaev - 
A LIBERDADE (em “O Espírito de Dostoiévski”) - Pags 55-59

O tema do homem e de seu destino, para Dostoiévski, é, antes de tudo, o tema da liberdade. O destino do homem, suas dolorosas peregrinações são determinadas por sua liberdade. A liberdade é colocada no próprio centro da concepção do mundo de Dostoiévski: e seu patético oculto é o próprio patético da liberdade. É surpreendente que até então não se tenha assinalado este traço senão de maneira insuficiente. Sem dúvida podem citar-se numerosas passagens do “Diário de um Escritor” em que Dostoiévski parece ser o inimigo da liberdade política em geral, onde ele se afirma conservador, mesmo reacionário, e estas características exteriores impediram encarar a liberdade como o cerne de sua obra, como a chave que domina toda a compreensão de sua filosofia. O que se chamou a "crueldade" de Dostoiévski está em ligação direta com esta noção da liberdade. Ele foi “cruel”, porque não quis retirar ao homem o fardo de sua liberdade, e não quis livrá-lo do sofrimento ao preço da perda desta liberdade, e porque lhe impôs uma responsabilidade enorme, correspondente precisamente à sua dignidade de ser livre. Talvez fosse possível aliviar os tormentos humanos privando o homem de sua liberdade. Possibilidade de que Dostoiévski explorou até ao fim todas as entradas. Tem ele, sobre este assunto, pensamentos geniais. Para ele, a liberdade é simultaneamente uma antropodiceia; é mister procurar juntamente nela a justificação do homem e a justificação de Deus. Todo o processo do mundo só existe em função da liberdade; é uma tragédia cujo desfecho está subordinado ao desenrolar deste tema. 

Assim, como vimos, Dostoiévski estuda exclusivamente o destino do homem em liberdade. Só este destino o interessa: destino do homem na liberdade e da liberdade no homem. Todos os seus romances — suas tragédias — representam a experiência da liberdade humana. O homem a revoltar-se em nome desta liberdade, disposto a todos os sofrimentos, disposto à loucura, sob a condição de sentir-se livre. E procura ao mesmo tempo a liberdade extrema, final. 


Existem, com feito, duas espécies de liberdade: a primeira, a liberdade inicial, e a última, a liberdade final. Entre as duas se 
estende o caminho do homem, cheio de tormentos e de sofrimentos, o caminho do desdobramento. Santo Agostinho, na sua luta contra o pelagianismo, ensinara também a existência de duas liberdades: “libertas minor” e “libertas maior”. A liberdade menor era a primeira, a inicial, a liberdade de escolher o bem, que supõe a possibilidade do pecado: a liberdade superior era a última, a liberdade final, a liberdade em Deus, no próprio seio do bem. Santo Agostinho foi o apologista da segunda, da liberdade maior, e assim acabou por chegar à doutrina da predestinação. E, embora a Igreja tenha suavizado sua doutrina no que concerne à liberdade, nem por isso exerceu menos sobre o catolicismo uma influência desfavorável à liberdade. Uma coisa permanece certa: existe não uma, mas duas liberdades, a primeira e a última; a liberdade de escolher o bem e o mal, e a liberdade no seio do bem; uma liberdade irracional e uma liberdade na razão. 


Sócrates só conheceu a segunda, a liberdade razoável. Igualmente, as palavras evangélicas: "Reconhecei a Verdade e a Verdade vos libertará" se referem à segunda liberdade no seio do Cristo. Quando dizemos que o homem deve libertar-se das coisas inferiores, do domínio das paixões, que deve deixar de ser escravo de si mesmo e do mundo circundante, temos em vista a liberdade segunda. A aspiração mais alta da liberdade do espírito refere-se a esta segunda liberdade. A liberdade do primeiro Adão e a do segundo Adão, isto é, no Cristo, são liberdades diferentes. A verdade torna livre o homem, mas o homem deve livremente acolher esta Verdade. Não deve estar constrangido e chegar a ela à força. O Cristo dá ao homem a liberdade última, mas o homem deve ter aderido, primeiro, livremente ao Cristo. "Desejaste o livre amor do homem, a fim de que livremente vá a Ti, seduzido e cativado por Ti" (são as palavras do Grão Inquisidor). 


