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O pai do comunismo já foi tratado como santo, mas biografias recentes o
mostram como um beberrão, parasita de amigos e adúltero
Por TEXTO Fernando Duarte
Reconhecidos pela Igreja Católica
como uma das principais relíquias ligadas a Jesus Cristo, os fragmentos dos
ossos de São Pedro estão guardados nos porões do Vaticano, com direito à
vigilância severa da renomada Guarda Suíça. No entanto, os restos mortais do
primeiro papa encontram-se quase desprotegidos se comparados ao tratamento
dispensado aos documentos de Karl Marx no Arquivo Nacional da Rússia: uma
câmara à prova de bombas protege suas cartas e manuscritos. Trata-se de um
exemplo do desafio diante de qualquer tentativa de compreender um pouco mais
sobre a vida do intelectual alemão. Embora não tenha fundado formalmente uma
religião ou existam registros de milagres e afins, Marx foi catapultado ao
posto de Messias em cujo nome se lutaram guerras e se construíram impérios num
espaço de tempo bem menor que o usado pelo cristianismo – e os inevitáveis
deslizes do pai do comunismo não estão disponíveis facilmente. Para os
guardiões da antiga União Soviética, homem e regime se confundiam.
Figura
mitológica
Passados 131 anos de sua morte,
Marx permanece uma figura mitológica. Se o desmoronamento dos regimes
socialistas da Europa Oriental causou abalos em sua reputação, o filósofo que
misturava pensamento e ação e criou o conceito de ditadura do proletariado
tampouco foi esquecido: em 2005, quase 20 anos depois da queda do Muro de
Berlim, foi ele quem venceu uma enquete da BBC para eleger o maior filósofo de
todos os tempos. Isso mesmo, no Reino Unido, em que o Partido Trabalhista
precisou varrer o viés socialista de seus estatutos e de suas políticas para
retomar o poder com Tony Blair, em 1997, o criador do comunismo ainda conserva
sua popularidade.
Na década passada, Marx já tinha
levado safanões em sua auréola vermelha. Na primeira biografia de destaque
publicada após o fim da Guerra Fria, o jornalista britânico Francis Wheen expôs
um Karl Marx que estava bem longe da figura magnânima imortalizada em estátuas
e estandartes em Moscou, Pequim ou Havana. Ele foi apresentado como bêbado,
parasita e adúltero.
Wheen abriu as portas para um
releitura de Marx que não se concentra apenas no debate ideológico. Sua missão
era desvendar seu lado humano, ao contrário das milhares de leituras sobre
dialética a respeito de sua produção filosófica. Em 2011, a jornalista
norte-americana Mary Gabriel encontrou um ângulo ainda mais original: uma
narrativa focada na vida familiar de Marx, sobretudo em seu turbulento
relacionamento com a esposa, Jenny. Tanto Wheen quanto Gabriel tiveram acesso a
documentos ligados ao filósofo, incluindo sua correspondência pessoal. Ambos
revelam que Marx nunca foi santo – nem de longe. Mas também não pode ser
demonizado. “Esse é o grande problema quando o assunto é Marx. Por causa de seu
impacto histórico, a polarização é constante. No Ocidente ele volta é meia é
ridicularizado, enquanto Rússia e China ainda o apresentam como uma figura
religiosa. Os dois lados erram ao passar ao largo do aspecto humano”, afirma
Mary Gabriel.
Na verdade, a idealização ou
demonização de Marx não nasceram com a Guerra Fria ou após a derrocada do
socialismo. Ela tem origem em 1883, ano em que Marx, aos 64 anos, não resistiu
aos efeitos de uma infecção pulmonar e da tristeza pela morte da mulher, dois
anos antes. Mal seu corpo baixou à sepultura no Cemitério de Highgate, no norte
de Londres – o enterro, segundo relatos de amigos e parentes, foi acompanhado
por menos de 15 pessoas – e uma operação de endeusamento começou. Como sugere a
audiência do funeral, Marx estava longe, muito longe de ser uma celebridade
quando deixou este mundo. Mas entre os presentes à cerimônia estava Wilhelm
Liebknecht, um dos fundadores do Partido Social-Democrata alemão e um dos
principais responsáveis pela divulgação de suas ideias – nas eleições
parlamentares de 1890, por exemplo, a legenda, de inspiração marxista, obteve
20% dos votos na Alemanha.
