quarta-feira, 14 de março de 2018

O problema da responsabilidade e da iniciativa em empresas socialistas

Responsabilidade e iniciativa em empresas comunais

Capítulo 4 do livro O cálculo econômico sob o socialismo
Por Ludwig von Mises
Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque. –
São Paulo: Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012.

O problema da responsabilidade e da iniciativa em empresas socialistas
é estritamente ligado ao problema do cálculo econômico. Trata-
-se de um fato universalmente aceito que, a exclusão da livre iniciativa
e da responsabilidade individual, das quais depende o sucesso
das empresas privadas, constitui a mais séria ameaça à organização
econômica socialista.
(Cf. Vorläufiger Bericht der Sozialisierungskommission über die Fragse der Sozialisierung des Kohlenbergbaues, concluído em 15 de fevereiro de 1919 (Berlin, 1919), p. 13.)

Grande parte dos socialistas silenciosamente ignora esse problema.
Já outros acreditam que podem responder a este desafio fazendo uma
alusão aos diretores-executivos das empresas. Não obstante o fato de
eles, os diretores-executivos, não serem realmente os proprietários dos
meios de produção, as empresas sob seu comando prosperam. Logo,
argumentam os socialistas, se a sociedade, em vez de os acionistas da
empresa, se tornar a proprietária dos meios de produção, então nada
terá se alterado. Os diretores-executivos não trabalhariam menos satisfatoriamente
para a sociedade do que trabalham para os acionistas.

É necessário aqui se fazer um comparativo entre dois grupos de
empresas de sociedade anônima. No primeiro grupo, que consiste
primordialmente de pequenas empresas, alguns poucos indivíduos se
unem em um empreendimento comum que assume a forma jurídica
de uma empresa. Normalmente, eles são os herdeiros dos fundadores
da empresa, ou são ex-concorrentes que decidiram se fundir. Neste
exemplo, o controle e a administração da empresa está nas mãos dos
próprios acionistas ou de pelo menos alguns dos acionistas, que comandam
a empresa de acordo com seus próprios interesses; ou nas
mãos de acionistas intimamente relacionados, como esposas, filhos
etc. São os próprios diretores, na condição de membros do conselho
de administração, que exercem a influência decisiva na conduta dos
negócios. Tal arranjo não é alterado caso parte do capital social esteja
nas mãos de um consórcio financeiro ou de um banco. Neste caso,
com efeito, a empresa só se diferencia de uma empresa comercial de
capital aberto em sua forma jurídica.

A situação se torna bastante diferente para o caso de grandes empresas,
nas quais apenas uma fatia dos acionistas — isto é, os grandes
acionistas — participa do controle efetivo da empresa. E eles normalmente
possuem tanto interesse na prosperidade da empresa quanto
qualquer proprietário. Ainda assim, é perfeitamente possível que os
interesses deles sejam diferentes dos interesses da vasta maioria dos
pequenos acionistas, que são excluídos da administração, mesmo possuindo
a maior fatia do capital social. Vários conflitos de interesse
podem ocorrer entre acionistas e diretores, principalmente quando os
negócios da empresa são geridos em prol destes últimos. Seja como
for, está claro que os verdadeiros detentores do poder nas empresas
gerem os negócios de acordo com seus próprios interesses, independentemente
de se tais interesses coincidem com os dos acionistas ou
não. No entanto, no longo prazo, é do interesse do administrador
sério, que deseja uma carreira sólida — e que não está meramente
empenhado em obter um lucro passageiro —, representar os interesses
de seus acionistas em todas as situações e evitar manipulações que
possam trazer-lhes prejuízos. Logo, o sucesso de uma empresa não
depende meramente da adoção de motivos éticos. Os interesses econômicos
são também essenciais.

A situação se altera por completo quando uma empresa é estatizada.
A motivação desaparece com a exclusão dos interesses materiais
dos empreendedores privados; e se de algum modo as estatais prosperarem,
isso se deve ao fato de elas estarem copiando “práticas de
administração” de empresas privadas, ou ao fato de estarem constantemente
sendo forçadas a adotar reformas e inovações pelos empreendedores
privados de quem elas compram instrumentos de produção e
matéria-prima.

