quinta-feira, 8 de setembro de 2016

RUSSELL KIRK E A (RE)DEFINIÇÃO DO CONSERVADORISMO NORTE-AMERICANO

RODRIGO FARIAS DE SOUSA*
Primeira parte do trabalho
1 – O surgimento do “novo conservadorismo”
No  limiar  dos  anos  50  do  século  passado,  o  pensamento  político  americano
assumia uma configuração peculiar, sintetizada em um famoso trecho do crítico literário
Lionel Trilling:
Nos  Estados  Unidos  de  hoje  em  dia  o  liberalismo  não  somente  constitui  a
tradição  dominante,  mas  chega  mesmo  a  ser  a  única  tradição  intelectual
atuante. Pois é perfeitamente comprovável que, no momento presente, idéias
conservadoras ou reacionárias não têm circulação genérica em nosso país.
Isto  não  significa,  por  certo,  que  não  exista  um  impulso  no  sentido  do
conservadorismo  ou  da  reação.  Tais  impulsos  são,  sem  dúvida  alguma,
bastante  fortes,  talvez  mais  fortes  do  que  a  maioria  de  nós  imagina.  Mas,
tanto  o  impulso  conservador  quanto  o  impulso  reacionário,  com  algumas
exceções isoladas e eclesiásticas, não se expressam em idéias, mas apenas
por intermédio da ação ou de gestos mentais irritadiços que buscam parecer
idéias. (TRILLING, 1965:9.)
Essas  palavras  foram  escritas  em  1949.  À  época,  o  que  Trilling  chama  de
“liberalismo”
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parecia ser um novo consenso na sociedade americana. Dezessete anos e
uma guerra mundial depois das reformas implantadas pelo  New Deal, idéias que até há
algum  tempo  seriam  consideradas  minoritárias  ou  mesmo  excêntricas  haviam  sido
largamente incorporadas ao dia-a-dia dos cidadãos americanos. No afã  de  combater os
males da Grande Depressão, os poderes do governo e o seu controle sobre a  economia
haviam  sido  consideravelmente  aumentados;  as  relações  entre  patrões  e  empregados
haviam  sido  objeto  de  regulamentação  federal  e  a  carga  fiscal  fora  aumentada  para
financiar  as  bases  de  um  Estado  de  bem-estar  social  —  tímido  para  os  padrões  que
* Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Note-se que, no contexto político americano desde as primeiras décadas do século XX, “liberalismo” —
também  chamado  de  “liberalismo  moderno”  —  designa  uma  posição  política  parecida  com  a  da
social-democracia  europeia.  Historicamente,  “liberais”  foram  aqueles  que  apoiaram  as  reformas  de
Roosevelt,  defendendo,  portanto,  um  Estado  reformista  e  interventor,  que  usava  a  racionalidade
científica  para  orientar  políticas  de  bem-estar  social.  A  isso  vieram  a  ser  adicionadas  outras
características,  como  a  tolerância  ou  mesmo  a  defesa  ativa  dos  direitos  das  minorias.  Cf.  STARR,
2007, parte II, e VIERECK, 2009:4-5.
começavam  a  ser  adotados  na  Europa,  mas  inovador  no  contexto  norte-americano.  A
experiência traumática dos últimos vinte anos havia, portanto, trazido novos parâmetros
no  que  dizia  respeito  à  relação  entre  o  cidadão  e  o  Estado.  Mais  do  que  um  mero
guardião da ordem, este passava a ser visto, cada vez mais, como um promotor ativo das
várias  modalidades  de  direitos  individuais.
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Dessa  forma,  áreas  como  a  educação
pública e a legislação trabalhista, antes deixadas ao encargo dos governos estaduais e
locais, se tornaram objeto também da atuação do governo central
E não se tratava apenas de um fenômeno limitado a um só país: em meados de
1945, a Grã-Bretanha —  terra de John Locke, Adam Smith e John Stuart Mill  —  elegia
um  governo  socialista;  pouco  depois  o  hino  informal  do  Partido  Trabalhista,
sugestivamente  intitulado  Red  Flag,  ecoava  pelo  Parlamento  (NASH,  1979:4).  Na
França, pela mesma época, o Partido Comunista Francês atingia votações superiores a
25% nas eleições legislativas (NORDSIECK, s/d).
