domingo, 25 de agosto de 2024

O sistema e como sair dele - Outra dimensão - parte 2

Outra dimensão - parte 2

Agora falando mais especialmente sobre não participar do sistema, quando você começa a ser consciente da consciência, e observar as outras instâncias do seu ser e o mundo exterior com ela, você começa a ver que as outras instâncias do seu ser também são exteriores a você, isto é, ao seu eu verdadeiro, sua essência, o que agora é o observador. Vê que elas podem e são alteradas ao longo do tempo por fatores externos e dificilmente por qualquer fator interno, pois que estes são imóveis a não ser quando estimulados, modificados e moldados por fatores ambientais; e você percebe também que a partir de agora você pode, real e conscientemente, começar a intervir nelas a partir de um  fator realmente interior, a consciência. Então você deu o primeiro passo não só em direção ao despertar, pois observou e constatou por si mesmo, mas igualmente é o primeiro passo para a libertação do sistema. Todas as outras formas ditas "de sair do sistema" são apenas programação do próprio sistema porque são inconscientes, não baseadas em suas escolhas reais, intencionadas, mas em escolhas completamente dependentes da programação, dos estímulos, dos condicionamentos e das condições oferecidos pelo próprio sistema. Todas as condições e idéias de libertação do sistema já foram colocadas pelo próprio sistema, para que nos iludamos com elas, reelaboremos sobre elas, nos ocupemos e principalmente nos distraiamos com elas e assim percamos tempo e qualquer vislumbre de uma saída real. Ou seja, é sonhar que está se libertando deitado numa cela trancada.


Temos disso acima citado um grande exemplo, citado até hoje por quase todos os que falam sobre sair do sistema (e alguns até dizem ter saído!), quase todas as teorias de conspiração, bem fundamentadas ou ou não, quase todos os que depositam alguma importância em alguma "teoria" econômica ou filosofia particular, quase todos os ideólogos que trazem algumas bandeira particular, quase todos os chamados "nova-era" falam dele. Estou me referindo a certa obra cinematográfica cujo título se tornou quase que sinônimo do sistema que nos aprisiona (ainda que infantilmente, para a esmagadora maioria, por uns este seja reduzido aos sistemas econômicos, ou políticos, ou de governo, ou sociais, etc., o fato é que há um sistema que nos engana e aprisiona e que todas essas facetas estão incluídas nele, fazem parte, mas não são "o sistema"). E essa obra surtiu grande efeito principalmente pelo lado prejudicial: distração e ilusão de estar acordando ou saindo do sistema, em alguns até pior, a ilusão de que já saiu do sistema. Isto é muito perigoso, de fato é como uma droga sonífera e alucinógena, que surte maior efeito principalmente naqueles que descobriram ou estão descobrindo o engano do sistema e estão buscando acordar...

Para não participar do sistema exteriormente o preço pode ser muito alto, para muitos, para a maioria, pois não envolve apenas ver de forma diferente, mas ser completamente diferente. E isto implica abandonar uma série de ilusões confortáveis, e sim, de fato, de muitos confortos, muitas convicções, seguranças, garantia s futuras, enfim, muitas ilusões confortáveis. Na verdade seu inconsciente já naturalmente sabota todas as suas tentativas de despertar e de sair do sistema, porque uma das funções mais importante dele é manter você seguro, e ele entenderá isso como muito perigoso, mortal, pois tudo como vê e como entende hoje (o que lhe dá alguma segurança e capacidade de analizar as possibilidades e prevê variáveis situacionais), será profundamente alterado. Por outro lado o inconsciente se protege da sua consciência, o que ele mais teme é ser descoberto por você, isto é, pela consciência, e inevitavelmente ele vai ser em grande parte descoberto e pior, você vai conhecer as piores porções do que, pelo menos até agora, você entendia como você mesmo, você vai descobrir as "molas" que lhe impulsionam, por trás de cada pensamento, cada opinião, cada decisão, cada ação... E muitas delas, a enorme maioria, não serão belas, autruitas, nem inteligentes, mas automáticas, egocêntricas, narcisisíticas e muito feias. Mas isto fará você repensar, será que quero realmente acordar ou estou apenas insatisfeito porque o sistema não satisfez meus desejos (muitos deles programados peleo próprio sistema)? Será que sou eu que quero sair do sistema ou estou sendo traído pelo meu inconsciente na esperança de mais uma ilusão confortável, aparentemente fora do sistema? Entretanto, o que é mais importante é que isto também vai fazer você questionar o tempo todo, estou consciente agora? Eu não estava inconsciente a um segundo atrás? (E até constatar, nossa! Eu estive inconsciente por horas! Agi inconsciente , automática e mecanicamente todo esse tempo! E a cada passo, a cada decisão, você terá que perguntar a si mesmo, realmente quero isso ou sou escravo do meu próprio querer? Eu quero realmente ou isto é só mais um condicionamento, uma programação inconsciente? Eu desejo ou fui programado para desejar tal ou tal coisa, tal ou tal ação, tal ou tal prazer, gosto, diversão, modo de vida, maneira de ver, maneira de entender...? Aí sim, está começando o processo do despertar e com isso, o processo de escapar do sistema.