Dado que hoje estamos em uma posição que nos permite pesquisar
décadas de empreendimentos estatais e socialistas, é algo amplamente
reconhecido que não há meios de se adotar mecanismos de estímulo
para reformar e aprimorar a produção em empresas socialistas, que
elas não são capazes de se ajustar às constantes alterações na demanda,
e que, em suma, elas são um membro morto em um organismo
econômico. Todas as tentativas de dar vida a elas até hoje têm sido
em vão. Supunha-se que uma reforma no sistema de remuneração
poderia alcançar o objetivo desejado. Se os administradores destas
empresas estivessem interessados nos seus rendimentos, imaginava-
-se que eles então estariam em uma posição comparável àquela do
administrador de grandes empresas. Esse foi um erro fatal.

Os administradores de grandes empresas estão ligados aos interesses das
empresas que eles administram de uma maneira totalmente diferente
daquela que impera em empresas estatais. Eles ou já são proprietários
de uma considerável fatia das ações da empresa ou esperam se tornar
no devido tempo. Ademais, eles estão na posição de obter lucros por
meio de especulação das ações da empresa. Eles têm a perspectiva de
legar seus cargos — ou ao menos garantir parte de sua influência —
para seus herdeiros. O tipo de administrador responsável pelo sucesso
de empresas de sociedade anônima não se assemelha em nada ao
de um complacente diretor-executivo semelhante a um funcionário
público em sua mentalidade e experiência; ao contrário, tal administrador
é necessariamente um gerente profissional, um empreendedor
e homem de negócios que está ele próprio, na condição de acionista,
interessado no bem da empresa. E é exatamente esse tipo de administrador
que toda a estatização tem o objetivo de excluir.

Em um contexto socialista, de nada adianta recorrer a estes argumentos
para garantir que uma ordem econômica construída sobre
fundamentos socialistas terá sucesso. Todos os sistemas socialistas,
inclusive aquele de Karl Marx e seus apoiadores ortodoxos, partem
da suposição de que, em uma sociedade socialista, um conflito entre
os interesses do indivíduo e do coletivo jamais poderá surgir. Todos
irão agir com total interesse em dar o seu melhor, pois ele participa
da produção de toda a atividade economia. A óbvia objeção de que
o indivíduo está muito pouco preocupado em determinar se ele pró-
prio é diligente e entusiástico, e que é da maior importância para ele
que todos os outros o sejam, é algo completamente ignorado por eles.

Quando muito, é insuficientemente abordado. Eles acreditam que
podem construir uma economia socialista tendo por base apenas o
Imperativo Categórico. O quão suave é a intenção deles em proceder
desta maneira foi bem explicitado por Kautsky quando ele diz, “Se
o socialismo é uma necessidade social, então é a natureza humana, e
não o socialismo, quem deve se reajustar às necessidades caso os dois
venham a colidir.”
(Cf. Karl Kautsky, Prefácio de “Atlanticus” [Gustav Jaeckh], Produktion und Konsum im Sozialstaat (Stuttgart: J.H.W. Dietz, 1898), p. 14.)

Isso nada mais é do que uma absoluta quimera.
Porém, mesmo se por um momento concedermos que tais expectativas
utópicas possam realmente se materializar, que cada indivíduo
em uma sociedade socialista irá se empenhar com o mesmo fervor
com que se empenha hoje em uma sociedade na qual ele está sujeito à
pressão da livre concorrência, ainda há o problema de se mensurar o
resultado da atividade econômica em uma economia que não permite
qualquer tipo de cálculo econômico. Não podemos agir de maneira
racionalmente econômica se estamos em uma situação que não nos
permite entender o que é agir de modo economicamente racional.

