— Nikolai Berdiaev - A LIBERDADE (em “O Espírito de Dostoiévski”) - Pags 55-59
Sócrates só conheceu a segunda, a liberdade razoável. Igualmente, as palavras evangélicas: "Reconhecei a Verdade e a Verdade vos libertará" se referem à segunda liberdade no seio do Cristo. Quando dizemos que o homem deve libertar-se das coisas inferiores, do domínio das paixões, que deve deixar de ser escravo de si mesmo e do mundo circundante, temos em vista a liberdade segunda. A aspiração mais alta da liberdade do espírito refere-se a esta segunda liberdade. A liberdade do primeiro Adão e a do segundo Adão, isto é, no Cristo, são liberdades diferentes. A verdade torna livre o homem, mas o homem deve livremente acolher esta Verdade. Não deve estar constrangido e chegar a ela à força. O Cristo dá ao homem a liberdade última, mas o homem deve ter aderido, primeiro, livremente ao Cristo. "Desejaste o livre amor do homem, a fim de que livremente vá a Ti, seduzido e cativado por Ti" (são as palavras do Grão Inquisidor).
Nesta livre adoção do Cristo reside toda a dignidade do cristão, todo o sentido do ato de fé que é, antes de tudo, um ato de liberdade. A dignidade do homem, a dignidade da fé supõe o reconhecimento de duas liberdades, liberdade na escolha da Verdade e liberdade na Verdade. A liberdade não pode ser identificada com o bem, com a verdade ou com a perfeição. Ela tem uma natureza autônoma, ela é a liberdade e não o bem. E toda confusão ou identificação da liberdade com o bem mesmo e com a perfeição será uma negação da liberdade, a corroboração dos caminhos do constrangimento. O bem notório já não é o bem; ele mergulha no mal. Mas o bem livre, que é o bem verdadeiro, supõe a liberdade do mal.
É aí que reside a tragédia da liberdade que Dostoiévski estudou e apreendeu na sua profundeza. E nisto está encerrado o mistério do cristianismo. A dialética trágica se desenrola como segue: o bem livre supõe a liberdade do mal. Mas a liberdade do mal conduz à destruição da própria liberdade, à sua degenerescência numa necessidade má. Por outro lado, a negação da liberdade do mal e a afirmação da liberdade exclusiva do bem terminam igualmente na negação da liberdade, na sua degenerescência numa necessidade boa. Necessidade boa que já não é o bem, porquanto não há bem senão na liberdade.
Este trágico problema ocupou o pensamento cristão durante todo o curso de sua história. Encontramo-lo ligado à luta de santo Agostinho contra o pelagianismo, à doutrina sobre as relações entre a liberdade e a graça, aos debates suscitados pelo jansenismo, à negação por Lutero da liberdade do homem, ao sombrio ensinamento de Calvino sobre a predestinação. O pensamento cristão sempre esteve opresso por dois fantasmas, o da má liberdade e o do bom constrangimento. A liberdade sucumbiu, quer pelo mal que se descobria nela, quer pela obrigação do bem. As fogueiras de Inquisição foram as testemunhas espantosas desta tragédia da liberdade e da dificuldade que havia em resolvê-la, mesmo pela consciência cristã esclarecida pela luz do Cristo. A negação da liberdade primeira, isto é, de crer ou de não crer, de aceitar ou de rejeitar a verdade, esta negação leva infalivelmente à doutrina da predestinação. A Verdade atrairia a ela sem a participação da liberdade. Perigosa ilusão.
E a ortodoxia, embora muito propícia à liberdade, não reconheceu suficientemente que a liberdade trazia em si uma verdade que convém descobrir. O que existe não é somente a liberdade na Verdade, mas a Verdade sobre a liberdade. E não se deve procurar a solução do eterno problema da liberdade no fato de que o Cristo não é só a Verdade, mas a Verdade sobre a liberdade, a Verdade livre, que o Cristo mesmo é a liberdade, o livre amor? Aqui a gente confunde os momentos formais e materiais na compreensão da liberdade. Os que já possuem a liberdade segunda, maior, quiseram com efeito negar a liberdade primeira, a liberdade de escolher o bem ou o mal, como uma liberdade puramente formal. Sua verdade intransigente não quis tolerar, ao lado dela, a possibilidade do erro.
Todavia, esta liberdade de consciência, esta liberdade de escolha entre o bem e o mal, é uma liberdade material e Dostoiévski demonstra que ela faz parte do cristianismo, que o cristianismo comporta, abraça a liberdade toda inteira: rejeitá-la seria renunciar a possuir esta verdade da liberdade que, conforme vimos, é a própria Verdade do Cristo. O cristianismo é, pois, a religião da liberdade; por sua essência, por seu conteúdo, ele a reconhece sob todas as suas formas. No cristianismo, tal como o entende Dostoiévski, a tragédia da liberdade remata na vitória sobre o constrangimento. A própria graça do Cristo é a liberdade, liberdade completa que não poderia ser destruída, nem pelo mal (como a liberdade primeira), nem pelo constrangimento do bem (como a liberdade segunda). Na graça do amor livre, a liberdade divina e a liberdade humana se reconciliam. Mas a Verdade divina, a Verdade do Cristo projetou um raio desviado até sobre esta liberdade primeira, esta liberdade de escolha entre o bem e o mal, como sobre uma parte inalienável de si mesma. A liberdade do espírito humano, e a liberdade de consciência fazem parte da Verdade cristã: mas isto, o próprio cristianismo não o revelara suficientemente até agora. Dostoiévski deu, neste caminho, um enorme passo para frente.
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