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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O problema metafísico da Liberdade - 3 - Nikolai Berdiaev



III

Houve tentativas de fundamentar a liberdade do homem sobre a substancialidade da alma humana. A alma humana seria uma substância e a liberdade seria o que determina essa substância desde dentro, a partir de um poder criador substancial, e não a partir de fora. Esse tipo de fundamentação é característica do espiritualismo. E o mais notável ensinamento a respeito da liberdade, fundamentado na ideia da substância, pertence ao filósofo Russo Lev Mikhaïlovitch Lopatine e foi desenvolvido na sua obra The positive tasks of Philosophy. A esse tipo de resolução filosófica do problema pertence também Maine de Biran. Essa espécie de espiritualismo defende a liberdade do homem, inferindo-a a partir de uma energia espiritual interior da natureza humana, e nisso é como se ela possuísse uma vantagem sobre o monismo idealista, que sempre afirma, seja a liberdade de Deus, seja a do espírito do mundo, mas nunca a do homem. Quando Hegel define a liberdade com as palavras: “A liberdade existe por si só[1]”, para ele, essencialmente, nessa condição – a de existir por si só – pode apenas ser encontrada a liberdade do espírito do mundo, mas não a do homem. Para o espiritualismo de Lopatine, que consiste num pluralismo e não num monismo, a liberdade é uma forma pessoalmente singular de uma causalidade interna, uma causação a partir de um poder substancial. A liberdade assim consiste definitivamente num determinismo, mas num determinismo desde dentro, das próprias substâncias, e não nascido de suas correlações. Mas esse espiritualismo pluralístico também falha na tentativa de resolver o problema da liberdade, do mesmo modo que o idealismo monístico. O ensinamento a respeito das substâncias é inteiramente impróprio para a liberdade. Se a liberdade deve ser determinada pela natureza, pela minha natureza, então ela deve ser determinada por essa natureza substancial. Se eu devo ser definido por minha natureza, isso é também uma espécie de determinismo, do mesmo modo como se eu for definido por uma natureza situada fora de mim. Ser escravo da própria natureza não constitui uma liberdade maior do que ser escravo de uma espécie de natureza estranha a mim. Da mesma forma, dentro da natureza substancial situa-se um ponto mais baixo do que tudo, um chão da liberdade, ao mesmo tempo em que essa natureza é insondável e sem fundamento. Uma liberdade que não possua esse ponto mais baixo, ou chão, ou fundamento, que não está enraizada em nada, tampouco pode estar enraizada nas substâncias, dentro da natureza substancial do homem. Esse ensinamento nega o mistério irracional da liberdade. A liberdade não é determinada pela natureza, ela em si determina a natureza. A substância é uma categoria naturalística, mas ela foi trabalhada, não pelas ciências naturais, que não têm necessidade de substância, mas pela metafísica naturalística.