Uma frase popular afirma que, se os trabalhadores de empresas
estatais pensarem menos burocraticamente e mais comercialmente,
tais empresas irão funcionar tão bem quanto empresas privadas. Se
os principais cargos forem ocupados por mercadores, a renda crescerá
aceleradamente. O problema é que “mentalidade comercial” não é
algo externo, algo que pode ser arbitrariamente transferido. As qualidades
de um comerciante não dependem de aptidões inatas e nem
são adquiridas por meio de estudos em uma escola de comércio ou por
meio do trabalho em um estabelecimento comercial. Tampouco dependem
de ele já ter sido um homem de negócios durante algum tempo.
A atitude e a vivacidade comercial de um empreendedor surge de
sua posição no processo econômico; porém, ela é perdida quando ele
sai desse ramo.

Quando um homem de negócios bem sucedido é nomeado gerente
de uma empresa estatal, ele ainda pode trazer consigo alguma experi-
ência de sua atividade anterior e, com isso, ser capaz de fazer proveitoso
uso dela por algum tempo. No entanto, com sua entrada na atividade
estatal, ele deixa de ser um comerciante e se torna uma burocrata
igual a qualquer outro funcionário público que ganhou uma sinecura
no setor estatal. Não é o conhecimento de regras de contabilidade, de
organização empresarial ou do estilo de comunicação comercial que
fazem de um indivíduo um bom comerciante, mas sim sua posição
representativa no processo de produção, o qual permite a identifica-
ção entre seus interesses e os da empresa. Otto Bauer [proeminente
pensador marxista e líder Partido Social-Democrata Austríaco] não está
apresentando nenhuma solução quando propõe, em sua mais recente
obra publicada, que os diretores do Banco Central Nacional, para os
quais será concedido o comando do processo econômico, sejam nomeados
por um conselho diretor, do qual também participariam representantes
do sindicato dos professores do ensino médio.
(3 Cf. Otto Bauer, Der Weg zum Sozialismus (Vienna: Ignaz Brand, 1919), p. 25.)

 Assim como os filósofos de Platão, os diretores nomeados podem até ser os
mais brilhantes e sábios de sua categoria, mas eles não podem se portar
como mercadores ocupando cargos de comando de uma sociedade
socialista, mesmo que eles já tenham sido mercadores anteriormente.
Trata-se de uma reclamação geral o fato de que a administração de
empresas estatais não possui iniciativa. Os socialistas creem que isso
pode ser remediado por meio de mudanças na organização. Trata-se
de outro erro atroz. A administração de uma empresa socialista não
pode ser inteiramente colocada nas mãos de um único indivíduo, pois
sempre haverá uma constante suspeita de que ele irá tirar proveito de
tal situação e, com isso, permitir que seus erros que inflijam pesados
danos à sociedade. Por outro lado, se as decisões importantes tornarem-se
dependentes dos votos de comitês, ou do consentimento de
importantes funcionários do governo, então se está impondo limita-
ções na iniciativa deste indivíduo. Comitês raramente são propensos
a introduzir inovações ousadas.

A ausência de livre iniciativa nas empresas estatais decorre não
de uma ausência de organização, mas sim do fato de isso ser algo inerente
à natureza desse tipo de organização. Não se pode permitir que
um empregado tenha a liberdade de organizar livremente os fatores
de produção, por mais alto que ele esteja no escalão da burocracia. A
tentação para tirar vantagem da situação será enorme. Quanto mais
acentuado for o seu interesse material na consecução de suas atribui-
ções, menor será a possibilidade de a ele ser designada tal tarefa. Pois,
na prática, ele poderá no máximo ser moralmente responsabilizado
pelas perdas geradas. Ele não terá como restituir seus erros. Portanto,
no socialismo, as fraquezas éticas são justapostas às oportunidades
de ganhos materiais.

Já sob um arranjo liberal, o dono da propriedade arcará ele próprio
com a responsabilidade, pois ele será o principal atingido pelo prejuí-
zo de ter conduzido seus negócios imprudentemente. É precisamente
neste quesito que existe uma percuciente diferença entre o modo de
produção liberal e o modo de produção socialista

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