RODRIGO FARIAS DE SOUSA*
Primeira parte do trabalho
1 – O surgimento do “novo conservadorismo”
No limiar dos anos 50 do século passado, o pensamento político americano
assumia uma configuração peculiar, sintetizada em um famoso trecho do crítico literário
Lionel Trilling:
Nos Estados Unidos de hoje em dia o liberalismo não somente constitui a
tradição dominante, mas chega mesmo a ser a única tradição intelectual
atuante. Pois é perfeitamente comprovável que, no momento presente, idéias
conservadoras ou reacionárias não têm circulação genérica em nosso país.
Isto não significa, por certo, que não exista um impulso no sentido do
conservadorismo ou da reação. Tais impulsos são, sem dúvida alguma,
bastante fortes, talvez mais fortes do que a maioria de nós imagina. Mas,
tanto o impulso conservador quanto o impulso reacionário, com algumas
exceções isoladas e eclesiásticas, não se expressam em idéias, mas apenas
por intermédio da ação ou de gestos mentais irritadiços que buscam parecer
idéias. (TRILLING, 1965:9.)
Essas palavras foram escritas em 1949. À época, o que Trilling chama de
“liberalismo”
1
parecia ser um novo consenso na sociedade americana. Dezessete anos e
uma guerra mundial depois das reformas implantadas pelo New Deal, idéias que até há
algum tempo seriam consideradas minoritárias ou mesmo excêntricas haviam sido
largamente incorporadas ao dia-a-dia dos cidadãos americanos. No afã de combater os
males da Grande Depressão, os poderes do governo e o seu controle sobre a economia
haviam sido consideravelmente aumentados; as relações entre patrões e empregados
haviam sido objeto de regulamentação federal e a carga fiscal fora aumentada para
financiar as bases de um Estado de bem-estar social — tímido para os padrões que
* Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
1
Note-se que, no contexto político americano desde as primeiras décadas do século XX, “liberalismo” —
também chamado de “liberalismo moderno” — designa uma posição política parecida com a da
social-democracia europeia. Historicamente, “liberais” foram aqueles que apoiaram as reformas de
Roosevelt, defendendo, portanto, um Estado reformista e interventor, que usava a racionalidade
científica para orientar políticas de bem-estar social. A isso vieram a ser adicionadas outras
características, como a tolerância ou mesmo a defesa ativa dos direitos das minorias. Cf. STARR,
2007, parte II, e VIERECK, 2009:4-5.
começavam a ser adotados na Europa, mas inovador no contexto norte-americano. A
experiência traumática dos últimos vinte anos havia, portanto, trazido novos parâmetros
no que dizia respeito à relação entre o cidadão e o Estado. Mais do que um mero
guardião da ordem, este passava a ser visto, cada vez mais, como um promotor ativo das
várias modalidades de direitos individuais.
2
Dessa forma, áreas como a educação
pública e a legislação trabalhista, antes deixadas ao encargo dos governos estaduais e
locais, se tornaram objeto também da atuação do governo central
E não se tratava apenas de um fenômeno limitado a um só país: em meados de
1945, a Grã-Bretanha — terra de John Locke, Adam Smith e John Stuart Mill — elegia
um governo socialista; pouco depois o hino informal do Partido Trabalhista,
sugestivamente intitulado Red Flag, ecoava pelo Parlamento (NASH, 1979:4). Na
França, pela mesma época, o Partido Comunista Francês atingia votações superiores a
25% nas eleições legislativas (NORDSIECK, s/d).
Tal expansão do Estado, iniciada numa época mundialmente turbulenta como
foram os anos 30, não se deu sem oposições. Nos Estados Unidos, foi notória a
oposição de grupos como a American Liberty League, comandada por homens de
negócio contrários à intervenção estatal na economia (PIETRUSZA, 1978). No campo
legislativo, as reformas do New Deal foram diversas vezes contestadas por republicanos
e democratas, além de nem sempre encontrarem respaldo na apreciação de sua
constitucionalidade pela Suprema Corte. Isso não impediu, contudo, que no período
imediatamente após a guerra alguns desses avanços se mostrassem consolidados.
Parecia claro que, não obstante a oposição ao reformismo dos seguidores de Roosevelt,
o retorno ao status quo ante não era mais viável — termos como “seguridade social” e
“negociação coletiva” de contratos de trabalho eram agora parte inegável do
vocabulário dos americanos. E com a reconfiguração do cenário internacional tendo
como eixo a bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética, a tendência do
2
É aproximadamente dessa época a célebre genealogia dos direitos de cidadania elaborada pelo sociólogo
britânico T.H. Marshall, segundo a qual os direitos dos cidadãos evoluíram ao longo de três etapas:
primeiro os direitos civis, no século XVIII, depois os políticos, no XIX, e, finalmente, os sociais no
século XX. Por direitos sociais entendam-se aqueles que dizem respeito ao sustento e bem-estar
material do indivíduo. Na Constituição brasileira de 1988, por exemplo, são considerados direitos
sociais a educação, a saúde, a previdência social e o trabalho, entre outros.