O ensinamento de Kant a respeito de um caráter mentalmente postulado, a respeito de uma liberdade que jaz fora do mundo das aparências, contém em si essa semente de verdade, essa liberdade que não depende de nenhum tipo de natureza. Mas esse ensinamento sofre de dualismo, no qual a liberdade é relegada à coisa-em-si e não possui lugar de espécie alguma em nosso mundo de aparências. É precisamente nisso que se encontra a oposição básica entre a ordem da liberdade e a ordem da natureza. Nenhuma definição é aplicável à liberdade, nenhuma definição relativa à natureza e às substâncias. A liberdade não pode possuir nenhum tipo de raiz dentro da existência. A liberdade do homem também não pode ser exclusivamente definida pela graça Divina. A liberdade do homem também não possui sua fonte na natureza humana, na substância humana, e menos ainda na natureza desse mundo. Mas, nesse caso, será possível conceber a liberdade pelo pensamento? O problema da liberdade se torna de uma dificuldade extraordinária, e as dificuldades “quase insolúveis” parecem insuperáveis. A razão deve encarar a tentação de negar a liberdade do homem. E, quando ela pensa na liberdade de Deus, ela se inclina a considerá-la idêntica à necessidade Divina. É como se na existência não exista espaço para a liberdade. E as ontologias filosóficas mais significativas foram sistemas deterministas. O monismo sempre foi determinista e não encontrou lugar para a liberdade. O pathos da liberdade pressupõe um certo dualismo, embora não de caráter ontológico. A ponderação e a fundamentação da liberdade só é possível mediante uma distinção entre espírito e natureza, estabelecendo-se uma qualificação diferente do mundo espiritual, diverso da qualificação do mundo natural. A metafísica espiritualista tradicional não pode ser vista como um ensinamento a respeito do espírito, do mundo espiritual e da vida espiritual; ao contrário, ele é uma forma do naturalismo, um entendimento do espírito como natureza, como substância. Mas o espírito não é a natureza, não é uma substância, sequer é uma realidade em sentido algum, no qual se insira a realidade do mundo natural. O problema da liberdade é um problema do espírito, e não pode ser resolvido por nenhuma metafisica naturalística da existência.


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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O problema metafísico da Liberdade - 2 - Nikolai Berdiaev

 II


A dinâmica da liberdade conduz à tragédia de sua autodestruição. A liberdade primária irracional pode gerar o mal em suas entranhas. Nela não existem garantias de que irá fazer o bem, de que conduzirá a Deus, de que irá salvaguardar a si mesma. A liberdade primária e irracional possui um traço fatal de autodestruição que a permite passar para o seu oposto e gerar a necessidade. Quando a liberdade penetra na via do mal, ela perde a si mesma e cai sob o domínio da necessidade, criado por ela mesma. O homem se torna escravo da natureza, escravo das baixas paixões. A liberdade primária e irracional oculta em si a possibilidade da anarquia, tanto na vida da alma individual como na vida da sociedade. A liberdade formal, desinteressada, que nada escolhe por si, indiferente à verdade e ao bem, conduz a um afastamento entre o homem e o mundo, a uma escravidão em relação aos elementos e às paixões. A necessidade natural é sempre uma forma secundária, na base da qual jaz a liberdade primária. A necessidade é filha da liberdade, mas de uma liberdade falsamente direcionada, na qual a autoafirmação de partes do mundo conduz à mútua escravidão. A liberdade primária, de sua parte, é impotente para preservar e afirmar a liberdade, e está sempre sujeita à ameaça da destruição. Foi isso que levou Santo Agostinho a negá-la, e São Tomás de Aquino a suprimi-la, considerando que a liberdade que não fosse subordinada à verdade e não conduzisse a Deus seria imperfeita, deficiente. A segunda liberdade, a liberdade racional, a liberdade em verdade e bem, conduz a uma identificação da liberdade com a verdade e o bem, com a razão, inclinando-nos a uma virtude compulsória, a um determinismo do bem e à geração de uma organização religiosa ou social, na qual a liberdade se torna filha da necessidade. Se a primeira liberdade leva à anarquia, a segunda conduz à monarquia ou a um despotismo comunista. A segunda liberdade se torna uma liberdade coercitiva, interessada e subordinada à verdade e ao bem. Mas em si mesma ela nega a liberdade de escolha, ela nega a liberdade de consciência e conduz a uma organização compulsória da existência. E dessa maneira a liberdade passa a se identificar, seja com uma necessidade Divina (nas teocracias), seja na necessidade social (nos sistemas comunistas). Se a liberdade, em seu primeiro significado, carrega consigo o perigo da destruição da liberdade pelo próprio homem, por sua volição, no segundo sentido ela traz consigo o perigo de uma negação completa da liberdade do homem. A segunda liberdade é, em essência, a liberdade de Deus, do espírito do mundo, ou da razão do mundo, a liberdade de uma sociedade organizada, mas não de uma liberdade do homem. A Verdade (ou seja lá o que for que se considere como tal) é o que organiza a verdade, mas ela liga a liberdade à aceitação da Verdade. A segunda liberdade não conhece aquilo que Dostoievsky expressou genialmente pelas palavras do Grande Inquisidor de Cristo: “Tu desejaste tanto o livre amor dos homens, que eles Te seguiram livremente, fascinados e cativados por Ti”. Eu só posso receber a mais alta e última liberdade a partir da Verdade, mas a Verdade não pode ser coercitiva e compulsória para mim – a aceitação da Verdade pressupõe minha liberdade, um livre movimento meu em direção a ela. A liberdade não é um fim, mas também um caminho. O idealismo Germânico do começo do século XIX (Fichte, Hegel), de caráter monístico, era inspirado pelo pathos da liberdade, mas em essência desconhecia a liberdade do homem, e conhecia apenas a da Divindade, do Eu do mundo, do Espírito do mundo. A primeira liberdade, por si só, conduz à autodestruição da liberdade. A segunda liberdade, contudo, em si, parte de uma negação da liberdade do homem. A liberdade é derrotada, seja pela anarquia dos elementos e das paixões, seja pela necessidade, seja pela graça.


