sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

A IGREJA ORTODOXA - O Batismo da Rússia

 

12. O Batismo da Rússia

O período de Kiev (988-1237)

Photius fez também planos de converter os eslavos da Rússia. Em torno de 864 ele enviou um bispo paras a Rússia, mas essa primeira fundação Cristã foi exterminada por Oleg, que assumiu o poder em Kiev (a cidade mais importante da Rússia na época) em 878. A Rússia continuou no entanto a sofrer uma firme infiltração de Bizâncio, Bulgária e Escandinávia, e existiu certamente uma Igreja em Kiev em 945. A Princesa Russa Olga tornou-se Cristã em 955, mas seu filho Svyatoslav recusou-se a seguir seu exemplo, dizendo que sua comitiva riria dele se ele recebesse o batismo Cristão. Mas em 988 o neto da Princesa Olga, Vladimir (reinou 980-1015) converteu-se ao Cristianismo e casou com Ana, a irmã do Imperador Bizantino. A Ortodoxia tornou-se a religião de Estado da Rússia, e assim permaneceu até 1917. Vladimir pôs-se a Cristianizar seu reino com determinação: padres, relíquias, vasos sagrados, e ícones foram importados; batismos em massa eram feitos nos rios; Igrejas foram construídas e dízimos eclesiásticos foram instituídos. O grande ídolo do deus Perun, com sua cabeça de prata e seus bigodes de ouro, foi rolado ignominiosamente pela colina abaixo em Kiev. "As trombetas dos Anjos e os trovões dos Evangelhos soaram por todas as cidades. O ar estava santificado com incenso que ascendia para Deus. Mosteiros mostravam-se nas montanhas.

Homens e mulheres, pequenos e grandes, todo povo enchia as santas igrejas" (citado de G. P. Fedorov, The Russian Religious Mind, p. 410). Assim o Metropolita Hilarião descreveu o evento sessenta anos depois, sem dúvida idealizando um pouco, pois a Rússia de Kiev não foi completamente convertida de uma vez ao Cristianismo, e a Igreja esteve no começo restrita principalmente as cidades, enquanto a maior parte do campo permaneceu pagã até os séculos catorze e quinze.

Vladimir colocou a mesma ênfase nas implicações sociais do Cristianismo como João o Misericordioso tinha feito. Qualquer comemoração na sua corte, tinha a seguir distribuição de comida para os pobres e doentes; em nenhum outro lugar da Europa medieval existiu tão altamente organizados tais "serviços sociais" como na Kiev do décimo século. Outros dirigentes da Rússia de Kiev seguiram o exemplo de Vladimir. O Príncipe Vladimir Monomachos (reinou 1113-1125) escreveu em seu Testamento para seus filhos: "Acima de todas as coisas não se esqueçam dos pobres, e suportemos até a extensão de vossos meios. Dêem para os órfãos, protejam as viúvas, e não permitam aos poderosos destruir ninguém" (citado em G. Vernadsky, Kievan Rússia, New Haven, 1948, p. 195). Vladimir estava também profundamente consciente da lei Cristã da misericórdia, e quando ele introduziu o código de leis bizantino em Kiev, ele insistiu em mitigar seus aspectos mais selvagens e brutais. Não existia pena de morte na Rússia de Kiev, mutilação, nem tortura; punição corporal era muito pouco (em Bizâncio a pena de morte existia, mas dificilmente era aplicada; a punição por mutilação, no entanto era empregada com freqüência aflitiva).

A mesma gentileza pode ser vista na história dos filhos de Wladimir, Boris e Gleb. Na morte de Wladimir, em 1015, o filho mais velho Svyatopolk tentou tomar os territórios dos irmãos mais novos Boris e Gleb. Obedecendo literalmente os mandamentos dos Evangelhos, eles não ofereceram resistência, apesar de que poderiam tê-lo feito facilmente; e cada um na sua vez foi morto pelos emissários de Svyatopolk. Se qualquer sangue tivesse que ser derramado, Boris e Gleb preferiram que fosse o deles próprio. Apesar deles não serem mártires pela fé, mas vítimas de uma disputa política, foram ambos canonizados, tendo recebido título especial de "suportadores da paixão." Foi sentido que pelo seu sofrimento voluntário e inocente eles partilharam da Paixão de Cristo. Os russos sempre deram ênfase para questões que resultavam sofrimento para aqueles que perseguiam a vida cristã.


        Na Rússia de Kiev, em Bizâncio e no Oeste medieval, os mosteiros tiveram um papel importante. O mais influente de todos eles foi o de Petchersky Lavra, o Mosteiro das Grutas, em Kiev. Fundado por volta de 1051 por Santo Antonio, um russo que vivera no Monte Athos, ele foi reorganizado pelo seu sucessor São Teodosius (morto em 1074), que introduziu ali as regras do Mosteiro de Studium, em Constantinopla. Como Wladimir, Teodosius estava consciente das conseqüências sociais do Cristianismo e a isso aplicou-se de maneira radical, identificando-se fortemente com os pobres, muito como São Francisco de Assis no oeste. Boris e Gleb seguiram Cristo em sua morte sacrificial; Teodosius seguiu Cristo em sua vida de pobreza e "esvaziando-se" voluntariamente. De nascimento nobre, ele escolheu desde criança usar roupas grosseiras e remendadas e trabalhar nos campos com os escravos. "Nosso Senhor Jesus Cristo," ele dizia, "tornou-se pobre e humilhou-Se, oferecendo a Si próprio como um exemplo; portanto devemos nos humilhar em Seu nome.

Ele sofreu insultos, cuspiram n’Ele, bateram n’Ele, para nossa salvação; sendo justo então que soframos para ganhar Cristo" (Nestor, "Life of Saint Theodosius," In G.P. Fedotov, A Treasury of Russian Spirituality, p 27). Mesmo usando roupas simples e rejeitando todos os sinais externos de autoridade, ele era honorável amigo e conselheiro de nobres e príncipes. O mesmo ideal de humildade é visto em outros, por exemplo o Bispo Lucas de Wladimir (morto em 1185) que, nas palavras de Vladimir Chronicle "carregou sobre si a humilhação de Cristo, não tendo uma cidade aqui, mas procurando uma cidade futura." É um ideal encontrado freqüentemente no folclore russo e em escritores como Tolstoi e Dostoyevsky.

Wladimir, Boris e Gleb e Teodosius foram intensamente preocupados com as implicações práticas dos Evangelhos: Wladimir preocupava-se com a justiça social e era seu desejo que os criminosos fossem tratados com misericórdia; Boris e Gleb preocupavam-se em seguir Cristo em seu sofrimento e morte voluntários; Teodosius identificava-se com os humildes. Esses quatro santos incorporam alguns dos mais atrativos aspectos do Cristianismo de Kiev.

A Igreja Russa, durante o período de Kiev, era submetida a Constantinopla e até 1237 os Metropolitas da Rússia eram usualmente gregos. Em memória dos dias quando o Metropolita vinha de Bizâncio, a Igreja Russa continua a cantar em grego a saudação solene a um bispo, eis polla eti, deposta (muitos anos, ó Mestre). Mas cerca de metade dos bispos eram russos nativos em Kiev nesse período, tendo entre eles, inclusive, um judeu convertido e um sírio.

Kiev gozava de boas relações não só com Bizâncio, mas também com a Europa Ocidental e certos aspectos na organização do começo da Igreja Russa, como os dízimos eclesiásticos, não eram bizantinos mas sim ocidentais. Muitos santos ocidentais que não aparecem no calendário bizantino eram venerados em Kiev. Numa oração para a Santíssima Trindade, composta na Rússia no século onze, lista santos ingleses como Albano e Botolfo, e um santo francês, São Martinho de Tours. Alguns escritores até mesmo argüiram que até 1054 a Cristandade Russa era tão latina quanto grega, mas isso é um grande exagero. A Rússia esteve mais perto do ocidente no período de Kiev do que em qualquer outro período, até o reinado de Pedro, o Grande. Mas a Rússia deve imensamente mais para a cultura bizantina do que para a cultura latina. Napoleão estava historicamente correto quando ele chamou o Imperador da Rússia, Alexandre I, de "um grego do Baixo Império."

