A Filocalia ou o encantamento pelo mistério de Deus
Os textos que os leitores de língua portuguesa vão descobrir serão para muitos um encontro. O seu tradutor, Dimas de Almeida, aprimorou ao longo de vários anos os textos que foram selecionados de entre muitos outros que não nos é possível publicar. Os textos tradicionalmente reunidos sob o vocábulo de Filocalia, que agora saem à luz em português, são um convite para ir mais longe no conhecimento do Oriente cristão assim como também do mundo ortodoxo. A publicação destes textos pertencentes à grande tradição cristã é também em si um acontecimento ecuménico. Só o conhecimento do outro no seu enraizamento espiritual nos ajudará a medir a profundidade e a riqueza dos dois pulmões do Cristianismo, como o diria São João Paulo II, na sua vontade de nos convidar a beber nas duas fontes milenares da tradição: a do Oriente e a do Ocidente.
Mas o que é a Filocalia?
Este termo significa o «amor da beleza», mas uma beleza
não apenas estética mas antes a beleza divina e humana
proveniente e criadora duma escola mística da oração interior. Trata-se como o dirá Olivier Clément de «sugerir a ação
e a contemplação cujo objetivo é de descobrir o reino de Deus em si
mesmo, o tesouro escondido no campo do coração», fazendo
alusão à parábola evangélica descrevendo um homem, que
tendo encontrado um tesouro num campo, vende tudo o
que possui para adquirir esse tesouro.
A Filocalia é constituída, na sua forma original, por
uma coleção de textos ascéticos e místicos reunidos no século xvn, por Macário de Corinto, que selecionou os
textos, e Nicodemos, o Hagiorita. Esta coletânea foi publicada pela primeira vez em Veneza em 1782, devido ao contexto político criado, naquela época, pelo antigo Império
Otomano, aos cristãos de língua grega. Este conjunto de
textos constitui por assim dizer um breviário do hesicasmo
ou união do espírito com Deus, e exerceu uma grande influência no seio da espiritualidade ortodoxa moderna
desde meados do século xx. A Filocalia foi somente reeditada no mundo grego em 1893 e em 1957. No mundo de
língua russa, a Filocalia espalhou-se mais rapidamente visto
que o monge Pa'issi Vélitchovsky, a residir na Moldávia, a
traduziu para o eslavo e a mandou imprimir, desde 1793,
na Rússia.
Os textos da Filocalia são apresentados tradicionalmente
em ordem cronológica: textos monásticos originais, predominando Evágrio, o Pôntico, que constitui a grande síntese
da época patrística, e autores seguintes como Máximo, o
Confessor, e culminando com São Gregório Palamas. O
apelo é dirigido a todos os cristãos chamados a aperfeiçoar-se e a procurar a paz interior.
A Filocalia também parece ter surgido como um contrapeso, como uma espécie de Enciclopédia da Luz Incriada,
em oposição à Enciclopédia francesa das Luzes, embora os
seus autores orientais tenham utilizado a metodologia ocidental na sua composição.
Porém, a Filocalia transborda das questões confessio-
nais. Nestes textos podemos mergulhar nas origens da
Igreja indivisa, ou seja, antes das grandes divisões cristãs,
sendo um convite dirigido a todos os cristãos para se alimentarem e beberem destas fontes. Os textos escolhidos
permitem-nos descobrir este imenso edifício espiritual.
No nosso tempo necessitamos mais do que nunca de um
itinerário de maturidade cristã que possa conduzir a uma
resposta exigente mediante um trabalho pessoal sobre si
mesmo. Ao longo deste universo que é a Filocalia isso é
-no-lo revelado profundamente.
Estes textos abrem-nos várias portas e apenas queremos aqui esboçar alguns desses temas fulcrais: o homem
é imagem de Deus e o seu mundo e a história encontram
o seu sentido pleno em Jesus de Nazaré; este caminho exprime-se acolhendo e vivendo os mandamentos da Lei de
Deus e fazendo frutificar a graça batismal. Mas este caminho exige uma prática e um combate espiritual, o qual
passa pela luta contra as paixões e, na Filocalia, a paixão
fundamental é a morte. A Filocalia enumera a lista tradicional proveniente do monaquismo primitivo: a avidez, a
luxúria, a avareza, a cólera, a tristeza, a preguiça, a vanglória e o orgulho. Por outro lado, a fé constitui o primeiro e
o último pilar da vida espiritual. Esta fé sendo um encontro é também uma colaboração entre o Espírito de Deus e
a liberdade humana. No seio deste encontro surge a crise
que deve conduzir à metanoia ou conversão à vontade de
Deus, e à tomada de consciência da morte espiritual na
qual vivemos mergulhados. Quando a vida espiritual se
enraíza de forma decisiva, a graça age eficazmente e as virtudes libertam e transfiguram a energia bloqueada pelas
paixões. Este crescimento conduz à aquisição da humildade sem a qual não se pode progredir no caminho para
Deus. Esta introduz-nos na paciência para esperar a hora
de Deus e para nos estabelecermos numa certa impassibilidade, para vivermos no único necessário. Neste sentido,
a Filocalia abre-nos um caminho de liberdade, através
duma ascese que nos permite acolher a vida de Cristo e
eliminar as sementes de morte que entravam o crescimento de Cristo na nossa vida. Muitos textos da Filocalia
reiteram, neste combate, a guarda do coração, para sairmos
da inconsciência, na qual o fluxo de pensamentos, imagens e associações atravessam e debilitam a nossa inteligência espiritual.
Podemos sublinhar que a Filocalia propõe, disseminada
ao longo de vários textos, um método de oração que é a
«oração de Jesus», método que tem a sua origem nos primeiros tempos do monaquismo, através da repetição da expressão: <<Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador.» Esta expressão
será em parte modificada a partir do século v com Diadoco de Poticeia, no deserto de Gaza, na Palestina, e, mais
tarde, no deserto do Sinai. Esta oração assumirá então a
fórmula de súplica que se tornará clássica durante a Idade
Média, nos mosteiros ortodoxos do Monte Atos: «Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, tem piedade de nós.» Esta prática sugere uma ligação entre a oração e a respiração. Já
São João Clímaco, na sua obra mestra, A Escada Espiritual,
dizia: «Que a memória de Jesus se una inteiramente à tua respiração e tu conhecerás a significação do silêncio. »
Para além deste método que é a «oração de Jesus», o único
método de oração proposto pela Filocalia é a meditação da
Sagrada Escritura e em particular dos Salmos. Estes são o
alimento dos monges em todas as igrejas cristãs e tornam
-se o grito e o êxtase de todos aqueles que os frequentam
e os saboreiam.
Em conclusão, diremos também que a teologia palamita
ou de São Gregório Palamas, no século xrv, ocupa, no
conjunto da Filocalia, um lugar de relevo, assim como
outros autores desta mesma época. O mote central é a insistência sobre as energias divinas e a deificação. A Filocalia
respira esse ar, insistindo ao mesmo tempo sobre a aproximação ou teologia negativa do mistério e sobre a realidade
da deificação ou divinização, termo que é utilizado seis
vezes por Nicodemo na primeira página do seu prefácio de
apresentação da Filocalia. A nossa gratidão ao pastor Dimas
de Almeida, pelo seu profundo e paciente labor e o nosso
aplauso à Paulinas Editora por ter abraçado este extenso
projeto de tradução e de edição.
FR. JOSÉ LUIS DE ALMEIDA MONTEIRO, O.P.
Diretor da Biblioteca do Saulchoir (Paris)
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