Tal  expansão  do  Estado,  iniciada  numa  época  mundialmente  turbulenta  como
foram  os  anos  30,  não  se  deu  sem  oposições.  Nos  Estados  Unidos,  foi  notória  a
oposição  de  grupos  como  a  American  Liberty  League,  comandada  por  homens  de
negócio contrários à intervenção estatal na economia  (PIETRUSZA, 1978).  No campo
legislativo, as reformas do New Deal foram diversas vezes contestadas por republicanos
e  democratas,  além  de  nem  sempre  encontrarem  respaldo  na  apreciação  de  sua
constitucionalidade  pela  Suprema  Corte.  Isso  não  impediu,  contudo,  que  no  período
imediatamente  após  a  guerra  alguns  desses  avanços  se  mostrassem  consolidados.
Parecia claro que, não obstante a oposição ao reformismo dos seguidores de Roosevelt,
o retorno ao status quo ante  não era mais viável  —  termos como “seguridade social” e
“negociação  coletiva”  de  contratos  de  trabalho  eram  agora  parte  inegável  do
vocabulário  dos  americanos.  E  com  a  reconfiguração  do  cenário  internacional  tendo
como  eixo  a  bipolaridade  entre  Estados  Unidos  e  União  Soviética,  a  tendência  do
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É aproximadamente dessa época a célebre genealogia dos direitos de cidadania elaborada pelo sociólogo
britânico T.H. Marshall,  segundo a qual os direitos dos cidadãos evoluíram ao longo de três etapas:
primeiro os direitos civis, no século XVIII, depois os políticos, no XIX, e, finalmente, os sociais no
século  XX.  Por  direitos  sociais  entendam-se  aqueles  que  dizem  respeito  ao  sustento  e  bem-estar
material  do  indivíduo.  Na  Constituição  brasileira  de  1988,  por  exemplo,  são  considerados  direitos
sociais a educação, a saúde, a previdência social e o trabalho, entre outros.
Estado  americano  era  crescer  ainda  mais,  à  medida  que  suas  responsabilidades  como
superpotência cresciam.
Nesses  anos  imediatos  do  pós-guerra,  a  palavra  “conservador”  adquirira  tãosomente um significado genérico de negação e recusa. Os “gestos mentais irritadiços” a
que Trilling se referia pertenciam justamente aos que se opunham às medidas do New
Deal.  Eram  os  entusiastas  do  laissez-faire  e  do  livre-mercado,  apologistas  da
propriedade  geralmente  identificados  com  empresários  e  financistas,  de  interesses
antagônicos aos da maioria da população. Tais grupos, à primeira vista, pareciam pregar
no deserto. Afinal, com milhões de ex-combatentes acorrendo a faculdades e escolas e
até ao sonho da casa própria sob o patrocínio federal, e a economia mantendo índices
promissores e a adoção do keynesianismo como referência na reconstrução econômica
do mundo, uma volta ao modelo pré-Roosevelt era improvável. Ainda assim, algumas
dessas vozes solitárias conseguiram dar início a uma reação intelectual que teria grandes
repercussões no longo prazo.
A  pioneira  delas  veio  de  fora  da  América.  Em  1944,  o  economista  austríaco
Friedrich August Hayek publicou na Grã-Bretanha  O Caminho da Servidão. Dedicado
“aos socialistas de todos os partidos”, o livro já começava com uma epígrafe de David
Hume:  “É  raro  que  uma  liberdade  de  qualquer  tipo  seja  perdida  de  uma  só  vez”.
Tratava-se de um libelo contra o modelo do Estado interventor que florescera nos  anos
30;  para  Hayek,  a  subordinação  da  economia  ao  planejamento  estatal  centralizado
levaria ao totalitarismo. Pelo controle do “meio para todos os fins”, que é a economia,
aqueles  que  a  controlassem  acabariam  por  “determinar  que  fins  serão  servidos,  que
valores  serão  considerados  mais  altos  e  mais  baixos  —  em  suma,  aquilo  em  que  os
homens devem crer e pelo que devem lutar”. Contra isso, a solução não era o  laissezfaire  total  (como,  erroneamente,  muitos  lhe  atribuem),  mas  a  delimitação  de  limites
claros à  ação do governo, além de uma atuação enérgica desta em prol da “preservação
da competição, da iniciativa privada e da propriedade privada” (NASH, 1979:6).
