terça-feira, 19 de janeiro de 2021

"Teosofia" sem véu - parte 3

 

H. P. Blavatsky e o Caso Coulomb

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Helena P. Blavatsky (1831-1891) tinha muitos motivos para se preocupar.

O intrincado Caso Coulomb e o contestado Relatório Hodgson não decidiram sobre a falsidade ou não dos fenômenos extraordinários que cercavam Helena P. Blavatsky, portanto o leitor poderá perguntar qual o motivo então de tratá-los aqui se eles não solucionam a questão. A resposta é que o assunto merece tratamento aqui, uma vez que é pouco conhecido dos leitores da língua portuguesa, devido às escassas traduções sobre o caso e, ademais, pelo curioso fato de que, mesmo assim, ele é importante como exemplo histórico de como os grupos religiosos são capazes de sobreviver, e de até crescer, graças às circunstâncias de dúvida e das situações de indefinição. Com certa frequência, alguns dos fatores que mais contribuíram para a longa sobrevivência das religiões, durante os tantos séculos da sua existência, foram a dúvida, o mistério e a incerteza, uma vez que, nestas situações, é maior, e sempre foi, o número de indivíduos que preferem acreditar do que desconfiar. Em outras palavras, existem muitos que acreditam mais no que ouvem dos outros, do que aquilo que podem testemunhar com os seus próprios olhos e analisar com seu raciocínio, de modo que, em muitos indivíduos, a predisposição para a credulidade é mais forte do que a predisposição para a desconfiança, e este traço humano ajudou na propagação e no crescimento das religiões. Se o contrário tivesse sido o predominante, as religiões sempre teriam sido instituições com poucos seguidores.

Outro motivo é a importância de mostrar os fatos e os problemas que acontecem com os grupos religiosos, os quais são ocultados pela pregação dos seus adeptos e pela apologia dos seus admiradores. A história das religiões não é só um ‘mar de rosas’, tal como encontramos nos relatos dos seus simpatizantes, de modo que Helena P. Blavatsky, uma das fundadoras da Sociedade Teósofica, enfrentou muitas controvérsias e muitas acusações de fraudes, sendo o Caso Coulomb o primeiro de grandes proporções. Enfim, apesar da indefinição, o Caso é interessante para mostrar a quantidade de sujeira que sobe à superfície quando duas partes culpadas se confrontam, através de uma artilharia de acusações mútuas.

Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891)

            Ela é reconhecida por quase todos os esoteristas como “a mãe do esoterismo moderno”, uma das fundadores e figura central da Sociedade Teosófica, sendo talvez a mais importante personagem na revitalização do ocultismo no século XIX. Helena P. Blavatsky nasceu em Ekaterinoslav (atual Dnipropetrovsk) na Ucrânia. Sua mãe, Helena Andreyevna, foi uma conhecida novelista que morreu ainda jovem. Sua herança familiar combinava origens russa, francesa e alemã, sua avó materna, a princesa Helena Pavlovna Dolgorukov, era descendente de uma das mais antigas famílias da Rússia. Sua infância foi marcada por numerosos fenômenos anormais, os quais são denominados de psíquicos pelos espíritas e pelos esoteristas. Desde cedo ela se interessou pelo ocultismo, enfiando-se na biblioteca de livros ocultos do príncipe Pavel Dolgorukov, seu bisavô materno, que tinha sido iniciado na Maçonaria Rosacruz.

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Poucos sabem, mas H. P. Blavatsky era obesa, temperamental, fumante, caloteira, nunca teve uma profissão e vivia cercada de acusações de fraudes.

            Ela se casou em 1849, com a idade de dezessete anos, com Nikifor Blavatsky, vice-governador da província Erivan na Armênia, que tinha sessenta anos de idade na época das bodas, porém, abandonou o seu marido na lua de mel, por não ter afeição por ele. Ela então iniciou uma série de longas viagens pelo mundo afora. Descritos em seus relatos, os quais não foram, em grande parte, confirmados e com a cronologia conflitante, estas viagens a levaram à Europa, ao Oriente Médio, à América do Norte e, possivelmente, à Índia e ao Tibete, por um período de vinte e cinco anos. Estas longas viagens, extraordinárias para uma mulher naqueles tempos, registram sua incansável busca pelo contato com sábios e mestres ocultos.

