O cálculo econômico na comunidade socialista
Por Ludwig von Mises
Mas será que estamos realmente abordando as inevitáveis consequências
da propriedade comunal dos meios de produção? Não há
um meio através do qual algum tipo de cálculo econômico possa ser
associado a um sistema socialista?
Em todas as grandes empresas, cada seção possui, de certa forma,
uma independência em sua contabilidade. Cada seção é capaz de calcular
e comparar os custos da mão-de-obra com os custos dos materiais,
o que torna possível que cada grupo individual atinja um determinado
equilíbrio e classifique, por meio de uma abordagem contá-
bil, os resultados econômicos de sua atividade. Pode-se assim apurar
qual foi o sucesso que cada seção em particular obteve, bem como
tirar conclusões quanto à necessidade de haver reorganizações, cortes
de despesas, abolição ou expansão de grupos existentes, ou até mesmo
a criação de novos. Reconhecidamente, alguns erros são inevitáveis
em tais cálculos. Eles surgem parcialmente em decorrência das dificuldades
de se alocar as despesas gerais. Já outros erros surgem da
necessidade de se calcular aquilo que, sob vários pontos de vista, não
constitui dados rigorosamente determináveis — por exemplo, quando,
ao se avaliar a lucratividade de um dado método de produção,
calcula-se a depreciação das máquinas baseando-se na hipótese de
elas terem uma durabilidade já pré-determinada. Ainda assim, todos
esses erros podem ser considerados ínfimos, de modo que eles não
atrapalham o resultado líquido do cálculo. O que restar de incerto vai
entrar no cálculo da incerteza das condições futuras, que afinal é uma
característica inevitável da natureza dinâmica da vida econômica.
Seguindo-se essa lógica, pode ser tentador querer fazer — por meio
de analogias — estimativas e valorações individuais para determinados
grupos de produção no estado socialista. Mas isso seria totalmente
impossível, pois cada cálculo econômico para cada seção individual da
mesma empresa só pode ser feito se houver um livre mercado de forma-
ção de preços. É exatamente nas transações de mercado que os preços
de mercado — a serem tomados como base para todos os cálculos —
são formados para todos os tipos de bens e mão-de-obra empregados.
Onde não há um livre mercado, não há mecanismo de preços; e sem um
mecanismo de preços, é impossível haver cálculo econômico.
Alguns podem imaginar que é possível uma situação na qual a troca
entre determinados ramos de negócios seja permitida a fim de se
obter o mecanismo que determina as relações de troca (preços) e, com
isso, criar uma base para o cálculo econômico, mesmo na comunidade
socialista. Dentro da estrutura de uma economia uniforme, na
qual não há propriedade privada dos meios de produção, cada grupo
trabalhista é constituído de maneira independente, porém todos
continuam subjugados e tendo de se comportar de acordo com as diretivas
expedidas pelo supremo conselho econômico. Não obstante,
cada grupo trabalhista iria ofertar serviços e bens materiais ao outro
grupo somente em troca de algum pagamento, que teria de ser feito
utilizando-se o meio geral de troca. Grosso modo, quando se fala
da completa socialização da economia, é dessa maneira que algumas
pessoas imaginam como seria a organização da gerência socialista
dos negócios. Mas ainda não chegamos ao ponto crucial. Relações
de troca entre bens de produção somente podem ser estabelecidas se
estiverem baseadas na propriedade privada dos meios de produção.
Quando o “sindicato dos carvoeiros” fornece carvão ao “sindicato dos
metalúrgicos”, nenhum preço pode ser formado, exceto se ambos os
sindicatos forem os donos dos meios de produção empregados em
seus respectivos negócios. Isso não seria um socialismo, mas, sim,
um sindicalismo ou um capitalismo trabalhista.
Para aqueles teóricos socialistas que se fundamentam na teoria do
valor trabalho, o problema, obviamente, é realmente muito simples.