É dito que o maior infortúnio da Rússia foi ela ter tido muito pouco tempo para assimilar a total herança espiritual de Bizâncio. Em 1237, a Rússia de Kiev foi levada para um súbito e violento fim pelas invasões mongóis; Kiev foi saqueada e a Rússia toda foi ocupada, exceto o extremo norte em torno da Noruega. Um visitante da corte mongol, em 1246, relata que ele não viu no território russo nem cidade nem vila, mas só ruínas e incontáveis caveiras humanas. Mas se Kiev foi destruída, o Cristianismo de Kiev permaneceu uma memória viva.

A Rússia de Kiev, como os dias dourados da infância, nunca foi apagada da memória da nação russa. Em seus escritos, que são trabalhados literários que transmitem de forma pura a religião ortodoxa, qualquer um pode (se desejar) matar sua sede religiosa; em seus veneráveis autores pode-se encontrar um guia para atravessar as complexidades do mundo moderno. A Cristandade de Kiev tem o mesmo valor para a mente religiosa russa como Pushkin para o senso artístico russo: aquele de um padrão, uma medida dourada, um caminho real (G. Iedotov, The Russian Religious Mind, pág. 412).

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AS SEIS LIÇÕES - O Capitalismo


Primeira Lição

O Capitalismo

 

Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente
equivocadas. Assim, atribuem-se a capitães de indústria e
a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”,
“o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”. Ao usar essas
expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença
entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de
outrora. Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do
chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de
seus compradores. O rei do chocolate – ou do aço, ou do automóvel,
ou qualquer outro rei da indústria contemporânea – depende
da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.
Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições
de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo
que o oferecido por seus concorrentes.
Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status
social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de
sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava. Se
nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico – lorde ou duque
–, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava, pelo
resto dos seus dias.
No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento
da época existiam quase exclusivamente em proveito dos
ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia)
trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias
de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rígido sistema da
sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas
regiões da Europa.
Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso
de gente no campo. Os membros dessa população excedente,
sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação. Também não
lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo
acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O número desses
“párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse
o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra,
“proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas
de correção. Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos
Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa
que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à
preservação do sistema social vigente.
Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou
outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na
Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores. Naquele
tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões
de habitantes, dos quais mais de um milhão – provavelmente
dois – não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor
nada proporcionava. As medidas a tomar com relação a esses deserdados
constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra.

 

Outro sério problema era a falta de matérias-primas. Os ingleses
eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos,
no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de
que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas?
Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.
Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não
tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.
Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do
capitalismo moderno. Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis,
surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer
pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma
inovação. Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis
apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que
pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem
do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o começo da produção
em massa – princípio básico da indústria capitalista. Enquanto
as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da
gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente
para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas
indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis
a toda a população. Era a produção em massa, para satisfazer às
necessidades das massas.
Este é o princípio fundamental do capitalismo tal como existe
hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa
extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos
mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas,
produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.
As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas
dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude
das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fábricas
são, eles próprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas
se fabricam. Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas
de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.
Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença
entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande
empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados
Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse
cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda
naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa
detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa
de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos
que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia
seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.
Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos
os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram
por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível
a concorrência. Alegava-se que, na área dos transportes,
o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si
mesmo, pois que eliminara a concorrência. O que se descurava era
o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de
oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer
outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas
grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova
ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para
atender às necessidades do momento. Mas outros concorrentes não
tardaram a aparecer. A livre concorrência não significa que se possa
prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por
alguém. A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar
o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro
autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever
outra coisa. A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias,
por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para
fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque
em situação muito precária de competitividade.
Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através
dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de
ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito
ao transporte de passageiros.
O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem
tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.
E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio,
transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem
precedentes da população mundial.
Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento
a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida. Hoje,
mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de
vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século
XVIII. E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente
mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de
sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais
que “aventuras” políticas e militares evitáveis.
Estes são os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um inglês –
ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do
mundo – afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há
uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste
planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao
capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão
de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do
capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o
capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população
sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo,
seja qual for o valor que você atribua à própria vida.” 
Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente
atacado e criticado. É preciso compreender a origem dessa aversão. É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo,
não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia
fundiária – a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.
Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável:
no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas
indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária
a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.
A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das
massas trabalhadoras.
Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores
era extremamente baixo. Mas, se as condições de vida
nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas,
não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem
prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas
já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.
A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas
empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas
fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores
embustes da história. As mães que trabalhavam nas fábricas não
tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas
para se dirigir às fábricas – corriam a elas porque não tinham
cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas
cozinharem. E as crianças não provinham de um ambiente confortável:
estavam famintas, estavam morrendo. E todo o tão falado
e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado
por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do
capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial
inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o
que significa que centenas de milhares de crianças – que em outros
tempos teriam morrido – sobreviveram e cresceram, tornando-se
homens e mulheres.
Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas
anteriores eram muito insatisfatórias. Foi o comércio capitalista
que as melhorou. Foram justamente aquelas primeiras fábricas que
passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus
trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação
de alimentos e matérias-primas de outros países. Mais uma
vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil
usar uma palavra mais branda – a história.
Há uma anedota – provavelmente inventada – que se costuma
contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício
na Inglaterra, Ben Franklin ouviu do proprietário cheio de
orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.”
Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam
em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também
para os seus empregados?”
Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente
significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados,
visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matéria-prima. 

Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a Europa
continental. A Inglaterra atravessava uma fase de escassez de
alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia, da
Hungria. Assim, as exportações – como as de tecidos – se constituíam
no pagamento de importações de alimentos necessários à sobrevivência
da população inglesa. Muitos exemplos da história dessa
época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia com
relação aos trabalhadores. Quero citar apenas dois. Um é o famoso
sistema inglês do seed and land. Por tal sistema, o governo inglês
pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber um sa-
lário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam
e esse mínimo. Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor de
pagar salários mais altos. A pequena nobreza continuaria pagando
o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado pelo governo.
Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem as atividades
rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas. 

Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra
para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação
da aristocracia rural contra o novo sistema de produção. Na
Alemanha, os aristocratas prussianos – tendo perdido muitos trabalhadores
para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor
remuneração – cunharam uma expressão especial para designar o
problema: “fuga do campo” – Landflucht. Discutiu-se, então, no
parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra
aquele mal – e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto
de vista da aristocracia rural. O príncipe Bismarck, o famoso
chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei
em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.
Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou
o campo? Por que vive agora em Berlim?’”
E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se
tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos
sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma
estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.
Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados. Estes
acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e
elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.
Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença
entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas:
ambas têm alimento, roupas e abrigo. Mas no século XVIII, e
nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média
do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo,
não. Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um
pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um
Chevrolet. O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu
dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar,
uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.
Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e
apartamentos próprios.
As investidas contra o capitalismo – especialmente no que se refere
aos padrões salariais mais altos – tiveram por origem a falsa
suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas
diferentes daquelas que trabalham nas fábricas. Certamente,
nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas
tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor. Mas o fato é
que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o
dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída
precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como
empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.
No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas
diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas
que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de
Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga
é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas. E não
é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências
de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para
a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traçase,
no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na
vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise,
uma só e a mesma pessoa.
Em muitos países há quem considere injusto que um homem
obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário
que outro, responsável apenas pela própria manutenção. No
entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não
que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de
um trabalhador.
A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo,
se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão,
se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos?

Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo:
“Em princípio, sim. Nas na prática tenderia a comprar o pão
feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador
a quem os compradores não pagam o suficiente para que
ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar
adiante seus negócios.
O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do
sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os
sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera
sobre a humanidade. Esse homem foi Karl Marx. Não há razão,
contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que
ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados
pelo capitalismo. Esses progressos são fruto da acumulação
do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de
regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas
poupam – e investem – parte desse montante.
Reina um grande equívoco em torno desse problema. Ao longo
destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais
mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital,
com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a
partir desse uso. Tratarei do capitalismo particularmente em minhas
palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema
extremamente crítico da política atual que é a inflação. Todos
sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país. Constitui
hoje um problema em todas as partes do mundo. O que muitas
vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte:
poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir
ou receber salários.
Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro – mil
dólares, digamos – e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a
uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere
esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o
que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades
e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por
falta do capital necessário. Que fará então o empresário com o
capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro
uso que dará a esse capital suplementar será a contratação
de trabalhadores e a compra de matérias-primas – o que promoverá,
por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores
e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação
dos salários e dos preços dessas matérias-primas. Muito antes que
o poupador ou o empresário tenham obtido algum lucro em tudo
isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas,
o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios
das poupanças adicionais.
O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende
das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las
corretamente. Mas os trabalhadores, assim como os produtores de
matéria-prima, auferem as vantagens de imediato. Muito se falou,
trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” – como a
denominavam – de Henry Ford. Uma das maiores façanhas do
Sr. Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos
pelas demais industrias ou fábricas. Sua política salarial foi descrita
como uma “invenção”. Não se pode, no entanto, dizer que
essa nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade
do Sr. Ford. Um novo ramo industrial – ou uma nova
fábrica num ramo já existente – precisa atrair trabalhadores de
outros empregos, de outras regiões do país e até de outros países.
E não há outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de
salários mais altos aos trabalhadores. Foi o que ocorreu nos primórdios
do capitalismo, e é o que ocorre até hoje.
Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir
artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores
mais do que estes ganhavam antes. É verdade que grande porcentagem
desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.
Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes
fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação
do capital e a implantação de um número cada vez maior
de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência
houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao
qual já me referi. A reiterada caracterização depreciativa do capitalismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim. A tese de
Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto
de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que
o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria
na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas
mãos, ou mesmo nas de um homem só. Como consequência, as
massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam
os bens dos opulentos proprietários.
Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista,
qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria
das condições dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a
Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx
afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores
condições para a população trabalhadora era “absolutamente
errônea”. Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação
de melhores salários e menor número de horas de trabalho de
conservadora – era este, evidentemente, o termo mais desabonador
a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem
uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de
salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo
“socialismo” – a posse dos meios de produção pelo governo.
Se consideramos a história do mundo – e em especial a história
da Inglaterra a partir de 1865 – verificaremos que Marx estava errado
sob todos os aspectos. Não há um só país capitalista em que as
condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita. Todos
esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos
produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas
de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores
jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a
famosa “lei de ferro dos salários”. Segundo esta lei, no capitalismo,
os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse
estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa. 

Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os
padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salá-
rios, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão
mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão
o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões
salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores
a um nível mínimo necessário para a subsistência – àquele nível
mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da
população trabalhadora.
Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve
um conceito de trabalhador idêntico ao adotado – justificadamente
– pelos biólogos que estudam a vida dos animais. Dos camundongos,
por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento à
disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número
deles sobreviverá. Se a restringirmos, restringiremos o número
dos sobreviventes. Mas com o homem é diferente. Mesmo o trabalhador
– ainda que os marxistas não o admitam – tem carências
humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.
Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população;
resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão
de vida média. É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em
desenvolvimento, às da África, por exemplo. Devemos compreender,
contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se
na disponibilidade de capital. Isso explica a diferença entre as
condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na
Índia. Neste país foram introduzidos – ao menos em certa medida
– modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito
foi um aumento inaudito da população. No entanto, como esse
crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento
correspondente do montante de capital investido no país, o resultado
foi um agravamento da miséria. Quanto mais se eleva o capital
investido por indivíduo, mais próspero se torna o país.
Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem
milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o
chamado milagre econômico alemão – a recuperação da Alemanha
depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.
Mas não houve milagre. Houve tão somente a aplicação
dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo,
embora essa aplicação não tenha sido completa em todos
os pontos. Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de
recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não
é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas, pois que é delas que resulta.

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domingo, 14 de dezembro de 2025

O QUE DEVE SER FEITO - Capítulo 7

Reforma de cima para baixo: convertendo o rei
O problema até 1914 era comparativamente pequeno
e a possível solução era então comparativamente fácil;
e hoje como veremos, as questões são mais difíceis e a
solução é muito mais complicada. Na metade do século
XIX, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, não
somente o grau de centralização política era muito menor
do que é agora; a Guerra de Independência Sulista ainda
não havia ocorrido, e nem a Alemanha ou a Itália existiam
como estados unificados.

Mas especialmente, a era da democracia em massa mal
havia se iniciado nesta época. Na Europa, após a derrota
de Napoleão, os países ainda eram governados por reis
e príncipes, e eleições e parlamentos desempenhavam
papéis secundários e, além disso, eram restritas a números
extremamente pequenos de grandes proprietários.
Similarmente, nos Estados Unidos, o governo era gerido
por pequenas elites aristocráticas, e o voto era restrito por
rigorosos requerimentos de propriedade. Afinal, apenas
aquelas pessoas que possuem algo a ser protegido deveriam
gerir aquelas agências que desempenham a proteção.
Há 150 anos, ou mesmo há 100 anos, apenas as seguintes
coisas eram essenciais para resolver o problema. Teria sido
necessário apenas forçar o rei a declarar que dali em diante,
todo cidadão seria livre para escolher seu próprio protetor,
e jurar lealdade a qualquer governo que ele quisesse. Ou
seja, o rei não mais presumiria ser o protetor de alguém, a
menos que esta pessoa solicitasse a ele, e concordasse com
o valor que o rei cobrasse por tal serviço.