Normalmente, os filósofos colocam no centro do problema da liberdade a relação entre liberdade e necessidade, e veem nisso a principal dificuldade do problema. Mas na atualidade a maior dificuldade do problema da liberdade se mostra como a relação entre ela e a graça, entre a liberdade do homem e um Deus poderoso, um Deus livre. A história do pensamento religioso e teológico do Ocidente é cheia de disputas conectadas ao problema das relações entre liberdade e graça. A questão costuma ser apresentada assim: se Deus existe, se Ele é poderoso e livre, se a graça de Deus age sobre o mundo e sobre o homem, que espaço sobra para a liberdade humana? O homem talvez possa se esconder da necessidade da natureza, mas onde poderá ele se esconder do poder da Divindade, das energias ativas de Deus que atuam sobre a humanidade? Esse problema, que atormentou Santo Agostinho, alcançou seu ponto mais agudo no tratado de Lutero, De servo arbitrio, dirigido contra Erasmus. Lutero não se limitou a negar a liberdade do homem, como considerou ímpio o simples pensamento a respeito dessa liberdade. Poderá existir uma liberdade do homem, não apenas no sentido da liberdade em relação à natureza que o cerca e em relação à sua própria natureza, mas também no sentido de uma liberdade em relação a Deus? Se a primeira liberdade é engolida pelos elementos indomados e pela natureza passional, a segunda liberdade é tragada pela graça, pelo poder da Divindade. Por um lado, não existe a liberdade do homem, se ela depende do poderio da natureza, nem, por outro lado, se ela depende do poder de Deus. E assim vemos que não existe liberdade do homem sequer se ela depende do próprio homem, de sua natureza única, uma vez que a natureza do homem é parte do mundo natural. A liberdade do homem é como se fosse esmagada desde cima, pelo meio e por baixo, pela natureza. Os teólogos dizem que o homem foi deixado livre, e que ele descobre a liberdade pela ação da graça. Somente a natureza humana em graça pode ser chamada de livre. E nessa instância o discurso é sobre o segundo sentido da liberdade. Trata-se da liberdade dada pela Verdade. A Verdade é também uma energia que age sobre o homem e o liberta. Mas será o homem livre em relação à Verdade, em relação à graça, será a liberdade anterior à ação da graça ou consistirá a liberdade numa aceitação da Verdade e da graça? A teologia Cristã, em suas formas predominantes, ensina a respeito da influência da liberdade e da graça. Mas a liberdade é pressuposta aqui, de modo a fixar a responsabilidade e o mérito do homem. A liberdade não é mostrada como um poder criador, ela não passa da recepção da graça. Se esse problema for colocado objetivamente, e não da perspectiva do homem, é incompreensível como se possa justificar a liberdade do homem. A liberdade do homem deveria ter sua fonte em Deus e dessa forma o problema parece desaparecer. Mas se o próprio Deus colocou a liberdade no homem, e, se desse modo, o homem deve reconhecer a dependência dessa sua liberdade a Deus, ela é essencialmente a liberdade de Deus, e não a liberdade do homem. Da mesma forma, num sentido genuíno da palavra, não existe liberdade do homem, se ela depende de intermediários sociais ou naturais, se ela for imposta por ordenamentos provindos de fora dele. E então temos que encarar a questão: é possível fundamentar a liberdade do homem sobre o próprio homem, sobre a natureza humana, sobre uma fonte interior que permanece sempre humana? Se as profundezas do homem recuam até a Divindade, e se é aí que é preciso buscar a liberdade, então essa liberdade é Divina e não humana. Mas existe alguma profundidade na natueza humana, sobre a qual se possa fundamentar o humano, e uma liberdade unicamente humana?