Segundo Engels,
Tão logo a sociedade se aposse dos meios de produção e
ponha-os a produzir em sua forma diretamente socializada,
o trabalho de cada indivíduo, por mais diferente que
sua utilidade específica possa ser, se transforma a priori e
diretamente em trabalho social. A quantidade de trabalho
social investida em um produto não precisará, a partir
de então, ser estabelecida indiretamente; a experiência
diária imediatamente nos dirá quanto será necessário, na
média. A sociedade poderá simplesmente calcular quantas
horas de trabalho são empregadas em uma máquina a
vapor, na colheita de um determinado volume de cereais
e em 100 jardas de linho de uma dada qualidade... Certamente
a sociedade também terá de saber quanto trabalho
será necessário para produzir qualquer bem de consumo.
Ela terá de arranjar seu plano de produção de acordo com
a disponibilidade de seus meios de produção — e, é claro,
a força de trabalho cai nessa categoria. As utilidades dos
vários bens de consumo, ponderadas entre si e em rela-
ção à quantidade de trabalho requerida para produzi-las,
irão em última instância determinar o plano. O povo irá
simplificar tudo, sem a mediação do famigerado “valor”(1).
Não é nossa tarefa aqui reafirmar as objeções críticas à teoria do
valor-trabalho. Neste ponto, elas podem nos interessar apenas na medida
em que nos permitem julgar a possibilidade de fazer do trabalho
a base dos cálculos econômicos em uma comunidade socialista.
À primeira vista, o cálculo em termos do trabalho também leva
em consideração as condições naturais — isto é, não humanas — da
produção. A lei dos retornos decrescentes já está incluída no conceito
marxista do tempo de trabalho socialmente necessário, uma vez
que a variação das condições naturais de produção altera o cálculo do
trabalho. Por exemplo, se a demanda por uma mercadoria aumentar,
e isso consequentemente fizer com que recursos naturais piores tenham
de ser explorados, então o tempo médio do trabalho socialmente
necessário para a produção de uma unidade irá aumentar também.
Se recursos naturais mais favoráveis forem descobertos, a quantidade
de trabalho socialmente necessário irá diminuir.(2)
Essa consideração acerca das condições naturais de produção somente será válida se puder
ser refletida na quantidade de trabalho socialmente necessário.
Mas é nesse aspecto que a valoração em termos do trabalho se
mostra inadequada. Ela não leva em conta o emprego dos fatores
materiais de produção. Suponhamos que a quantidade de tempo de
trabalho socialmente necessário requerido para a produção de duas
mercadorias, P e Q, seja de 10 horas cada. Além disso, além do trabalho
requerido, a produção tanto de P quanto de Q exige o uso da
matéria-prima A, sendo que uma unidade desta é produzida em uma
hora de trabalho socialmente necessário; 2 unidades de A e 8 horas
de trabalho são utilizadas na produção da P, e uma unidade de A e 9
horas de trabalho são utilizadas na produção de Q. Em termos de
trabalho, P e Q parecem ser equivalentes, mas não são. Em termos de
valor, P vale mais do que Q. Somente essa última desigualdade corresponde
à essência e ao propósito do cálculo econômico. É verdade
que este excedente — o fato de P valer mais do que Q, de acordo com
o cálculo de valor — é um substrato material “fornecido pela natureza
sem qualquer adição humana”.(3)
Ainda assim, o fato de tal bem existir
apenas em quantidades não-abundantes, o que necessariamente obriga
um uso mais frugal, tem de ser levado em conta, de uma forma ou
de outra, no cálculo do valor.
O segundo defeito do cálculo em termos de trabalho é que tal mé-
todo ignora as diferentes qualidades do trabalho. Para Marx, todo trabalho
humano é economicamente do mesmo tipo, pois ele é sempre
“o dispêndio produtivo do cérebro, dos músculos, dos nervos e das
mãos humanas.” (4)
O trabalho qualificado nada mais é do que um trabalho
simples que foi intensificado ou mesmo multiplicado.
Destarte, uma quantidade pequena de trabalho qualificado
é igual a uma quantidade grande de trabalho simples.
A experiência mostra que o trabalho qualificado sempre
poderá ser traduzido em termos de trabalho simples.
Não importa que uma dada mercadoria seja o produto do
trabalho mais altamente capacitado — seu valor sempre
poderá ser equiparado ao valor daquela que é produto de
um trabalho simples, de modo que ela representa meramente
uma quantia definida de trabalho simples.
