Do Livro Inteligência, Verdade e Certeza Introdução ao Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades por Olavo de Carvalho RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ARTES LIBERAIS 1995
1. Inteligência ⎯ o que é?
ESTE CURSO começou em São Paulo em 1986, no Rio em 1987, e prossegue nas duas cidades até hoje. Sua idéia central é a formação da inteligência humana para que desempenhe da melhor maneira possível a função que lhe é própria. A inteligência, neste contexto, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial, mas, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. Quer dizer: quando pensamos algo, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade, então o que está em ação não é propriamente a inteligência, no rigor do termo. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas.
A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada do que pensou, e outras vezes intelige sem ter pensado. A inteligência é um órgão que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou, se preferir, intuitivo — instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção.
Outras vezes existe uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza. Basta esta distinção para percebermos o quanto é errônea a direção tomada pela atual teoria das “inteligências múltiplas”, que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção de habilidades — que vão desde o raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas essas capacidades são meios e que a inteligência não é propriamente um meio, mas o ato mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é, por si, uma condição suficiente.
A teoria das inteligências múltiplas surgiu como uma reação contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência, exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que se serve. A maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de captar a diferença sutil entre os atos representativos e a inteligência! Vendo sempre a inteligência atuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento, confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e tomam por “inteligência” os meros atos mentais.
Esse equívoco acabou sendo oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apóia, como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não a inteligência enquanto tal. O fato é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta necessariamente a da inteligência.
Quer dizer: podemos desenvolver muito o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, sem que haja efetivamente uma inteligência agindo por trás deles. Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Ou, do mesmo modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes nos leva para longe da verdade. De modo que o desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., não implica necessariamente o da inteligência, também é verdade o vice-versa: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de canais, instrumentos e ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu objetivo, ou seja, ela desenvolve as “faculdades” de que necessita.
Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto haja efetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gato tem: os gatos sonham.
Então, se formos por este caminho, não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de bichos. O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”. Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.
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