Caminho de Oração: Nikolai Berdiaev - O problema metafísico da Liberdade (precedejesus1.blogspot.com)



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terça-feira, 13 de agosto de 2024

TORTURADO POR AMOR A CRISTO - cap. 1


CAPÍTULO I 


Um Ateu encontra Cristo 

 Fui criado em um lar onde religião nenhuma era admitida. Durante minha infância não recebi qualquer educação religiosa e com a idade de 14 anos já me considerava ateu. Fora este o resultado de uma infância rude. Fiquei órfão nos meus primeiros anos e conheci o que é ser pobre durante a Primeira Guerra Mundial. Aos 14 anos estava eu tão convencido do ateísmo como os comunistas hoje. Havia lido livros ateus e não era apenas uma questão de não crer em Deus ou em Jesus Cristo... Eu odiava tais noções, considerando-as maléficas à mente humana. Assim cresci com ódio à religião. Mas, como vim a entender posteriormente, tive a graça de ser um dos escolhidos de Deus por motivos que não estão ao meu alcance. Tais motivos nada tinham a ver com o meu caráter, pois era muito mau. Apesar de ateu, alguma coisa inexplicável sempre me atraía às Igrejas. Era-me difícil passar por um templo sem que lá entrasse. Entretanto, nunca entendi o que se passava em tais igrejas. Prestava atenção aos sermões, contudo eles não apelavam ao meu coração. Tinha certeza de que não havia Deus. Odiava a idéia de Deus como Senhor a quem eu tinha de obedecer. Odiava a noção errada dEle, que tinha em minha mente. Gostaria, porém, imensamente de saber da existência de um coração meigo em algum lugar no centro do universo. Conhecia pouco dos prazeres da infância e da mocidade. 

Mas suspirava por um coração bondoso, palpitando por mim, em algum lugar. Sabia que não existia Deus, porém sentia-me triste com a idéia de que tal Deus de amor não existisse. Certa vez, em minha íntima luta espiritual, entrei em uma Igreja Católica: vi ali gente de joelhos, dizendo alguma coisa. Então pensei em ajoelhar-me junto a eles, tentando entender o que eles estavam dizendo, e repeti as rezas para ver se algo me aconteceria. Eles rezavam à Santa Virgem: "Ave Maria, cheia de graça". Repeti as palavras com eles muitas vezes, olhei para a estátua da Virgem Maria, porém nada me aconteceu. Piquei muito triste com Isso. Um dia, mesmo sendo ateu muito convicto, orei a Deus. Minha oração foi mais ou menos assim: "Deus, eu sei com certeza que Tu não existes. Porém, se por acaso Tu existires, o que eu duvido, não é minha obrigação acreditar em Ti; é tua obrigação Te revelares a mim". 