Filho
bastardo
Foi a partir de esforços de
personagens como Liebknecht que a mitificação de Marx teve início, ainda que a
explosão tenha vindo com a Revolução Russa de 1917, o primeiro experimento
marxista em larga escala, com direito à aplicação de seus modelos de sociedade
e a implementação da “ditadura do proletariado” pelos bolcheviques seguidores
de Vladimir Lenin. A glorificação de Marx e a omissão de sua humanidade viraram
regra, por mais que um estudo minucioso da correspondência particular da
família do filósofo mostre uma oposição ferrenha a qualquer tipo de censura ou
embelezamento. Mesmo depois de Eleanor, uma de suas filhas, descobrir em 1895
um terrível segredo do pai: Marx não apenas tivera um caso com Helene Demuth, a
governanta da família, mas engravidou a serviçal durante uma viagem da mulher.
Frederick Demuth nasceu em 1851
e, graças à intervenção de Frederick Engels, o grande amigo e mecenas de Marx,
foi posto para adoção. O menino cresceu e acabou ficando amigo de sua
meia-irmã. Eleanor mais tarde saberia que, além de ter enganado a mãe, Marx não
prestara ajuda ao menino e nem sequer tivera contato com ele. “Claro que
Eleanor ficou chocada, mas em nenhum momento teve a intenção de censurar os
fatos. Ao contrário, achou importante que o mundo conhecesse os dois lados da
vida de seu pai. Até permitiu a publicação de correspondência pessoal de Marx.
Mas tudo se perdeu quando ela se suicidou, em 1898”, afirma Mary Gabriel.
O filho bastardo foi o único da
família que ainda estava vivo quando Lenin e seus amigos mandaram ondas de
choque mundo afora com seu Outubro Vermelho. Em 1911, seis anos antes da
Revolução Russa, a última descendente de Karl e Jenny, Laura, também pôs fim à
própria vida. A trágica ironia: ela e o marido, o ativista francês Paul
Lafargue, selaram um pacto suicida para protestar contra o que viam como
diluição dos ideais de Marx. Lafargue liderou o movimento pela adoção de oito
horas de trabalho, oito de sono e oito de lazer, algo que hoje é parte da vida
profissional.
Mudança
de nome
Em termos
de tragédia, os Marx em nada devem aos Kennedy. Muito se sabe sobre as
provações pelas quais o filósofo passou por força de suas convicções e
subversões, mas o fato é que Marx era uma espécie de Lúcifer burguês – um anjo
que desafiou o status quo celeste. Ele nasceu
em 1818 na cidade de Trier, ainda nos tempos em que a região hoje conhecida
como Alemanha era uma confederação de 39 estados ou reinos. Cresceu numa
família de classe média alta, filho do advogado Heinrich Marx e de Henriette
Pressburg, dona de casa holandesa pertencente à família Phillips – cujo
sobrenome hoje é referência em aparelhos eletrônicos. Judeus, os pais de Marx
se converteram ao cristianismo por causa da repressão religiosa que marcou a
monarquia absolutista prussiana cuja legislação proibia não cristãos de ocupar
cargos públicos. Os decretos foram ignorados nos tempos em que Trier foi anexada
à França por Napoleão, mas voltaram a ser cumpridos depois da derrocada do
imperador francês, em 1815.
Até de nome o pai do futuro
filósofo mudou: Herschel Mordechai virou Heinrich Marx em 1818. A conversão foi
fundamental no destino de Marx: de acordo com a tradição judaica, o primogênito
da família assumia o cargo de rabino de Trier, tradição que acabou com o irmão
mais velho de Heinrich. A ironia é que o jovem que poderia ter virado rabino
ficaria famoso como o homem que definiu a religião como ópio do povo.
Um curioso voraz que se
beneficiou de uma educação privilegiada com o dinheiro dos pais, Marx provocou
desgostos e mais desgostos em Heinrich e Henriette ao ingressar no mundo
acadêmico em 1835, aos 17 anos. O pai insistiu no estudo do direito, enquanto o
filho se sentia atraído pela filosofia. Dispensado do serviço militar por
problemas respiratórios, Marx aproveitou a distância de casa para se jogar numa
rotina digna de filmes universitários americanos: fazia parte de uma
fraternidade de beberrões, de um clube de poesia, e num dos seus estupores
etílicos arrumou uma confusão com um oficial do exército prussiano – na época o
equivalente às Forças Armadas dos EUA em termos de reputação – que resultou em
duelo. Felizmente, o jovem Karl saiu apenas com arranhões do embate.