O que teria acontecido neste caso? O que teria
acontecido se, digamos, o imperador da Áustria tivesse
feito tal declaração em 1900? Tentarei dar um cenário ou
rascunho resumido do que eu acho que provavelmente
teria acontecido nesta situação.
Primeiro, todo mundo, diante desta declaração, teria
reassegurado seu direito irrestrito a autodefesa, e teria sido
liberado para decidir se ele queria mais ou melhor proteção
do que a proporcionada pela autodefesa, e se quisesse,
onde e de quem adquirir esta proteção. A maioria das
pessoas nesta situação indubitavelmente teria escolhido
tirar proveito da divisão do trabalho, e contar, além da
autodefesa, também com protetores especializados.
Segundo, na procura por protetores, praticamente todo
mundo recorreria a pessoas ou agências que possuíssem,
ou fossem capazes de adquirir, os meios de assegurar
a tarefa de proteção – isto é, que tivessem elas próprias
um interesse no território a ser protegido na forma de
investimentos substanciais em propriedades – e que
possuíssem uma estabelecida reputação de confiáveis,
prudentes, honrosos e justos.
É seguro dizer que ninguém teria escolhido um
parlamento eleito para desempenhar esta tarefa. Ao invés
disso, quase todos teriam procurado ajuda em um ou
mais destes três locais: ou o próprio rei, que neste ponto
não é mais um monopolista; ou um nobre, magnata ou
aristocrata regional ou local; ou mesmo uma companhia
internacional de seguros em atuação.
Obviamente, o próprio rei iria satisfazer estes
requerimentos que acabei de mencionar, e muitas pessoas
o teriam escolhido voluntariamente como seu protetor.
Ao mesmo tempo, porém, muitas pessoas também iriam
apartar-se do rei; destas, uma grande parte provavelmente
iria se voltar a vários nobres e magnatas regionais, que
seriam neste momento a nobreza natural, ao invés de
hereditária. E em uma escala territorial menor estes
nobres locais teriam sido capazes de oferecer as mesmas
vantagens como protetores que o próprio rei seria capaz
de oferecer. E esta mudança para protetores regionais
teria acarretado em uma descentralização significativa
na organização e na estrutura da indústria de segurança.
E esta descentralização teria sido apenas um reflexo dos
interesses de proteção privados ou subjetivos, e estariam
de acordo com eles – ou seja, a tendência de centralização
que mencionei anteriormente também levou a uma
centralização excessiva dos negócios de proteção.
Por último, praticamente todas as outras pessoas,
especialmente nas cidades, teriam buscado proteção nas
companhias de seguros comerciais, tipo as de seguro
contra incêndios. Seguro e proteção de propriedade
privada são obviamente assuntos intimamente ligados.
Melhor proteção acarreta em menores compensações
de seguro. E com seguradores entrando no mercado de
proteção, rapidamente os contratos de proteção, ao invés
de promessas indefinidas, teriam se tornado o produto
padrão pelo qual a proteção seria ofertada.
Além disso, em virtude da natureza do seguro, a
competição e a cooperação entre várias seguradoras
protetoras promoveriam o desenvolvimento de regras
universais de procedimento, evidência, resolução
de conflito e arbitragem. Igualmente, promoveriam
a homogeneização e heterogeneização simultâneas
da população em diversas classes de indivíduos com
diferentes grupos de risco relativos à proteção de suas
propriedades, e correspondentemente, diferentes prêmios
de seguro de proteção. Toda a distribuição sistemática e
Reforma de cima para baixo: convertendo o rei
previsível de riqueza e rendimento entre os diferentes
grupos dentro da população como existiam sob condições
monopolísticas seria imediatamente eliminada. E isto
logicamente promoveria a paz.
E o que é ainda mais importante, a natureza da
proteção e da defesa teriam sido fundamentalmente
alteradas. Sob condições monopolísticas, existe somente
um protetor; sendo ele monárquico ou democrático não
faz diferença neste ponto, um governo é invariavelmente
concebido como um defensor e protetor de um território
fixo e contínuo. Todavia, esta característica é resultado de
um monopólio de proteção compulsório. Com a abolição
de um monopólio, esta característica iria desaparecer
imediatamente por ser extremamente anormal e até
artificial. Poderia vir a existir uns poucos protetores locais
que defendessem apenas um território contínuo. Mas
também existiriam outros protetores, como o rei ou as
agências de seguro, cujo território protegido consistisse
de pedaços, partes e trechos remedados descontínuos.
E as “fronteiras” de todo governo estariam num fluxo
constante. Particularmente nas cidades, não seria mais
incomum dois vizinhos terem agências de proteção
diferentes, do que terem diferentes seguradoras contra
incêndio.
Esta estrutura retalhada de proteção e defesa aprimora
a proteção. A defesa monopolística contínua presume
que os interesses em segurança de toda a população de
determinado território sejam de certa forma homogêneos.
Isto é, que todas as pessoas em um determinado território
possuam o mesmo tipo de interesse em defesa. Porém,
esta é uma suposição extremamente irrealista; na verdade
é falsa. Na verdade, as necessidades de segurança das
pessoas são altamente heterogêneas. As pessoas podem
simplesmente possuir propriedades em um local, ou em
diversos locais espalhados territorialmente, ou elas podem
ser praticamente autossuficientes, ou apenas dependentes
de poucas pessoas nos seus afazeres econômicos; ou, por
outro lado, elas podem estar profundamente integradas
no mercado e dependentes economicamente de milhares
e milhares de pessoas espalhadas por enormes territórios.

A estrutura em retalhos da indústria de segurança
iria apenas refletir esta realidade de necessidades
extremamente diversificadas em segurança que existe
em pessoas variadas. Igualmente, esta estrutura iria por
sua vez estimular o desenvolvimento de um armamento
de proteção correspondente. Ao invés de produzir e
desenvolver armas e instrumentos de bombardeio em larga
escala, instrumentos seriam desenvolvidos para a proteção
de territórios de pequena escala sem danos colaterais.
Além disso, porque toda redistribuição de renda e de
riqueza inter-regional seria eliminada em um sistema
competitivo, a estrutura retalhada também iria oferecer as
melhores garantias de paz inter-regional. A probabilidade
e as extensões de conflitos inter-regionais seriam reduzidas
se houvesse retalhos. E porque todo invasor estrangeiro,
por assim dizer, iria quase que instantaneamente, mesmo
se ele invadisse apenas um pequeno pedaço de terra,
se deparar com a oposição e contra-ataques militares
e econômicos vindos de várias agências de proteção
independentes, da mesma forma, o perigo de invasões
estrangeiras seria reduzido.
Indiretamente, já está claro ao menos parcialmente
como e por que ficou muito mais difícil alcançar esta
solução no decorrer dos últimos 150 anos. Deixe-me
apontar algumas das mudanças fundamentais que
ocorreram que tornaram todos esses problemas muito
maiores. Primeiro, não é mais possível realizar as reformas
Reforma de cima para baixo: convertendo o rei
de cima para baixo. Os liberais clássicos, durante a época
das antigas monarquias, poderiam ter achado, e de fato
frequentemente achavam, e poderiam ter realmente
acreditado em simplesmente convencer o rei de seus
pontos de vista, e pedido para ele abdicar de seu poder, e
todo o resto estaria automaticamente resolvido.
Hoje em dia, o monopólio de proteção do estado é
considerado público, ao invés de propriedade privada,
e o poder do governo não está mais atrelado a nenhum
indivíduo em particular, e sim a funções específicas,
exercidas por indivíduos anônimos ou ocultos
representados como membros de um governo democrático.
Portanto, a estratégia de conversão de apenas um homem
ou de poucos homens não mais se aplica. Não importa
se alguns membros do alto escalão do governo sejam
convencidos – o presidente e alguns senadores – porque,
dentro das regras do governo democrático, nenhum
indivíduo isolado possui o poder pessoal de abdicar do
monopólio governamental de proteção. Os reis tinham
esse poder; o presidente não.
O presidente pode somente renunciar, apenas para
ser substituído por outra pessoa. Mas ele não pode
dissolver o monopólio de proteção do governo, porque
teoricamente o povo é o dono do governo, e não o
próprio presidente. Então, sob o governo democrático,
a abolição do monopólio governamental de justiça e
proteção requer ou que uma maioria do público e de seus
representantes eleitos declarasse a abolição do monopólio
de proteção governamental e correspondentemente de
todos os impostos, ou de forma ainda mais restritiva, que
literalmente ninguém fosse votar e o eleitorado fosse zero.
Somente neste caso poderíamos dizer que o monopólio
de proteção do governo foi efetivamente abolido. Mas
essencialmente isso significaria que seria impossível algum
dia nos livrarmos de uma perversão moral e econômica.
Porque hoje em dia é um fato consumado que todo mundo,
incluindo a turba, toma parte da política, e é inconcebível
que a turba iria algum dia, em sua maioria ou mesmo
plenamente, renunciar ou se abster de exercer seu direito
de voto, que não é nada além de exercer a oportunidade de
pilhar a propriedade alheia.
Além do mais, mesmo se assumíssemos contra todas
as chances que isso possa ser alcançado, os problemas não
acabariam. Porque outra verdade sociológica fundamental
da era da democracia de massa igualitária moderna é a
quase completa destruição das elites naturais. O rei poderia
abdicar de seu monopólio e as necessidades de segurança
do povo ainda teriam sido quase que automaticamente
atendidas porque existia para a maioria o próprio rei,
e também nobres locais e regionais e as principais
personalidades do mundo dos negócios, uma elite natural,
claramente visível, estabelecida e voluntariamente
reconhecida e uma estrutura complexa de hierarquias, e
ordens de classificação que as pessoas poderiam se voltar
para satisfazer seus desejos de serem protegidas.
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sábado, 13 de dezembro de 2025

A IGREJA ORTODOXA - Relações ortodoxas com outras comunhões

 

10. Relações ortodoxas com outras comunhões: «oportunidades e problemas»

As Igrejas Orientais «separadas»

Quando pensam em unidade, os Ortodoxos olham não só para o Ocidente, mas pra seus vizinhos no oriente, os Nestorianos, e os Monofisistas. De muitos modos, a Ortodoxia está mais próxima das Igrejas "separadas" do Oriente que de qualquer confissão ocidental.