Eu era ateu, porém o ateísmo não dava paz ao meu coração. Foi nessa hora de tormenta íntima — como vim a descobrir depois — que em uma vila nas montanhas da Romênia, um velho carpinteiro orava assim: "Meu Deus, eu Te servi na terra e desejava ter minha recompensa tanto na terra como nos Céus. E a minha recompensa deve ser que eu não morra antes de ter trazido um judeu para Cristo, porque Jesus era do povo judeu. Porém eu sou pobre, velho e doente. Não posso ir em busca de um judeu. Em minha vila não há judeu algum. Traze um judeu à minha vila e eu farei o melhor que puder para levá-lo a Cristo". Algo irresistível levou-me àquela vila. Nada tinha para fazer ali. A Romênia tem doze mil vilas. Porém eu fui àquela vila. Vendo que eu era judeu, o carpinteiro me cortejou como nunca uma bela jovem havia sido cortejada. Ele viu em mim uma resposta às suas orações e deu-me uma Bíblia para ler. Eu a havia lido antes várias vezes por motivos culturais. Porém a Bíblia que ele me havia dado era de um tipo diferente. Como me disse depois, ele havia orado horas a fio, juntamente com sua esposa, pela minha conversão e a da minha senhora. E a Bíblia que ele me deu fora escrita, não tanto com letras, mas com chamas de amor ateadas por suas orações. Eu 10 mal podia lê-la. Apenas chorava sobre ela, comparando minha vida má com a vida de Jesus; minha impureza com Sua pureza; meu ódio com Seu amor; e Ele me aceitou para ser um dos Seus! Logo depois minha esposa também se converteu. Ela trouxe outras almas para Cristo e estas outras almas trouxeram ainda mais almas para Cristo e então uma nova Congregação Luterana estabeleceu-se na Romênia. Chegou então o tempo do Nazismo. Tivemos muito que sofrer. Na Romênia, o Nazismo tomou a forma de ditadura com elementos de ortodoxia extremista, os quais perseguiam tanto os grupos protestantes como os judeus. 

Mesmo antes da minha ordenação e antes de estar preparado para o ministério, eu era realmente o líder dessa Igreja, sendo o seu fundador. Eu era responsável por ela. Minha esposa e eu fomos muitas vezes presos, açoitados e levados à presença de juizes nazistas. O terror nazista era enorme, porém era apenas uma amostra daquilo que haveria de vir sob o regime comunista. Tivemos de dar ao nosso filho um nome não judaico, para preservá-lo com vida. Tais dias sob o Nazismo nos trouxeram uma grande vantagem. Eles nos ensinaram que açoites físicos poderiam ser suportados; que o espírito humano com a ajuda de Deus pode sobreviver a horríveis torturas. Essa época também nos ensinou as técnicas de um trabalho cristão secreto que era uma preparação para uma prova muito pior que haveria de vir, prova que estava diante de nós. Meu Ministério entre os Russos Por causa do meu remorso de ter sido ateu, ansiava, desde o primeiro dia da minha conversão, poder testemunhar aos russos. Os russos são um povo educado, desde a meninice, no ateísmo. Meu desejo de testemunhar aos russos já foi consumado. Sua realização começou nos tempos nazistas, porque tínhamos na Romênia muitos milhares de russos como prisioneiros de guerra e podíamos fazer trabalho evangelistico entre eles. Era um trabalho dramático e muito comovente. Nunca me esquecerei do meu primeiro encontro com um prisioneiro russo. Ele me havia dito que era engenheiro. Perguntei-lhe se cria em Deus. Se ele houvesse dito "não", jamais me incomodaria tanto. 

É direito de cada homem crer ou descrer. Porém quando lhe perguntei se cria em Deus, ele levantou os olhos para mim, sem me entender, e disse: "Não tenho ordem militar para crer. Se eu tiver uma ordem, crerei". Lágrimas correram no meu rosto. Senti meu coração quebrantado. Diante de mim estava um homem com uma mente morta, um homem que havia perdido o maior dom que Deus dera à humanidade — o de ser um indivíduo. Ele havia passado por uma lavagem cerebral e se tornado um instrumento nas mãos dos comunistas, preparado para crer ou não em uma ordem. . 