Estado americano era crescer ainda mais, à medida que suas responsabilidades como
superpotência cresciam.
Nesses anos imediatos do pós-guerra, a palavra “conservador” adquirira tãosomente um significado genérico de negação e recusa. Os “gestos mentais irritadiços” a
que Trilling se referia pertenciam justamente aos que se opunham às medidas do New
Deal. Eram os entusiastas do laissez-faire e do livre-mercado, apologistas da
propriedade geralmente identificados com empresários e financistas, de interesses
antagônicos aos da maioria da população. Tais grupos, à primeira vista, pareciam pregar
no deserto. Afinal, com milhões de ex-combatentes acorrendo a faculdades e escolas e
até ao sonho da casa própria sob o patrocínio federal, e a economia mantendo índices
promissores e a adoção do keynesianismo como referência na reconstrução econômica
do mundo, uma volta ao modelo pré-Roosevelt era improvável. Ainda assim, algumas
dessas vozes solitárias conseguiram dar início a uma reação intelectual que teria grandes
repercussões no longo prazo.
A pioneira delas veio de fora da América. Em 1944, o economista austríaco
Friedrich August Hayek publicou na Grã-Bretanha O Caminho da Servidão. Dedicado
“aos socialistas de todos os partidos”, o livro já começava com uma epígrafe de David
Hume: “É raro que uma liberdade de qualquer tipo seja perdida de uma só vez”.
Tratava-se de um libelo contra o modelo do Estado interventor que florescera nos anos
30; para Hayek, a subordinação da economia ao planejamento estatal centralizado
levaria ao totalitarismo. Pelo controle do “meio para todos os fins”, que é a economia,
aqueles que a controlassem acabariam por “determinar que fins serão servidos, que
valores serão considerados mais altos e mais baixos — em suma, aquilo em que os
homens devem crer e pelo que devem lutar”. Contra isso, a solução não era o laissezfaire total (como, erroneamente, muitos lhe atribuem), mas a delimitação de limites
claros à ação do governo, além de uma atuação enérgica desta em prol da “preservação
da competição, da iniciativa privada e da propriedade privada” (NASH, 1979:6).
Numa época que testemunhava a opressão e a destruição causadas por regimes
como o nazismo e o comunismo, o alerta de Hayek teve repercussão inclusive em
debates eleitorais. Entretanto, foi nos Estados Unidos que obteve seu maior sucesso: a
primeira edição americana, lançada em setembro do 1944, precisou de uma segunda
tiragem 150% maior em apenas uma semana. Mais do que um sucesso comercial,
contudo, O Caminho da Servidão se tornou tema frequente de resenhas e debates,
inclusive ganhando a primeira página da prestigiada New York Times Book Review e
ainda uma versão condensada na popular revista Reader’s Digest (NASH, 1979:7-8).
Graças ao livro, Hayek, que se tornaria professor na Universidade de Chicago em 1950,
consagrou-se como um dos grandes mentores intelectuais da corrente dos liberais
clássicos, depois rebatizada, nos EUA, de “libertarianismo”.
3
Poucos anos depois do lançamento do livro de Hayek, outro tipo de contestação
ao establishment liberal americano emergiu. Em vez de focar nas supostas
consequências do Estado interventor — guerra, perda de liberdade, tirania —, tratava-se
agora de fazer uma crítica abrangente não apenas a essa configuração política
determinada, mas à própria cultura que a tornou possível em primeiro lugar, aos seus
princípios originários. Essa abordagem, usualmente chamada de tradicionalismo na
historiografia do pensamento conservador dos Estados Unidos, tem entre seus mais
conhecidos pioneiros dois acadêmicos, Richard Weaver e Peter Viereck.
Weaver, professor da Universidade de Chicago (base profissional de vários
autores antiliberais), foi na contramão do progressismo iluminista ao denunciar a
decadência cultural do Ocidente na modernidade. Nisso ele tinha algo em comum com
autores como o ensaísta alemão Oswald Spengler, que vira na Primeira Guerra um
prenúncio do fim da civilização ocidental. Weaver, no entanto, tem como ponto de
partida não uma catástrofe militar, mas uma disputa filosófica medieval: a seu ver, as
raízes do declínio do Ocidente estavam na controvérsia entre nominalistas e
antinominalistas na Europa do século XIV. Para Weaver, a vitória nominalista
significou, em última análise, a derrota da crença em valores transcendentais e da
concepção de que “há uma fonte de verdade mais elevada que o homem e independente
dele”. Esse evento estava longe de ser uma disputa meramente acadêmica, pois teria
aberto as portas para o relativismo e, por extensão, a negação da verdade. O Ocidente
recaía assim na proposição sofística de que “o homem é a medida de todas as coisas”,
trocando a concepção cristã do pecado original pela da bondade inerente do homem e da
3
Alguns libertários americanos também se denominavam “individualistas”, por sua ênfase na importância
da liberdade do indivíduo como condição indispensável para uma sociedade sadia.