            O início de suas viagens está no Oriente Médio. Inicialmente, ela viajou para a Turquia, para a Grécia e para o Egito. Às vezes ela viajou com Albert Rawson (1828-1902), um jovem explorador norte americano, autor e artista. Em 1850, eles estudaram com Paolos Metamon, um mago copta, no Cairo. No começo de 1851, ela foi para Londres pela França, e em agosto ela encontrou pela primeira vez com seu “Mestre”. Ele supostamente lhe informou que ela deveria se preparar para uma importante tarefa que lhe exigiria a permanência de três anos de preparação no Tibete. Suas subsequentes peregrinações pelos EUA (supostamente com Rawson de novo) e pela América Latina a conduziu à Índia em 1852, mas ela não conseguiu entrar no Tibete desta vez. Em 1854, ela estava novamente nos EUA, e daí viajou pela Índia, pela Caxemira, pela Birmânia (atual Myanmar) e partes do Tibete em 1856-7. No Natal de 1858, ela regressou para sua família na Rússia, ocasião quando ela exibiu sua habilidade de realizar fenômenos psíquicos (rappings, sons de sinos, locomoção de mobílias e telepatia). No início de 1868, em Florença, ela ouviu de seu “mestre” que ela deveria se juntar a ele em Constantinopla, e daí ela viajou por terra para o Tibete.

            Seu “mestre’, conhecido como Morya, foi dito residir perto do grande e importante mosteiro de Tashi Lhunpo, em Shigatse, no Tibete, a sede do Panchen Lama (o mais importante líder da seita Geluk-pa do Budismo Tibetano depois do Dalai Lama, ou seja, o segundo na hierarquia desta majoritária corrente tibetana). Neste local, Morya e outro “mestre”, Koot Hoomi, conduziam uma escola para adeptos ao lado do mosteiro. Estes “mestres” são compreendidos pelos teósofos como sendo avançados adeptos com poderes sobre-humanos que não eram sujeitos ao mosteiro, tampouco às suas regras, mas tinham completo acesso a sua biblioteca e aos seus recursos (Goodrick-Clarke, 2008: 213).

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Vista parcial do mosteiro Tashi Lhunpo, no Tibete, nos arredores do qual H. P. Blavatsky informou viverem os mestres Morya e Koot Hoomi, porém ninguém os conhecia.

Então, com base nestes detalhes é que aparece a primeira suspeita sobre a existência destes “mestres”. O gigantesco e importante mosteiro de Tashi Lhunpo é muito conhecido no Tibete (atualmente está aberto até para a visitação pública), no entanto, ninguém até agora, quer seja um monge, um lama, um explorador ou um visitante foi capaz de confirmar a existência destes “mestres” nos arredores daquele complexo, sobretudo os que viveram daquela época. Por exemplo, L. Austine Waddell, contemporâneo de H. P. Blavatsky, que visitou o Tibete muitas vezes (o seu livro foi publicado em 1895), que conviveu com os lamas, que aprendeu a língua tibetana e que visitou alguns mosteiros disse em seu livro Tibetan Buddhism (Budismo Tibetano): “Nem os lamas conhecem alguma coisa sobre estes médiuns – os Mahātmas (Koot Hoomi, etc.) – que os teósofos colocam no Tibete e atribuem um importante lugar no misticismo tibetano…” (Waddell, 1972: 129). Este autor informa mais adiante neste mesmo livro que o mosteiro de Tashi Lhunpo abrigava cerca de 3.800 monges naquela época (idem: 272), portanto é impossível que os monges e os lamas não conhecessem estes “mestres”, que frequentavam a biblioteca e as instalações do mosteiro, também que não conhecessem a tal escola para adeptos nos seus arredores. Daí que não é difícil então de ser levado a pensar que a permanência de H. P. Blavatsky no Tibete, para treinamento espiritual com os Mahātmas (Grandes Almas), é uma ficção (Murdoch, 1984: 07). Outro episódio fictício de sua vida pode ter sido o relato de que Blavatsky lutou, vestida com trajes masculinos, na batalha de Mentana, Itália (idem: 07)