Não podia mais pensar por si próprio. Era um russo típico depois de todos esses anos de domínio comunista! Depois do choque de ver o que o Comunismo tem feito com a pessoa humana, prometi a Deus dedicar a minha vida a estes homens, para trazer-lhes de volta sua personalidade e dar-lhes fé em Deus e em Cristo. Não foi preciso ir à Rússia para pregar aos russos. A partir do dia 23 de agosto de 1944, um milhão de soldados russos entraram na Romênia e logo após os comunistas assumiram o poder do nosso país. Então começou um pesadelo que fazia o sofrimento sob o Nazismo parecer nada. Naqueles dias, na Romênia que tinha uma população de 18 milhões, o Partido Comunista possuía apenas 10 mil membros. Entretanto, Vishinsky, Secretário do Exterior da União Soviética, intempestivamente entrou no gabinete do nosso mui 11 querido Rei Miguel I e, esmurrando a mesa, disse: "Você tem de nomear comunistas para o Governo". Nosso exército e polícia foram desarmados e, desta maneira, através da violência e odiados por quase todos, os comunistas assumiram o poder. Isso não se deu sem a cooperação dos governantes americanos e britânicos daqueles dias. Os homens não são responsáveis perante Deus apenas por seus pecados pessoais, mas igualmente pelos seus pecados cometidos no plano nacional. A tragédia de todas essas nações cativas é uma responsabilidade dos corações de crentes americanos e britânicos. Os americanos devem saber que têm ajudado, involuntariamente, os russos a estabelecer sobre nós um regime de assassínio e terror. Devem expiar sua falta, agora, ajudando os povos cativos a vir à luz de Cristo. São a mesma, a linguagem do Amor e a da Sedução Desde que os comunistas assumiram o poder, cuidadosa e astutamente para os seus propósitos têm seduzido a Igreja. A linguagem do amor e a da sedução não diferem. Quem deseja uma jovem para ser sua esposa e quem a deseja por apenas uma noite, para depois a desprezar, ambos dizem "eu te amo". Jesus ensinou-nos a distinguir a linguagem da sedução da do amor, bem como a distinguir entre os lobos vestidos de ovelhas e as ovelhas de verdade. Quando os comunistas assumiram o poder, milhares de padres, pastores e ministros não sabiam como distinguir as duas vozes. 

Os comunistas organizaram um Congresso de todos os grupos cristãos no edifício do nosso Parlamento. Ali estavam quatro mil padres, pastores e ministros de todas as denominações. Esses quatro mil padres e pastores escolheram Joseph Stalin como presidente honorário do Congresso. Ao mesmo tempo era presidente do Movimento Mundial dos Ateus e assassinos dos cristãos. Um após outro, bispos e pastores se levantou no nosso Parlamento e declararam que Comunismo e Cristianismo são fundamentalmente a mesma coisa e podiam muito bem coexistir. Um após outro, os ministros ali presentes pronunciaram palavras laudatórias ao Comunismo e asseguraram ao novo governo a lealdade da Igreja. Minha esposa e eu estávamos presentes. Ela, sentada junto a mim, dizia-me: "Ricardo, levanta-te e lava esta vergonha que estão atirando à face de Cristo! Eles estão cuspindo no Seu rosto". Respondi-lhe: "Se eu assim proceder, você perderá seu marido". Ela atalhou: "Não quero ter um marido covarde". Então me levantei e falei ao Congresso, exaltando não aos matadores de cristãos, mas a Cristo e Deus, e afirmei que nossa lealdade é devida em primeiro lugar ao Senhor. Os discursos nesse Congresso estavam sendo irradiados; por todo o país se ouvia a proclamação do Evangelho, feita da tribuna do Parlamento comunista! 