Nesta livre adoção do Cristo reside toda a dignidade do cristão, todo o sentido do ato de fé que é, antes de tudo, um ato de liberdade. A dignidade do homem, a dignidade da fé supõe o reconhecimento de duas liberdades, liberdade na escolha da Verdade e liberdade na Verdade. A liberdade não pode ser identificada com o bem, com a verdade ou com a perfeição. Ela tem uma natureza autônoma, ela é a liberdade e não o bem. E toda confusão ou identificação da liberdade com o bem mesmo e com a perfeição será uma negação da liberdade, a corroboração dos caminhos do constrangimento. O bem notório já não é o bem; ele mergulha no mal. Mas o bem livre, que é o bem verdadeiro, supõe a liberdade do mal.

É aí que reside a tragédia da liberdade que Dostoiévski estudou e apreendeu na sua profundeza. E nisto está encerrado o mistério do cristianismo. A dialética trágica se desenrola como segue: o bem livre supõe a liberdade do mal. Mas a liberdade do mal conduz à destruição da própria liberdade, à sua degenerescência numa necessidade má. Por outro lado, a negação da liberdade do mal e a afirmação da liberdade exclusiva do bem terminam igualmente na negação da liberdade, na sua degenerescência numa necessidade boa. Necessidade boa que já não é o bem, porquanto não há bem senão na liberdade. 

Este trágico problema ocupou o pensamento cristão durante todo o curso de sua história. Encontramo-lo ligado à luta de santo Agostinho contra o pelagianismo, à doutrina sobre as relações entre a liberdade e a graça, aos debates suscitados pelo jansenismo, à negação por Lutero da liberdade do homem, ao sombrio ensinamento de Calvino sobre a predestinação. O pensamento cristão sempre esteve opresso por dois fantasmas, o da má liberdade e o do bom constrangimento. A liberdade sucumbiu, quer pelo mal que se descobria nela, quer pela obrigação do bem. As fogueiras de Inquisição foram as testemunhas espantosas desta tragédia da liberdade e da dificuldade que havia em resolvê-la, mesmo pela consciência cristã esclarecida pela luz do Cristo. A negação da liberdade primeira, isto é, de crer ou de não crer, de aceitar ou de rejeitar a verdade, esta negação leva infalivelmente à doutrina da predestinação. A Verdade atrairia a ela sem a participação da liberdade. Perigosa ilusão. 

E a ortodoxia, embora muito propícia à liberdade, não reconheceu suficientemente que a liberdade trazia em si uma verdade que convém descobrir. O que existe não é somente a liberdade na Verdade, mas a Verdade sobre a liberdade. E não se deve procurar a solução do eterno problema da liberdade no fato de que o Cristo não é só a Verdade, mas a Verdade sobre a liberdade, a Verdade livre, que o Cristo mesmo é a liberdade, o livre amor? Aqui a gente confunde os momentos formais e materiais na compreensão da liberdade. Os que já possuem a liberdade segunda, maior, quiseram com efeito negar a liberdade primeira, a liberdade de escolher o bem ou o mal, como uma liberdade puramente formal. Sua verdade intransigente não quis tolerar, ao lado dela, a possibilidade do erro.

Todavia, esta liberdade de consciência, esta liberdade de escolha entre o bem e o mal, é uma liberdade material e Dostoiévski demonstra que ela faz parte do cristianismo, que o cristianismo comporta, abraça a liberdade toda inteira: rejeitá-la seria renunciar a possuir esta verdade da liberdade que, conforme vimos, é a própria Verdade do Cristo. O cristianismo é, pois, a religião da liberdade; por sua essência, por seu conteúdo, ele a reconhece sob todas as suas formas. No cristianismo, tal como o entende Dostoiévski, a tragédia da liberdade remata na vitória sobre o constrangimento. A própria graça do Cristo é a liberdade, liberdade completa que não poderia ser destruída, nem pelo mal (como a liberdade primeira), nem pelo constrangimento do bem (como a liberdade segunda). Na graça do amor livre, a liberdade divina e a liberdade humana se reconciliam. Mas a Verdade divina, a Verdade do Cristo projetou um raio desviado até sobre esta liberdade primeira, esta liberdade de escolha entre o bem e o mal, como sobre uma parte inalienável de si mesma. A liberdade do espírito humano, e a liberdade de consciência fazem parte da Verdade cristã: mas isto, o próprio cristianismo não o revelara suficientemente até agora. Dostoiévski deu, neste caminho, um enorme passo para frente. 





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