Nenhuma surpresa que o desempenho
acadêmico do moço estivesse longe de ser brilhante. O pai interveio e
transferiu o filho para a Universidade de Berlim. Um tiro no pé: a maior
seriedade nos estudos empurrou Marx de vez para o lado da filosofia e ele logo
estava circulando em grupos radicais, com uma postura que não poderia ser mais
diferente do conformismo familiar em Trier. O fosso separando-o de Heinrich só
aumentou: quando o pai morreu, em 1838, Marx nem foi ao enterro, alegando que a
viagem de Berlim à cidade natal era muito longa.
A morte
de Heinrich Marx também trouxe dificuldades financeiras para o filho. Os porres
e arruaças aumentaram, bem como sua revolta contra o establishment prussiano, ainda mais depois de, já
de posse de um doutorado em filosofia, obtido em 1841, ver a pretensão de uma
carreira acadêmica derrubada por causa de suas posições liberais numa Prússia
extremamente conservadora. A solução foi mudar-se para Colônia e enveredar pelo
jornalismo radical. Escrevendo sobre socialismo para o Rheinische Zeitung, carregando nas críticas aos
governos conservadores europeus, Marx logo atraiu a atenção dos censores a
serviço do kaiser. E com apenas um ano de trabalho conseguiu que uma ordem
fechasse o jornal – cortesia de um pedido pessoal do czar russo Nicolau I à
coroa prussiana. “É impossível dissociar a produção intelectual de Marx de sua
experiência de vida. Quando se analisam aspectos como sua origem numa família
que sofreu opressão religiosa por um regime ditatorial você compreende por que
Marx mais tarde mostraria tamanha animosidade em relação às classes
dominantes”, afirma o acadêmico norte-americano Jonathan Sperber, também autor
de uma biografia recente do filósofo.
Mau
partido
Paradoxos
também deram o tom no relacionamento de Marx com outra grande influência: o
barão Ludwig von Westphalen, aristocrata e vizinho em Trier. Ele adotou Marx
como discípulo, doutrinando o rapaz em filosofia e literatura. Foi das longas
conversas sobre Shakespeare com o barão que Marx pegou emprestado um trecho de Hamlet para escrever uma carta de amor para Jenny
– a filha de seu tutor. O barão não gostou de vê-la enamorada do discípulo. Não
apenas porque era quatro anos mais velha e a sociedade prussiana não via com
bons olhos o casamento com homens mais jovens. Mas porque para Von Westphalen
Marx estava longe de ser um bom partido.
Contra a vontade do barão, Karl e
Jenny se casaram em junho de 1843. Marx tinha 24 anos. Nenhum parente ou
conhecido do noivo marcou presença. Apesar do boicote do barão, a mãe da Jenny
presenteou o casal com joias, prataria e um baú com dinheiro. “Em uma semana de
lua de mel, o dinheiro já tinha sumido, pois Karl e Jenny presentearam uma
legião de amigos duros. Já a prataria e joias passaram mais tempo em casa de
penhores que nos armários da família. Embora os Von Westphalen tenham
convencido os noivos a assinar um acordo responsabilizando cada parte por suas
dívidas, Jenny nunca cobrou nada de Marx”, diz Francis Wheen.
Em outubro, Karl e Jenny deram o
pontapé inicial no que planejavam como uma vida de aventuras: mudaram-se para
Paris, na época o centro da efervescência subversiva que em 1848 explodiria
numa série de revoltas na Europa. Apesar do nascimento da filha Caroline, em
1844, Marx intensificou o ritmo de sua militância intelectual, e foi naquele
ano que conheceu Engels no Café de La Régence, iniciando uma relação de amizade
e dependência. As consequências do rompimento com as origens burguesas já doíam
no bolso, e o futuro parceiro de conspirações virou fonte crucial de sustento –
as “mesadas” de Engels muitas vezes usavam expedientes criativos para evitar
roubos, com o envio de partes de cédulas em diferentes cartas.
O
GRANDE PARCEIRO – Engels ajudou Marx até depois de morto
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Quase
tão espantosa quanto a jornada de Karl Marx é o fato de que seu principal
parceiro vinha de um berço ainda mais prvilegiado. Friedrich Engels, o
coautor do Manifesto Comunista e o
homem que literalmente salvou Marx e sua família da inanição, é uma das
figuras mais paradoxais do século 19. Nascido numa próspera família de
comerciantes em Barmen, na Prússia, em 1820, ainda jovem começou a dar dor de
cabeça aos pais ao assumir seu ateísmo.