10.1 - Os Nestorianos

São hoje em número muito reduzidos, talvez 50.000, e quase inteiramente desprovido de teólogos, assim é difícil entrar em negociação com eles. Mas uma união parcial entre ortodoxos e Nestorianos já ocorreu. Em 1998 um Nestoriano assírio, Mar Ivanos, Bispo de Urumia, na Pérsia, junto com seu rebanho, foi recebido em comunhão pela Igreja Russa. A iniciativa coube primariamente ao lado Nestoriano, e não houve pressão, política ou de outro tipo, de parte dos Russos. Em 1905 essa diocese ex-Nestoriana dizia-se ter 80 paróquias e 70.000 féis; mas entre 1915 e 1918 os Ortodoxos Assírios foram assassinados pelos turcos numa série de massacres não provocados, dos quais poucos milhares escaparam. Mesmo tendo sido sua vida cortada logo e tão tragicamente, a reconciliação dessa antiga comunidade Cristã forma um precedente encorajador: Porque não poderia a Igreja Ortodoxa de hoje chegar a um entendimento similar com o resto da comunhão Nestoriana? (Quando visitando um convento perto de Nova York em 1960, eu tive o prazer de encontrar um Bispo Ortodoxo Assírio, originalmente da comunidade de Urumia, também chamado Mar Ivanios (sucessor do original Mar Ivanos). Um Padre Casado, tornou-se Bispo depois da morte da mulher. Quando eu perguntei a idade dele as monjas, elas disseram: "Ele diz ter 102, mas seus filhos dizem que ele deve ser muito mais velho que isso").

10.2 - Os Monofisitas

Do ponto de vista prático, estão em uma posição muito diferente dos Nestorianos, pois eles são comparativamente numerosos, mais de dez milhões, e possuem teólogos capazes de apresentar e interpretar sua posição doutrinal tradicional. Numerosos eruditos ocidentais e Ortodoxos hoje acreditam que o ensinamento Monofisita acerca da pessoa de Cristo foi no passado seriamente mal entendido, e que a diferença entre aqueles que aceitam e aqueles que rejeitam os decretos de Calcedônia é largamente, se não mesmo inteiramente verbal. Quando visitando a Igreja Copta Monofisita do Egito em 1959, o Patriarca de Constantinopla falou com grande otimismo: "Na verdade, nós todos somos um, todos somos Cristãos Ortodoxos... Temos os mesmos sacramentos, a mesma história, as mesmas tradições. A divergência está no nível de fraseologia" (Discurso feito no Instituto de Altos Estudos Copta, Cairo, 10 de dezembro de 1959). De todos os contatos "ecumênicos" da Ortodoxia, a amizade com os Monofisitas parece ser o mais desejável e o que mais provavelmente levará a resultados concretos num futuro próximo. A questão de união com os Monofisitas estava bastante no ar nas Conferências Pan-Ortodoxas de Rhodes, e com certeza figurará proeminentemente na agenda de futuros concílios Pan-Ortodoxos. Durante Agosto de 1964 uma muito amistosa "Consulta não-oficial" realizou-se em Aarhus na Dinamarca entre teólogos Ortodoxos e Monofisistas. "Nós todos aprendemos uns com os outros, "declararam os delegados dos dois lados na "declaração de concordância" feita ao final da reunião. "Nossos desentendimentos herdados começaram a ser esclarecidos. Reconhecemos, uns nos outros, a fé Ortodoxa una da Igreja. Quinze séculos de alienação não nos desviaram da fé de nossos Pais."

Consultas adicionais aconteceram em Bristol (1967), Genebra (1970) e Addis Abeba (1971).

10.3 - A Igreja Católica Romana

Entre Cristãos Ocidentais, é com os Anglicanos que a Ortodoxia mantém relações mais cordiais, mas é com os Católicos romanos que a Ortodoxia tem de longe mais em comum. Com certeza há entre a Ortodoxia e Roma muitas dificuldades. As barreiras psicológicas usuais existem. Dentre os Ortodoxos e sem duvida dentre os Católicos Romanos da mesma forma — há uma infinidade de preconceitos herdados que não podem ser rapidamente ultrapassados; e os Ortodoxos não acham fácil esquecer a experiência infelizes do passado — tais como as Cruzadas, a "União" de Brest-Litovski, o cisma em Antioquia no século XVIII, ou a perseguição da Igreja Ortodoxa na Polônia pelo governo Católico Romano entre as duas guerras mundiais. Os Católicos Romanos normalmente não se dão conta de quão profundo é o sentido de receio e apreensão que muitos devotos Ortodoxos — tanto cultos quanto simples — ainda sentem quando pensam na Igreja de Roma. Mais sérias do que estas barreiras psicológicas são as diferenças doutrinais entre os dois lados — acima de tudo o filioque e as prerrogativas papais. Uma vez mais muitos Católicos Romanos falham ao não considerarem quão sérias são as dificuldades teológicas, e quão grande importância os Ortodoxos dão a estes dois assuntos. Mesmo quando tudo foi dito sobre divergências dogmáticas, diferenças na espiritualidade e na abordagem geral, ainda permanece verdadeiro que há muitas coisas que os dois lados compartilham em sua experiência dos sacramentos, por exemplo, e em sua devoção à Mãe de Deus e aos santos — para mencionar apenas duas instâncias em muitas — Ortodoxos e Católicos Romanos são na maior parte muito próximos.

Já que os dois lados têm tanto em comum, haverá, talvez, alguma esperança de reconciliação? À primeira vista, somos tentados a não ter esperança, particularmente quando considera-se a questão das reivindicações papais. Os Ortodoxos acham-se incapazes de aceitar as definições do Concílio Vaticano de 1870 referente à suprema jurisdição ordinária e à infalibilidade do Papa, mas a Igreja Católica Romana considera o Concílio Vaticano ecumênico e então tende a tomar suas definições como irrevogáveis. Entretanto estes assuntos não estão completamente num impasse. Podemos perguntar, quão acertadamente os controversialistas Ortodoxos compreenderam os decretos do Vaticano? Talvez o significado atribuído às definições pela maioria dos teólogos ocidentais nos últimos noventa anos não seja, de fato, a única interpretação possível. Ademais agora é amplamente admitido pelos Católicos romanos que os decretos do Vaticano são incompletos e unilaterais: Falam unicamente do Papa e de suas prerrogativas, mas não falam nada sobre os bispos. Porém agora que o Segundo Concílio vaticano realizou-se uma declaração dogmática sobre as poderes do episcopado, a doutrina Católica romana das prerrogativas papais começaram a aparecer para o mundo Ortodoxo sob uma luz diferente.

E se Roma no passado falou talvez muito pouco sobre a posição dos bispos na Igreja os Ortodoxos por sua vez precisam levar a idéia de Primazia mais a sério. Os Ortodoxos concordam que o Papa é primeiro dentre os Bispos: será que eles se perguntaram cuidadosa e diligentemente o que isto de fato significa? Se a Sé primazial de Roma fosse uma vez mais reunida à Comunhão Ortodoxa, o que seria precisamente este status? Os Ortodoxos não estão dispostos a atribuir ao Papa uma supremacia universal de jurisdição "ordinária," mas não seria possível para eles atribuírem a ele, como Presidente e primaz no colégio dos Bispos, uma responsabilidade universal, um todo-abrangente cuidado pastoral estendendo-se por sobre toda a Igreja? Recentemente o Movimento da juventude Ortodoxa no patriarcado de Antioquia sugeriu duas formulações. "O Papa, dentre os bispos, é o irmão mais velho, estando o pai ausente." "O Papa é a boca da Igreja e do episcopado." Obviamente estas formulações aproximam-se das declarações do Vaticano sobre a jurisdição e infalibilidade Papal, mas podem servir de alguma maneira como base para uma discussão construtiva. Até agora os teólogos Ortodoxos, no calor da controvérsia, muito freqüentemente contentaram-se em apenas atacar a doutrina Romana do Papado (como eles a compreendem) sem aprofundarem-se e declarar em linguagem positiva os que a verdadeira natureza da primazia Papal é do ponto de vista Ortodoxo. Se os Ortodoxos pensassem e falassem mais de maneira construtiva e menos em termos negativos e polêmicos, então a divergência entre os dois lados poderia parecer menos tão absoluta.