Böhm-Bawerk não está muito errado quando diz que esse argumento
é “um truque teórico espantosamente ingênuo”. (5)
Para julgarmos a visão de Marx nem é preciso averiguarmos se existe uma medida fisiológica
uniforme para todo o trabalho humano, seja ela física ou “mental”.
Pois é certo que existe entre os homens graus variáveis de capacidade
e destreza, o que faz com que os produtos do trabalho tenham
qualidades variáveis. Ao decidirmos se é válido fazer cálculos em termos
de trabalho, o que deve ser verificado é se é possível ou não colocar
diferentes tipos de trabalho sob um mesmo denominador comum sem
que os consumidores façam qualquer valoração dos produtos gerados
por cada trabalho. Porém, a prova que Marx tenta apresentar não logra
êxito. A experiência na verdade mostra que os bens são consumidos
em relações de troca sem que se considere se foram produzidos por
trabalho simples ou complexo. E apenas se fosse possível mostrar que
o trabalho é a fonte do valor de troca desses bens é que se poderia dizer
que certas quantidades de trabalho simples são diretamente iguais a
certas quantidades de trabalho complexo. Essa homogeneidade não
apenas não é demonstrada, como na verdade ela é exatamente o que
Marx estava tentando demonstrar através desses mesmos argumentos.
O fato de que, em uma economia de troca, as taxas de substituição
entre trabalho simples e complexo se manifestam em termos de salá-
rio em nada ajuda na tentativa de se comprovar essa homogeneidade
— um fato ao qual Marx não faz qualquer alusão nesse contexto. Esse
processo de comparação é o resultado das transações de mercado; ele
não as antecede, ele advém delas. O cálculo em termos do trabalho,
para funcionar igualmente bem, teria de criar uma proporção arbitrária
que fizesse essa substituição entre o trabalho simples e o complexo.
Mas isso o tornaria inútil como instrumento de organização
econômica dos recursos.
Há muito se supunha que a teoria do valor-trabalho era indispensável
ao socialismo, e que ela fornecia uma necessária base ética para
a exigência da socialização dos meios de produção. Agora já sabemos
o erro que isso representa. Embora a maioria dos defensores do socialismo
tenha empregado essa concepção errônea — inclusive Marx,
que, conquanto tenha adotado fundamentalmente outra visão, não
estava completamente livre daquela —, já está claro que os clamores
políticos pela implantação da produção socializada não requerem
e nem podem obter o suporte da teoria do valor-trabalho. Outras
pessoas que tenham idéias diferentes quanto à natureza e origem do
valor econômico também podem ser socialistas em seus sentimentos;
entretanto, a teoria do valor-trabalho é inerentemente necessária aos
defensores do modo socialista de produção de uma maneira que não é
exatamente a imaginada: em uma economia socialista, a produção só
poderá parecer racionalmente realizável se fizer uso de uma unidade
de valor objetivamente reconhecível, a qual iria permitir o cálculo
econômico em uma economia em que nem o dinheiro e nem as trocas
estariam presentes. E apenas o trabalho pode concebivelmente ser
considerado essa unidade de valor.
Notas:
1
Friedrich Engels, Herrn Eugen Dührings Umwälzung des Wissenschaft, 7th ed., pp. 335 f. [Traduzido por
Emile Burns como A Revolução Científica de Herr Eugen Dühring - Anti-Düring (Londres: Lawrence &
Wishart, 1943).]
2
Karl Marx, Capital, traduzido por Eden e Cedar Paul (Londres: Allen & Unwin, 1928), p. 9.
3
Karl Marx, Capital, traduzido por Eden e Cedar Paul (Londres: Allen & Unwin, 1928), p. 12.
38 Ludwig von Mises
4
Karl Marx, Capital, traduzido por Eden e Cedar Paul (Londres: Allen & Unwin, 1928), p. 13 et seq.
5 Cf. Eugen von Böhm-Bawerk, Capital and Interest, traduzido por William Smart (Londres e Nova York:
Macmillan, 1890), p. 384.
Do livro O cálculo econômico sob o socialismo de Ludwig von Mises
1ª Edição
Editado por:
Instituto Ludwig von Mises Brasil