Assim
como Marx, Engels estudou na Universidade de Berlim e acabou ideologicamente
cooptado pelas ideias do filósofo Friedrich Hegel. Também publicou artigos
polêmicos no mesmo Rheinische Zeitung,
que era editado por Marx. Os dois maiores subversivos de sua época, porém, só
se conheceram em 1844, em Paris, e a amizade teve início – como não poderia
deixar de ser – com um porre homérico e juras de amizade eterna. Engels levou
a cabo sua parte do trato com afinco: além de bancar Marx, por vezes até
desfalcando a empresa do pai, não mediu esforços para que a produção
intelectual do companheiro não se perdesse.
“Engels
sacrificou os melhores anos de sua vida em favor de Marx. Deixou de produzir
seus tratados para que Marx pudesse lançar O Capital, por
exemplo”, afirma o historiador britânico Tristram Hunt, autor de uma
biografia de Engels intitulada O Comunista de Casaca –
ele foi um capitalista, dono de uma fábrica.
Engels
morreu em 1895, aos 74 anos, de câncer na garganta. E mesmo depois de morto
continuou ajudando Marx: parte substancial de sua fortuna foi deixada para as
filhas do velho camarada.
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A
aventura parisiense durou apenas até 1845, quando um pedido da coroa prussiana
levou as autoridades francesas a expulsarem os Marx do país. Teve início,
então, a rotina de fugas do filósofo e família. Passariam dois anos em
Bruxelas, de onde saíram corridos em 1848, depois de Marx desafiar um termo
crucial de seu asilo – não se meter em política. Em fevereiro ele lançou o Manifesto Comunista e foi acusado de usar o
dinheiro que recebeu de herança pela morte da mãe para financiar uma revolta do
proletariado em Bruxelas. Foi expulso e forçado a voltar para a França, não sem
antes ver a mulher presa pela polícia. Os Marx só se fixaram num lugar em 1849,
quando mudaram-se para Londres.
Já com quatro filhos, Marx e
Jenny sentiam os efeitos colaterais da militância. Viviam de favores e sempre
na linha da pobreza. E a destituição teve um preço trágico: quatro dos sete
filhos do casal morreram ainda crianças, de doenças ligadas às condições
precárias da família. As humilhações tornaram-se constantes: quando não eram
despejados, os Marx precisavam de “jeitinhos” para evitar cobradores e
senhorios. “Houve invernos em que até roupas foram penhoradas para poder
arrumar trocados para comida”, diz Wheen.
Hiperatividade
Jenny
esteve ao lado de Karl até o fim, tendo sido importante não somente como
esposa, mas como “tradutora” – Marx tinha uma caligrafia pavorosa, que a mulher
se encarregava de transcrever para possibilitar a publicação de seus textos.
Ela foi uma companheira que aceitou o papel de coadjuvante numa vida que nada
teria de ordinário, mas que seria quase inteiramente marcada por amarguras. Os
Marx viveram num estado constante de pobreza agravado pelo fato de a produção
intelectual de Marx causar problemas com as autoridades. Salvava-se com
trabalhos eventuais, incluindo o jornalismo, mas a fonte crucial de renda eram
os bolsos profundos de Engels. De saúde frágil, complicada por causa do
tabagismo e do álcool e também pela indisciplina na carga de trabalho, muitas
vezes varando noites, Marx era um primor de desorganização e hiperatividade: o
primeiro volume de O Capital, o
trabalho mais importante de Marx, foi entregue com 16 anos de atraso.
Quando os royalties de venda foram liberados, Marx já estava
debaixo da terra em Highgate. Seu fantasma, porém, iria pairar sobre o século
20 – e além. O abalo global de 2008 de certa forma o ressuscitou. Na Europa, as
vendas de O Capital aumentaram em até
300%. “Marx foi um homem do século 19 e é preciso lembrar que viveu uma era
muito diferente da atual. Mas nos idos de 1860 já discutia conceitos como a
alavancagem excessiva de bancos, que tanto contribuiu para a crise global. Como
personagem, ele ainda será lembrado por muito tempo, mas é preciso enxergar o
homem para entender o mito”, afirma Sperber.
Foi apenas no fim da vida que
Marx tirou o pé do acelerador, por causa da saúde debilitada. A morte de Jenny,
em 1881, teve efeito devastador e a família o proibiu de ir ao enterro. Em 14
de março, Engels, cumprindo sua eterna missão de zelar pelo amigo, visitou o
filósofo. Encontrou-o morto, à beira da lareira. Marx tinha 64 anos.
SAIBA
MAIS
Livro
Amor
& Capital, Mary
Gabriel, Zahar Editora, 2013