Depois de longo adiamento as Igrejas Ortodoxa e Católica Romana estabeleceram em 1980 uma comissão internacional mista para discussões teológicas. Muito vem sendo feito informalmente através de contatos pessoais.

Um trabalho de valor inestimável foi feito pelo Católico Romano "Mosteiro da União" em Chevetogne na Bélgica, fundado originalmente em Amay-sur-Mense em 1926. É um Mosteiro de "Rito duplo" onde os monges oram nos ritos Romano e Bizantino: O periódico de Chevetogne, Irénikon, contem um relato precioso e simpático dos assuntos atuais na Igreja Ortodoxa, bem como inúmeros estudos, com freqüência fornecidos por Ortodoxos.

Com certeza, deve-se ser sóbrio e realista: a união entre a Ortodoxia e Roma, se algum dia acontecer, será uma tarefa de extraordinária dificuldade. Porém os sinais de uma reaproximação crescem dia a dia. O Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras de Constantinopla encontraram-se três vezes (Jerusalém, 1964; Constantinopla e Roma, 1967); em 7 de dezembro de 1965 os anátemas de 1054 foram simultaneamente retirados pelo Concílio Vaticano em Roma e o Santo Sínodo em Constantinopla; em 1979 o Papa João Paulo II visitou o Patriarca Dimitrios. Através de tais gestos simbólicos a confiança mútua está sendo criada.

10.4 - Os Velhos-Católicos

Era mais do que natural que os Velhos Católicos que se separaram de Roma depois do Concílio Vaticano de 1870 tivessem entrado em negociações com os Ortodoxos. Os Velhos Católicos queriam recuperar a fé verdadeira da antiga "Igreja Indivisa" usando como base os Padres e os sete Concílios Ecumênicos: Os Ortodoxos argumentaram que estas fé não era meramente uma coisa do passado, a ser reconstruída por uma pesquisa arcaica, mas uma realidade presente a qual, pela graça de Deus, eles jamais deixaram de possuir. Os dois lados encontraram-se em numerosas conferências, em particular em 1874 e 1875, em Roterdam em 1894, de novo em Bonn em 1931 e em Rheifieden em 1957. Uma grande parte de concordância doutrinal foi alcançada nesses encontros, embora não tenham levado a nenhum resultado prático, embora as relações entre Velhos Católicos e Ortodoxos continuem a ser muito amistosas, nenhuma união foi efetivada. Em 1975 um diálogo teológico em larga escala foi resumido entre as duas Igrejas, e uma importante série de declarações doutrinais foram feitas, mostrando uma vez mais o quanto os dois lados têm em comum.

10.5 - A Comunhão Anglicana

Como no passado hoje em dia há muitos Anglicanos que vêem a Reforma Inglesa do século XVI como nada além do que um arranjo interino que apela, como os Velhos Católicos, para os Concílios Gerais, os Padres e a tradição da "Igreja Indivisa." Pensa-se no Bispo Pearson no século XVII, com seu apelo: "Buscai como era no começo; ide à nascente da fonte; olhai para a antiguidade." Ou no Bispo Ken, o não-Juror, que disse: "Morro na fé da Igreja Católica, antes da desunião do ocidente e do oriente." Esta chamada à antiguidade levou muitos Anglicanos a olharem com simpatia e interesse a Igreja Ortodoxa, e da mesma forma, levou muitos Ortodoxos a olharem com interesse e simpatia o Anglicanismo. Como resultado do trabalho pioneiro de Anglicanos tais como William Palnur (1811-1879) (Recebido na Igreja Católica Romana em 1855). J.M.Neale (1818-1866), and W.J.Birbeck (1859-1916). As relações Anglo-Ortodoxas durante os últimos 100 anos desenvolveu-se e floresceu de forma bastante viva.

Várias conferências entre teólogos Ortodoxos e Anglicanos foram realizadas. Em 1930, uma delegação Ortodoxa representando dez Igrejas Autocéfalas (Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Grécia, Chipre, Sérvia, Bulgária, Romênia, Polônia) foi enviada à Inglaterra por ocasião da conferência Lambeth, e manteve diálogos com um comitê de Anglicanos; e no ano seguinte uma Junta Anglicana-Ortodoxa reuniu-se em Londres, com representantes das mesmas Igrejas de 1930 (exceto Búlgaros).

Tanto em 1930 quanto em 1931 uma tentativa honesta foi feita no sentido de encarar os pontos de discordância doutrinal. Dentre os tópicos levantados estavam a relação entre Escrituras e Tradição, a Processão do Espírito Santo, a doutrina dos sacramentos, e a idéia Anglicana de autoridade na Igreja. Uma conferência similar realizou-se em 1935 em Bucareste, com delegados Anglicanos e Romenos. Esta reunião concluiu suas deliberações declarando: "Uma base sólida foi preparada por meio da qual uma completa concordância dogmática pode ser afirmada entre as comunhões Ortodoxa e Anglicana. Em retrospectiva, estas palavras parecem demasiadamente otimistas. Durante os anos trinta os dois lados pareciam estar fazendo grande progresso em direção a uma completa concordância dogmática e muitos — especialmente do lado dos Anglicanos — começaram a pensar que em breve viria um tempo em que as Igrejas Ortodoxa e Anglicana estariam em comunhão. Desde 1945, entretanto, tornou-se claro que tal esperança era prematura: a completa concordância dogmática e a comunhão nos sacramentos estão ainda muito longe. A maior conferência teológica entre Anglicanos e Ortodoxos realizada desde a guerra, em Moscou em 1956, foi muito mais cautelosa do que as que a precederam nos anos trinta. A primeira vista seus veredictos parecem ser, comparativamente, pobres e decepcionantes, mas na verdade eles constituem uma avanço importante, pois são marcados por um realismo visivelmente maior. Nas conferências entre as guerras havia a tendência de selecionar pontos específicos de discordância e de considerá-los isoladamente. Em 1956 um esforço genuíno foi feito no sentido de levar a questão inteira para um nível mais profundo: não somente saídas particulares mas a própria fé das duas Igrejas foi discutida, assim pontos específicos poderiam ser vistos em um contexto mais amplo.

Um diálogo teológico oficial envolvendo todas as Igrejas Ortodoxas e a Comunhão Anglicana inteira começou em 1973. Em 1977-1978 ocorre uma crise nas conversações por conta da Ordenação de mulheres presbíteras em várias Igrejas Anglicanas. As conversações continuaram mas o progresso tornou-se lento.

Nos últimos quarenta anos um grande número de Igrejas Ortodoxas fizeram declarações sobre a validade das Ordens Anglicanas. À primeira vista estas declarações parecem contradizer uma a outra de forma curiosa e extraordinária:

«Seis Igrejas fizeram declarações que parecem reconhecer as ordenações Anglicanas como sendo válidas: Constantinopla (1922), Jerusalém e Sinai (1923), Chipre (1923, Alexandria (1930), Romênia (1936).»

A Igreja Russa no Exílio, no Sínodo de Karkovtzy de 1935, declarou que o clero Anglicano que se tornasse Ortodoxo deveria ser reordenado. Em 1948, numa grande conferência realizada em Moscou, o Patriarcado de Moscou promulgou um decreto com a mesma posição, o qual foi também assinado pelos delegados oficiais (presentes na conferência) das Igrejas de Alexandria, Antioquia, Sérvia, Bulgária, Romênia, Geórgia e Albânia.

Para interpretar estas declarações, seria necessário discutir em detalhes a visão Ortodoxa da validade dos sacramentos, que não é a mesma dos teólogos ocidentais, e também o conceito Ortodoxo de "economia eclesiástica," e estes temas são tão complexos e obscuros que não poderiam ser levados a fundo aqui. Porém certos pontos devem ser mencionados. Primeiro, as Igrejas que se declararam a favor das Ordens Anglicanas aparentemente não sustentaram sua decisão. Recentemente, quando o clero Anglicano aproximou-se do Patriarcado de Constantinopla visando entrar na Igreja Ortodoxa, tornou-se evidente para eles que seriam recebidos como leigos e não como padres.