H. P. Blavatsky relatou que foi aceita como uma discípula e recebeu os ensinamentos que tanto buscava. Ela foi introduzida na sagrada literatura do Budismo Tibetano, lhe foi mostrado os tesouros do mosteiro e, por fim, foi preparada para ser a missionária dos “mestres’ para o Ocidente. Ela supostamente permaneceu neste reduto dos Himalaias, preparando-se para a sua obra, do fim de 1868 até o fim de 1870. Em seguida, ela fundou uma sociedade para o estudo do espiritismo, La Société Spirite, no Cairo, no fim de 1871, a qual teve vida curta. Blavatsky era conhecida no Cairo por realizar fenômenos sobrenaturais, então Emma Cutting, quem depois do seu casamento seria conhecida como Emma Coulomb, delatora do intrincado e controvertido Caso Coulomb, foi visitá-la para conhecer os seus poderes extraordinários. Emma Coulomb relatou assim o seu encontro com H. P. Blavatsky no Cairo: “Eu encontrei um quarto cheio de pessoas, todas vivas, e usando a mais insultante linguagem contra a fundadora da Sociedade, dizendo que ela (Blavatsky) tinha pego o dinheiro delas e as tinha deixado somente com isso, apontando para o espaço entre a parede e o pano, onde diversas peças de barbante ainda estavam dependuradas, as quais seriam para puxar, através do teto, uma comprida luva estofada com algodão, a qual deveria representar a mão e o braço materializados de um espírito. Eu fui embora deixando a multidão tão vermelha (de raiva) quanto o fogo, pronta para nocauteá-la quando ela voltasse” (Coulomb, 1885: 04-5).

O surpreendente é que, mesmo depois de testemunhar este caso de fraude, Emma Coulomb voltou a procurar Madame Blavatsky no Cairo, se tornaram amigas e até emprestou dinheiro para ela, empréstimo que nunca foi pago por Blavatsky, um dos motivos que levou E. Coulomb a despejar uma avalanche de delações contra Blavatsky no futuro, quando era sua governanta em Madras (Chennai), Índia, no período de 1880 a 1884, tal como veremos mais adiante. Por outro lado, a escritora e teósofa Beatrice Hastings relatou uma versão diferente deste episódio em seu livro, em quatro volumes, em defesa de H. P. Blavatsky; “… na ausência de Madame Blavatsky, alguns médiuns, que ela tinha encarregado, organizaram uma sessão fraudulenta e foram surpreendidos, a Sociedade então chegou a um fim” (Hastings, 1937, vol. II: 07). J. Murdoch registrou que uma vez Blavatsky afirmou que o episódio do Cairo “poderia ser rasgado do livro da sua vida” (Murdoch, 1984: 07).

Para concluir, fora dos relatos no estilo hagiográfico por autores teosóficos e por admiradores, os quais projetavam nela a imagem de uma alta iniciada, escolhida pelos grandes Mestres para ser o canal de instrução para toda a humanidade, Helena P. Blavatsky era retratada, por outros contemporâneos, como sendo obesa, fumante compulsiva, sem graduação universitária, sem profissão (ela sempre sobreviveu da generosidade dos outros), temperamental, bem como os céticos e os seus opositores lhe acusavam da autoria de fenômenos fraudulentos. Por exemplo, a conhecida escritora e uma vez teósofa Mabel Collins, autora do famoso livro Luz no Caminho, quem co-editou a revista Lúcifer por mais de um ano com H. P. Blavatsky, uma vez proferiu a seguinte declaração sobre a fundadora da Sociedade Teosófica: “Ela me ensinou uma grande lição, eu aprendi com ela o tanto que os seres humanos, considerados como um todo, são idiotas, crédulos e facilmente iludidos com esperanças infundadas. Seu desprezo pelo semelhante era na mesma escala gigantesca que tudo mais sobre ela, exceto seus dedos agudos maravilhosamente delicados. Em tudo mais, ela foi uma grande mulher; ela tinha um grande poder sobre os fracos e sobre os crédulos, uma grande capacidade de fazer o preto parecer branco, uma larga cintura, um apetite voraz, uma paixão pelo cigarro, um incansável e insaciável ódio por aqueles que ela imaginava serem os seus inimigos, um grande desprezo pelo decoro, um péssimo temperamento, um grande domínio da linguagem suja e um grande desprezo pela inteligência de seus companheiros de uma maneira que eu nunca imaginei ser possível estar presente em uma única pessoa” (Mann, 1919: 94). Outro escritor, V. S. Solovioff, registrou a seguinte opinião sobre Blavastky: “Sua principal força e o segredo do seu sucesso está no seu extraordinário cinismo e desprezo pela humanidade, um cinismo que ela usava para encobrir como uma regra com grande habilidade, mas que ainda explodia irresistivelmente às vezes. ‘Quanto mais simples e mais grosseiro o fenômeno’, ela em seguida me admitiu, ‘mais provável de ser bem sucedido. A vasta maioria das pessoas, que é reconhecida como esperta, é idiota sem esperança…” (idem: 94).