Numa época que testemunhava a opressão e a destruição causadas por regimes
como  o  nazismo  e  o  comunismo,  o  alerta  de  Hayek  teve  repercussão  inclusive  em
debates eleitorais. Entretanto, foi nos Estados Unidos que obteve seu maior sucesso: a
primeira  edição  americana,  lançada  em  setembro  do  1944,  precisou  de  uma  segunda
tiragem  150%  maior  em  apenas  uma  semana.  Mais  do  que  um  sucesso  comercial,
contudo,  O  Caminho  da  Servidão  se  tornou  tema  frequente  de  resenhas  e  debates,
inclusive  ganhando  a  primeira  página  da  prestigiada  New  York  Times  Book  Review  e
ainda  uma  versão  condensada  na  popular  revista  Reader’s  Digest  (NASH,  1979:7-8).
Graças ao livro, Hayek, que se tornaria professor na Universidade de Chicago em 1950,
consagrou-se  como  um  dos  grandes  mentores  intelectuais  da  corrente  dos  liberais
clássicos, depois rebatizada, nos EUA, de “libertarianismo”.
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Poucos  anos depois do lançamento do livro de Hayek, outro tipo de contestação
ao  establishment  liberal  americano  emergiu.  Em  vez  de  focar  nas  supostas
consequências do Estado interventor — guerra, perda de liberdade, tirania —, tratava-se
agora  de  fazer  uma  crítica  abrangente  não  apenas  a  essa  configuração  política
determinada, mas à própria cultura que a tornou possível  em primeiro lugar, aos seus
princípios  originários.  Essa  abordagem,  usualmente  chamada  de  tradicionalismo  na
historiografia  do  pensamento  conservador  dos  Estados  Unidos,  tem  entre  seus  mais
conhecidos pioneiros dois acadêmicos, Richard Weaver e Peter Viereck.
Weaver,  professor  da  Universidade  de  Chicago  (base  profissional  de  vários
autores  antiliberais),  foi  na  contramão  do  progressismo  iluminista  ao  denunciar  a
decadência cultural do Ocidente na modernidade. Nisso ele tinha algo em comum com
autores  como  o  ensaísta  alemão  Oswald  Spengler,  que  vira  na  Primeira  Guerra  um
prenúncio  do  fim  da  civilização  ocidental.   Weaver,  no  entanto,  tem  como  ponto  de
partida não uma catástrofe militar, mas uma disputa filosófica medieval: a seu ver, as
raízes  do  declínio  do  Ocidente  estavam  na  controvérsia  entre  nominalistas  e
antinominalistas  na  Europa  do  século  XIV.  Para  Weaver,  a  vitória  nominalista
significou,  em  última  análise,  a  derrota  da  crença  em  valores  transcendentais  e  da
concepção de que “há uma fonte de verdade mais elevada que o homem e independente
dele”.  Esse  evento  estava  longe  de  ser  uma  disputa  meramente  acadêmica,  pois  teria
aberto as portas para o relativismo e, por extensão, a negação da verdade. O Ocidente
recaía assim na proposição sofística de que “o homem é a medida de todas as coisas”,
trocando a concepção cristã do pecado original pela da bondade inerente do homem e da
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Alguns libertários americanos também se denominavam “individualistas”, por sua ênfase na importância
da liberdade do indivíduo como condição indispensável para uma sociedade sadia.
natureza.  Daí  para  frente,  a  religião  declinou  e  o  racionalismo  e  o  materialismo
avançaram, tornando-se os elementos dominantes do pensamento moderno. Essa longa
cadeia de eventos  —  que teria correspondência no pensamento de outros autores, como
Eric Voegelin —  foi  sintetizada no próprio título do primeiro livro de Weaver, lançado
em 1948: Ideas Have Consequences (NASH, 1979:39-40).
Ainda mais importante foi o livro Conservatism Revisited, do historiador e poeta
Peter  Viereck,  lançado  em  1949.  Lembrado  como  a  obra  que  inaugura  o  “novo
conservadorismo” —  foi o primeiro livro com “conservadorismo” no título nos Estados
Unidos  do  pós-guerra  —  a  obra  também  deu  nome  ao  movimento  que  se  esboçava.