Segundo, as declarações favoráveis tomadas por grupos (1) são cuidadosamente qualificadas e devem ser vistas como provisionais. O Patriarcado Ecumênico, por exemplo, quando comunicou a decisão de 1922 ao Arcebispo de Canterbury, disse em sua nota de abertura: "É evidente que ainda não se trata aqui de um decreto de toda a Igreja Ortodoxa. Pois é necessário que o resto das Igrejas Ortodoxas tenham a mesma opinião da santíssima Igreja de Constantinopla." Em terceiro lugar, a Ortodoxia é extremamente relutante em fazer julgamentos sobre o status dos sacramentos realizados por não-Ortodoxos. A maior parte dos Anglicanos entendeu as declarações feitas por grupo (1) como constituindo um "reconhecimento" das Ordens Anglicanas no presente momento. Mas na verdade os Ortodoxos não estavam tentando reponder a pergunta "As ordenações Anglicanas são válidas em si, aqui e agora? "Eles tinham em mente uma questão bastante diferente: "Supondo que a comunhão Anglicana fosse para alcançar a completa concordância na fé com os Ortodoxos, seria então necessário reordenar o clero Anglicano?"

Isto ajuda a explicar porque em 1922 Constantinopla pôde declarar-se favorável às ordenações Anglicanas, embora na prática trate-as como inválidas: esta declaração favorável não podia ser efetiva visto que a Igreja Anglicana não era plenamente Ortodoxa na fé. Quando as coisas são vistas sob esta luz, o decreto de Moscou de 1948 não parece mais inteiramente inconsistente com as declarações do período pré-guerra. Moscou baseou sua decisão na presente discrepância entre as crenças Anglicana e Ortodoxa. "A Igreja Ortodoxa não pode concordar em reconhecer a retidão dos ensinamentos Anglicanos sobre os sacramentos em geral, e sobre o sacramento da Santa Ordenação em Particular; e então não pode reconhecer as ordenações Anglicanas como válidas." (Note-se que a teologia Ortodoxa nega-se a tratar da questão da validade das ordenações isoladamente, mas considera, ao mesmo tempo, a fé da Igreja em questão).

Porém, assim continua o decreto de Moscou, se no futuro a Igreja Anglicana tornar-se completamente Ortodoxa na fé, então seria possível reconsiderar a questão. Enquanto dava uma resposta negativa no presente, abria uma esperança para o futuro.

Assim é a situação no que se refere a pronunciamentos oficiais. O clero Anglicano que entre para a Igreja Ortodoxa é reordenado, mas se o Anglicanismo e a Ortodoxia alcançassem uma completa unidade na fé, talvez esta reordenação pudesse não ser considerada necessária. Dever-se-ia acrescentar, entretanto, que um grande número de teólogos Ortodoxos individuais sustentam que sob nenhuma circunstancia seria possível reconhecer a validade das ordens Anglicanas.

Além das negociações oficiais entre líderes Anglicanos e Ortodoxos, realizaram-se muitos encontros construtivos no nível mais pessoal e informal. Duas sociedades na Inglaterra são especialmente devotadas à causa da reunião Anglo-Ortodoxa: A Associação das Igrejas Anglicana e Oriental (cuja organização — Associação da Igreja Oriental, começou em 1863, principalmente com a iniciativa de Neale) e a Fraternidade de Santo Albano e São Sérgio (fundada em 1928), que organiza uma conferência anual e tem um centro permanente em Londres, a Casa de São Basílio (52, ladbroke Grove, W11). A Fraternidade pública um valioso periódico chamado Sobornost, que sai duas vezes por ano; no passado a Associação das Igrejas Anglicana e Oriental publicava também uma revista, o Oriente Cristão, substituída agora por um boletim Informativo.

Qual é o principal obstáculo à união entre Anglicanos e Ortodoxos? Do ponto de vista Ortodoxo há uma grande dificuldade: a compreensão do Anglicanismo, a extrema ambigüidade das formulações doutrinais anglicanas, a ampla variedade de interpretações que estas formulações permite. Há indivíduos anglicanos que estão bem próximos da Ortodoxia, como pode ser visto por qualquer um que leia dois admiráveis panfletos: A Ortodoxia e a Conversão da Inglaterra, por Derwas Chitty; e Anglicanismo e Ortodoxia, por H.A. Hodges. "O problema ecumênico, "conclui o Professor Hodges, é ser visto "como o problema de trazer de volta o, Ocidente... a uma mente sã e a uma vida saudável, isto é a Ortodoxia... A fé Ortodoxa, aquela Fé que os Padres Ortodoxos testemunharam e da qual a Igreja Ortodoxa é a guardiã permanente, é a Fé Cristã em sua forma essencial e verdadeira." (Anglicanismo e Ortodoxia, pg. 46-7). No entanto há muitos outros Anglicanos que divergem ferozmente deste julgamento e que vêem a Ortodoxia como corrupta na doutrina e herética. A Igreja Ortodoxa, apesar de seu desejo profundo de união, não pode entrar em relação próxima com a comunhão Anglicana até que os próprios Anglicanos sejam mais claros a respeito de sua crença. As palavras do general Kereen são tão verdadeiras hoje quanto forma há cinqüenta anos atrás: "Nós Orientais sinceramente desejamos chegar a um entendimento com a grande Igreja Anglicana, mas este feliz resultado não pode ser alcançado... a menos que a Igreja Anglicana torne-se homogênea e a doutrina de suas partes constitutivas tornem-se idênticas" (Le Géneral Alexandre Kerreff et l’ancien _ Catholicisme, editado por Olga Norikoff, Berna, 1911, P.224).

10.6 - Outros Protestantes

Os Ortodoxos têm muitos contatos com os Protestantes no Continente, sobretudo na Alemanha e (em menor grau) na Suécia. As discussões Tubingem do século dezesseis foram reabertas no século vinte, com resultados mais positivos.

10.7 - O Conselho Mundial de Igrejas

Na Igreja Ortodoxa hoje existem duas atitudes diferentes em relação ao Conselho Mundial das Igrejas e o "Movimento Ecumênico." Uma parte sustenta que os Ortodoxos deveriam não tomar parte no Conselho Mundial (ou no máximo enviar observadores aos encontros, mas não delegados); a participação plena no Movimento Ecumênico compromete a reivindicação da Igreja Ortodoxa de ser a única verdadeira Igreja de Cristo e sugere que todas as "Igrejas" são iguais. Típica deste ponto de vista é a declaração feita em 1938 pelo Sínodo da Igreja Russa no Exílio.

Os Cristãos Ortodoxos devem olhar a Santa Igreja Católica Ortodoxa como a verdadeira Igreja de Cristo, uma e única. Por esta razão, a Igreja Ortodoxa Russa no Exílio proibiu seus filhos de tomarem parte no movimento Ecumênico que baseia-se no princípio da igualdade de todas as religiões e confissões Cristãs.

Mas — assim teria objetado o segundo partido — isto é entender completamente errado a natureza do Conselho Mundial das Igrejas. Os Ortodoxos, em participando, não dizem com isso que eles vêem todas as confissões Cristãs como iguais, nem comprometem a reivindicação Ortodoxa de ser a verdadeira Igreja. Como tão cuidadosamente apontou a Declaração de Toronto de 1950 (adotada pelo Comitê Central do Conselho Mundial): a Inscrição no Conselho Mundial não implica a aceitação de uma doutrina específica referente à natureza da unidade do Conselho... A inscrição não implica que cada Igreja tenha que olhar as outras Igrejas participantes como Igreja no verdadeiro e pleno sentido da palavra. Em vista desta declaração explícita (assim argumenta o segundo partido), os Ortodoxos podem tomar parte no Movimento Ecumênico sem por em risco a sua Ortodoxia, E se os Ortodoxos podem participar então assim devem proceder: pois já que eles acreditam ser a fé Ortodoxa verdadeira, é seu dever dar testemunho desta fé o mais amplamente possível.