A Fundação da Sociedade Teosófica

            A vida pública mais bem documentada de Blavatsky começou com sua chegada nos EUA em 1873. Ela iniciou sua carreira esotérica no movimento espírita, o qual era extremamente difundido naquele país. No outono de 1874, ela encontrou seu futuro co-fundador da Sociedade Teósofica, coronel Henry Steel Olcott (1832-1907), um militar e advogado, com grande interesse no Espiritismo, na fazenda Eddy, em Chittenden, Vermont, EUA, onde ele estava escrevendo para jornais de Nova York sobre sessões que materializavam espíritos. Blavatsky publicou artigos sobre Espiritismo e se tornou ativamente envolvida no movimento espírita, se comunicando com um espírito chamado “John King” e defendendo publicamente os médiuns desacreditados. Ela pensava que o Espiritismo era um útil contraponto inicial para o materialismo.

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Os fundadores da Sociedade Teosófica: Helena P. Blavatsky e o coronel Henry S. Olcott

           A Sociedade Teosófica foi fundada na cidade de Nova York em 1875, por dezesseis indivíduos que tinham fortes interesses no Espiritismo e no Ocultismo. Os fundadores foram Helena P. Blavatsky e o coronel Henry S. Olcott, este último seu primeiro presidente. J. Murdoch aponta que a principal característica de H. S. Olcott era a sua “voraz credulidade” (Murdoch, 1894: 05) e que uma vez Blavatsky se referiu a ele como um “bebê crescido, que não sabia diferenciar a sua cabeça dos seus calcanhares” (idem: 09). Coronel Olcott escreveu um fantasioso livro, com base em suas experiências com o Espiritismo, denominado People from the Other World (Pessoas do Outro Mundo), publicado em 1875, cujo delírio especulativo chega ao ponto de até investigar o peso e o tamanho dos espíritos. Por exemplo, segundo ele, o espírito de Honto, após quatro pesagens, alcançou o peso médio de 67,5 libras (30,6kg), enquanto que o espírito de Katie Brine, após três pesagens, resultou no peso médio de 62 libras (28,1kg). Quanto ao tamanho, o espírito de Honto mediu 5 pés e 5 polegadas (1,65m), enquanto que o espírito de Havana mediu de 4 pés e 10,5 polegadas (1,48m) a 4 pés e 8 polegadas (1,42m). Já o tamanho do espírito de Mrs Compton era de 5 pés e 4 polegadas, ou seja, 1,62m (ver: Olcott, 1875: 487).

            O apartamento de Blavatsky na 46 Irving Place, em Nova York, tornou-se o ponto de encontro de pessoas interessadas no Ocultismo. Entretanto, foi durante esta época que Blavatsky começou a diminuir a sua atenção pelo Espiritismo e passou a dirigir seu interesse para as religiões orientais (Budismo e Hinduísmo) e para as tradições esotéricas do Ocidente (Cabala, Rosacruz, Maçonaria, etc.). Em função deste forte interesse pelas tradições orientais, bem como pela repetida proclamação de Blavatsky de que a fonte da sabedoria espiritual se localizava no Oriente, a sede da Sociedade, em março de 1879, se transferiu para Bombaim (atual Mumbai), permanecendo lá até o final de 1882, ocasião em que foi então transferida para Madras (atual Chennai), onde permanece até hoje, em uma imensa área no bairro de Adyar (naquela época um subúrbio da cidade), com suas gigantescas instalações.

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Vista parcial da sede mundial da Sociedade Teosófica em Chennai (antiga Madras), Índia.

         Apesar da doutrina teosófica ser formada de uma miscelânea de ideias conservadoras reunidas de diversas religiões e tradições esotéricas, cuja consolidação acontece em razão do conservadorismo e do apego ao passado, ela se diferenciou por uma novidade diante das outras culturas religiosas até então, qual seja, a da introdução do conceito de evolução. Tanto da ideia de evolução espiritual do indivíduo, como da evolução das raças, bem como da evolução dos mundos e dos continentes. A ideia da evolução era emergente na época, século XIX...

Continua...

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