natureza. Daí para frente, a religião declinou e o racionalismo e o materialismo
avançaram, tornando-se os elementos dominantes do pensamento moderno. Essa longa
cadeia de eventos — que teria correspondência no pensamento de outros autores, como
Eric Voegelin — foi sintetizada no próprio título do primeiro livro de Weaver, lançado
em 1948: Ideas Have Consequences (NASH, 1979:39-40).
Ainda mais importante foi o livro Conservatism Revisited, do historiador e poeta
Peter Viereck, lançado em 1949. Lembrado como a obra que inaugura o “novo
conservadorismo” — foi o primeiro livro com “conservadorismo” no título nos Estados
Unidos do pós-guerra — a obra também deu nome ao movimento que se esboçava.
Viereck era filho de um notório ativista germanófilo (ao lado do pai, conhecera o Kaiser
Guilherme II em seu exílio na Holanda), e, em abril de 1940, ganhara alguma projeção
com um artigo para a revista The Atlantic intitulado “But... I‟m a conservative!”
(NASH, 1979:65).
4
Nele, aos 23 anos, Viereck já enunciava alguns temas caros aos
tradicionalistas:
A revolta tem agora a sua hierarquia de santos, incluindo apóstolos do
Progresso tão divergentes quanto os editores da Nation e da New Masses.
Ela tem seus encantos elaborados, formalizados, seus bordões sagrados. Por
trás de muito disso está a convenção complacente de que nossa única
alternativa ao terror fascista é o marxismo. O marxismo significa muitas
coisas. Eu me revolto contra a sua ―revolta‖ principalmente por causa do
seu ataque materialista aos nossos valores não-econômicos do espírito.
Apenas os valores econômicos tornam a vida possível, mas apenas os
valores morais, estéticos e intelectuais a fazem digna de ser vivida
(VIERECK, 1940).
Esse artigo ecoaria no livro de 1949, cujo subtítulo era justamente The Revolt
Against Revolt, 1815-1949. Nele, Viereck retoma a questão dos valores do espírito em
oposição à ideia corrente de conservadorismo como sinônimo de laissez-faire. Em vez
disso, ele defendia um conservadorismo dotado de “uma reverência humanista pela
dignidade da alma individual”, em oposição ao “coletivismo” do fascismo e do
stalinismo; capaz de promover a “autoexpressão através do autocontrole” e da
“proporção e da medida”; e, naturalmente, fundado no senso de uma continuidade
histórica. A base desse conservadorismo seria a religião cristã e os “quatro ancestrais do
4
Cf. também a introdução escrita por Claes Ryn, “Conservative Revival and Controversy”, para a edição
mais recente de Conservatism Revisited (VIERECK, 2009).
homem ocidental”, a saber: os “severos mandamentos morais e a justiça social do
Judaísmo; o amor pela beleza e pela especulação intelectual sem barreiras da livre
mentalidade helênica; o universalismo do Império Romano e sua exaltação da lei; e o
aristotelismo, tomismo e o antinominalismo” medievais. Tudo isso temperado pela
noção judaico-cristã do pecado original, ou seja, uma aguda consciência da imperfeição
humana que se opunha à visão de perfectibilidade dos liberais e radicais a alimentar
utopias as quais, em nome de um hipotético paraíso terrestre, não raro degeneravam no
totalitarismo (NASH, 1979:66).
Tais noções não eram exclusivas de Viereck, e davam o tom das reflexões de
vários pensadores da época, geralmente acadêmicos que, ainda sem qualquer noção de
organização ou sem grandes pretensões de influência fora dos muros universitários,
questionavam o mundo moderno desde sua raiz. A valorização de uma base metafísica
e/ou religiosa com uma ordem normativa transcendente, a busca de referências nas
matrizes culturais do Ocidente (sobretudo o cristianismo e a cultura clássica), a noção
do pecado original e a rejeição do utopismo político moderno eram alguns dos seus
pontos comuns. Porém, a partir de Conservatism Revisited, o termo “conservador” (ou
“novo conservador”) passou a nomear essa corrente que apenas começava a tomar
consciência de si própria (NASH, 1979:68-69). No entanto, o ponto de partida de uma
identidade conservadora efetiva, de princípios mais definidos capazes de dar um
mínimo de coesão a essa linha de pensamento, viria de um outro autor, também
acadêmico — um excêntrico jovem professor de Michigan chamado Russell Kirk.
Nenhum comentário:
Postar um comentário