A existência destes dois pontos de vista conflitantes conta para a algo confusa e inconsistente política que a Igreja Ortodoxa seguiu no passado. Algumas Igrejas têm enviado regularmente delegações ao Movimento Ecumênico, outras espasmodicamente ou quase nunca. Aqui está uma breve análise da representação Ortodoxa durante 1927-28:

  1. Lausane, 1927 (Fé e Ordem): Constantinopla, Alexandria, Jerusalém, Grécia, Chipre, Sérvia, Bulgária, Romênia, Polônia.
  2. Edimburgo, 1937 (Fé e Ordem): Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Grécia, Chipre, Bulgária, Polônia, Albania.
  3. Amsterdã, 1948 (Conselho Mundial de Igrejas): Constantinopla, Grécia, Igreja Romena na América.
  4. Lund, 1952 (Fé e Ordem): Constantinopla, Antioquia, Chipre, Jurisdição Norte-Americana de Russo.
  5. Evariston, 1954 (Conselho Mundial de Igrejas) Constantinopla, Antioquia, Grécia, Chipre, Jurisdição Norte-Americana de Russos, Igreja Romena na América.
  6. New Delhi, 1961 (Conselho Mundial de Igrejas) Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Grécia, Chipre, Rússia, Bulgária, Romênia, Polônia, jurisdição Norte-Americana de Russos, Igreja Romena na América.
  7. Uppsala, 1968 (Conselho Mundial de Igrejas) Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Chipre, Rússia, Bulgária, Romênia, Sérvia, Geórgia, Polônia, Jurisdição Norte-Americana de Russo, Igreja Romena na América.

Como pode ser visto por este resumo, o Patriarcado de Constantinopla sempre esteve representando nestas conferências. Desde o começo ele manteve firmemente uma política de total participação no Movimento Ecumênico. Em janeiro de 1920 o Patriarcado publicou uma carta famosa endereçada "A todas as Igrejas de Cristo, onde quer que esteja, pedindo uma mais íntima cooperação entre corpos Cristãos separados, e sugerindo uma aliança de Igrejas, paralela a recém-formada liga das Nações; muitas das idéias nesta carta antecipam desenvolvimentos posteriores no Movimento Ecumênico. Mas enquanto Constantinopla aderiu sem hesitar aos princípios de 1920, outras Igrejas foram mais reservadas. A Igreja da Grécia, por exemplo, declarou a um certo momento que somente enviaria leigos como delegados ao Conselho Mundial, embora esta decisão tenha sido revogada em 1961. Algumas Igrejas Ortodoxas foram até mais longe do que isto: na Conferência de Moscou em 1948, foi passada uma resolução condenando toda participação no conselho Mundial. Esta resolução foi declarada rudemente: "Os objetivos do Movimento Ecumênico... em seu presente estado não corresponde nem aos ideais do Cristianismo nem à missão da Igreja de Cristo, como compreende a Igreja Ortodoxa." Isto explica porque em Amsterdã, Lunk e Evanston as Igrejas Ortodoxas atrás da Cortina de Ferro não estavam representadas. Entretanto, em 1961, o Patriarcado de Moscou inscreveu-se para o Conselho Mundial e foi aceito, e isto abriu caminho a outras Igrejas ortodoxas no mundo comunista para também tornarem-se membros. Daí em diante, até onde se pode julgar, os Ortodoxos, terão um papel mais completo e mais efetivo no Movimento Ecumênico do que tiveram até então. Mas não se deve esquecer que ainda há muitos Ortodoxos — incluindo um grande número de Bispos e Teólogos — ansiosos por verem sua Igreja fora do Movimento.

A participação Ortodoxa é um fator de importância capital para o Movimento Ecumênico: é principalmente a presença Ortodoxa que protege o Concílio Mundial de Igrejas de parecer simplesmente uma aliança Pan-Protestante e nada mais. Porém o Movimento Ecumênico é importante para a Ortodoxia: ele ajudou a forçar as várias Igrejas Ortodoxas para fora de seu isolamento comparativo, fazendo-as encontrarem-se umas com as outras e a entrarem em contato com Cristãos não-Ortodoxos.

10.8 - Aprendendo uns com os outros

Khomiakov, tentando descrever a atitude Ortodoxa para outros Cristãos, em uma de suas cartas faz uso de uma parábola. Um mestre partiu, deixando seus ensinamentos para seus três discípulos. O mais velho fielmente repetia o que o seu mestre havia ensinado, nada mudando. Dos dois mais novos, um acrescentou ao ensinamento, e o outro retirou parte do ensinamento. Na sua volta o mestre sem estar zangado com ninguém, disse ao mais novo: ‘Agradeça ao seu irmão mais novo; sem ele tu não terias preservado a verdade que eu te passei.’ Então disse ao mais velho:’ Agradeça aos teus irmãos mais novos; sem eles tu não terias entendido a verdade que eu confiei a ti.’

Os Ortodoxos, com toda humildade, vêem-se na posição do irmão mais velho> Eles acreditam que pela graça de Deus eles foram capacitados a preservar a fé não prejudicada,’ nem acrescentando nada, nem tirando nada.’ Eles pleiteiam uma continuidade viva com a antiga igreja, com a Tradição dos Apóstolos e dos Padres, e eles acreditam que num Cristianismo dividido e confuso, é sua obrigação dar testemunho dessa primitiva e imutável Tradição. Hoje em dia no ocidente há muitos, tanto no lado católico quanto no lado protestante, que estão tentando ficar livres da ‘cristalização e fossilização do século dezesseis’, e que desejam ‘ir para trás da Reforma e da Idade Média.’ É precisamente aí que a Ortodoxia pode ajudar. A ortodoxia esteve fora do círculo de idéias no qual os Cristãos ocidentais se moveram nos últimos nove séculos; ela não passou pela revolução Escolástica, nem pelas Reforma e Contra Reforma, mas vive ainda na Tradição mais antiga dos Padres que tantos no ocidente desejam agora recuperar. Esse, é então o papel ecumênico da Ortodoxia: questionar a fórmula aceita do ocidente Latino, da Idade Média e da Reforma.

Além disso, se os Ortodoxos cumprirem esse papel apropriadamente, eles deverão entender sua própria Tradição melhor do que o fizeram no passado; e é o ocidente que pode ajudá-los a fazer isso. Os Ortodoxos devem agradecer aos irmãos mais novos, pois através do contato com Cristãos do ocidente — Católicos Romanos, Anglicanos, Luteranos, Calvinistas, Quakers — eles estão aptos a adquirir uma nova visão da Ortodoxia.

Os dois lados estão justamente começando a se descobrir um ao outro, e cada um tem muito que aprender. Assim como no passado a separação do oriente e ocidente provou ser uma grande tragédia para as duas partes e a causa de um penoso empobrecimento mútuo, hoje em dia a renovação dos contatos entre oriente e ocidente, já esta provando ser uma fonte de mútuo enriquecimento. O ocidente, com seus padrões críticos, e sua escolaridade Bíblica e Patrística, pode capacitar os Ortodoxos a entender o ambiente histórico das Escrituras de novas formas e a ler os padres com crescente acuracía e discriminação. Por sua vez os Ortodoxos podem dar aos Cristãos ocidentais uma renovada consciência do significado interior da Tradição, dando assistência a eles para olharem os Padres como uma realidade viva. (A edição romena da Philokalia mostra quão proficuamente os padrões críticos ocidentais, e a tradicional espiritualidade Ortodoxa podem ser combinadas). Assim como a luta dos Ortodoxos pela recuperação da comunhão freqüente, pode ter um encorajamento pelo exemplo dos Cristãos ocidentais, muitos destes por sua vez viram suas próprias orações e louvação serem incomparavelmente aprofundadas pela familiarização com a arte dos ícones Ortodoxos, a Oração do Coração, e a Liturgia Bizantina. Quando a Igreja Ortodoxa por detrás da Cortina de Ferro puder funcionar mais livremente, talvez as experiências e experimentos ocidentais a ajudarão a manejar os problemas do testemunho Cristão dentro de uma sociedade secularizada e industrial. Enquanto isso a Igreja Ortodoxa perseguida serve como lembrança para o ocidente da importância do martírio, e constitui um testemunho vivo do valor do sofrimento na vida Cristã.