Viereck era filho de um notório ativista germanófilo (ao lado do pai, conhecera o Kaiser
Guilherme II em seu exílio na Holanda), e, em abril de 1940, ganhara alguma projeção
com  um  artigo  para  a  revista  The  Atlantic  intitulado  “But...  I‟m  a  conservative!”
(NASH,  1979:65).
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Nele,  aos  23  anos,  Viereck  já  enunciava  alguns  temas  caros  aos
tradicionalistas:
A  revolta  tem  agora  a  sua  hierarquia  de  santos,  incluindo  apóstolos  do
Progresso  tão divergentes quanto os  editores  da  Nation e  da  New Masses.
Ela tem seus encantos elaborados, formalizados, seus bordões sagrados. Por
trás  de  muito  disso  está  a  convenção  complacente  de  que  nossa  única
alternativa  ao  terror  fascista  é  o  marxismo.  O  marxismo  significa  muitas
coisas. Eu me revolto contra a sua ―revolta‖ principalmente por causa do
seu  ataque  materialista  aos  nossos  valores  não-econômicos  do  espírito.
Apenas  os  valores  econômicos   tornam  a  vida  possível,  mas  apenas  os
valores  morais,  estéticos  e  intelectuais  a  fazem  digna  de  ser  vivida
(VIERECK, 1940).
Esse  artigo ecoaria no livro  de  1949, cujo  subtítulo era justamente  The Revolt
Against Revolt, 1815-1949. Nele, Viereck retoma a questão dos valores do espírito em
oposição à ideia corrente de conservadorismo como sinônimo de  laissez-faire. Em vez
disso,  ele  defendia  um  conservadorismo  dotado  de  “uma  reverência  humanista  pela
dignidade  da  alma  individual”,  em  oposição  ao  “coletivismo”  do  fascismo  e  do
stalinismo;  capaz  de  promover  a  “autoexpressão  através  do  autocontrole”  e  da
“proporção  e  da  medida”;  e,  naturalmente,  fundado  no  senso  de  uma  continuidade
histórica. A base desse conservadorismo seria a religião cristã e os “quatro ancestrais do
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Cf. também  a introdução escrita por Claes  Ryn,  “Conservative Revival and Controversy”, para a edição
mais recente de Conservatism Revisited (VIERECK, 2009).
homem  ocidental”,  a  saber:  os  “severos  mandamentos  morais  e  a  justiça  social  do
Judaísmo;  o  amor  pela  beleza  e  pela  especulação  intelectual  sem  barreiras  da  livre
mentalidade helênica; o universalismo do Império Romano e sua exaltação da lei; e o
aristotelismo,  tomismo  e  o  antinominalismo”  medievais.  Tudo  isso  temperado  pela
noção judaico-cristã do pecado original, ou seja, uma aguda consciência da imperfeição
humana  que  se  opunha  à  visão  de  perfectibilidade  dos  liberais  e  radicais  a  alimentar
utopias  as quais, em nome de um  hipotético  paraíso terrestre, não raro degeneravam no
totalitarismo (NASH, 1979:66).
Tais  noções  não  eram  exclusivas  de  Viereck,  e  davam  o  tom  das  reflexões  de
vários pensadores da época, geralmente acadêmicos que, ainda sem qualquer noção de
organização  ou  sem  grandes  pretensões  de  influência  fora  dos  muros  universitários,
questionavam o mundo moderno desde sua raiz. A valorização de uma base metafísica
e/ou  religiosa  com  uma  ordem  normativa  transcendente,  a  busca  de  referências  nas
matrizes culturais do Ocidente (sobretudo o cristianismo e a cultura clássica), a noção
do  pecado  original  e  a  rejeição  do  utopismo  político  moderno  eram  alguns  dos  seus
pontos comuns. Porém, a partir de  Conservatism Revisited, o termo “conservador”  (ou
“novo  conservador”)  passou  a  nomear  essa  corrente  que  apenas  começava  a  tomar
consciência de si própria  (NASH, 1979:68-69). No entanto, o ponto de partida de uma
identidade  conservadora  efetiva,  de  princípios  mais  definidos  capazes  de  dar  um
mínimo  de  coesão  a  essa  linha  de  pensamento,  viria  de  um  outro  autor,  também
acadêmico — um excêntrico jovem professor de Michigan chamado Russell Kirk.

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