Depois tive de pagar por isto, mas valeu a pena! Ortodoxos e protestantes disputavam entre si a entrega de cada um ao Comunismo. Um bispo ortodoxo colocou em sua batina a foice e o martelo, pedindo aos seus subalternos que não mais o chamassem de "Sua Graça", mas de "Camarada Bispo". Assisti ao Congresso dos batistas na cidade de Resita — congresso sob a bandeira vermelha — que o hino da União Soviética foi entoado por todos os presentes de pé. O presidente dos batistas afirmou que Stalin o que fez foi realizar a vontade de Deus e também o elogiou como um grande professor de Bíblia! Padres ortodoxos como Patrascoiu e Rosianou foram mais específicos. Tornaram-se agentes da Policia Secreta. Rapp, bispo representante da Igreja Luterana da Romênia, começou a ensinar no Seminário Teológico que Deus deu três revelações: uma por Moisés, outra através de Jesus e a terceira através de Stalin, esta última superando a anterior. 12 Deve ficar entendido que os verdadeiros batistas, aos quais muito amo, não concordaram com isso e permaneceram fiéis a Cristo, pelo que muito sofreram.

 Entretanto, os comunistas "elegeram" seus líderes e eles não tiveram outra alternativa senão aceitá-los. A mesma situação continua hoje com a mais alta liderança religiosa. Aqueles que se tornaram servos do Comunismo, em lugar de servos de Cristo, começaram a denunciar os irmãos que os não acompanhavam. Da mesma forma como os cristãos russos criaram uma Igreja Subterrânea depois da Revolução no seu país, a ascensão do Comunismo e a traição praticada por muitos líderes oficiais da igreja compeliram-nos a criar também na Romênia uma Igreja Subterrânea, que fosse fiel à evangelização, à pregação do Evangelho e que atraísse as crianças para Cristo. Os comunistas proibiram tudo isso e a igreja oficial concordou.

 Juntamente com outros, comecei um trabalho subterrâneo. Fora, eu tinha uma posição social muito respeitável, que nada tinha a ver com o meu trabalho secreto e que servia apenas de cobertura. Era pastor da Missão Luterana Norueguesa e ao mesmo tempo trabalhava na representação do Concilio Mundial de Igrejas na Romênia. (Na Romênia não tínhamos a menor idéia de que esta organização cooperasse com os comunistas. Naquela época em nosso país o Concilio Mundial não fazia coisa alguma a não ser o trabalho de assistência social). Estes dois títulos davam-me boa posição perante as autoridades que não sabiam de minhas atividades secretas. Elas tinham dois ramos. O primeiro era nosso trabalho secreto entre um milhão de soldados russos. O segundo era o nosso ministério secreto entre o povo escravizado da Romênia. Russos — um Povo de Alma Sedenta Pregar o Evangelho aos russos é o mesmo que experimentar o céu na terra. Já preguei a homens de muitas nações, porém nunca vi gente para absorver o Evangelho como os russos. Eles de fato têm almas sedentas. Um padre da Igreja Ortodoxa, muito amigo meu, telefonou-me e contou-me que um oficial russo o havia procurado para se confessar. 

Meu amigo, porém, não conhecia a língua russa. Sabendo que eu falava esse idioma, deu meu endereço ao oficial. No dia seguinte, ele veio ao meu encontro. Amava a Deus e O buscava, mas nunca havia visto uma Bíblia. Nunca assistira a trabalhos religiosos. (Igrejas na Rússia são muito raras). Não tivera nenhuma educação religiosa, porém amava a Deus sem ter o menor conhecimento dEle. Comecei a ler para ele o Sermão da Montanha e as parábolas de Jesus. Depois de ouvi-las dançou ao redor da sala com grande alegria, exclamando: "Que beleza maravilhosa! Como é que eu poderia viver sem conhecer este Cristo!" Foi a primeira vez que vi uma pessoa tão arrebatada de alegria no Senhor. Prosseguindo, cometi um erro. Li para ele a narrativa da Paixão e da Crucificação de Jesus, sem tê-lo ainda preparado para tanto. Ele não esperava, e quando ouviu do sofrimento de Cristo, como foi crucificado e finalmente morreu, caiu em uma poltrona e começou a chorar amargamente. Havia crido em um Salvador e agora este estava morto. Olhei para aquele homem e fiquei envergonhado por me haver chamado de Crente e Pastor, mestre do rebanho e nunca haver partilhado dos sofrimentos de Cristo, como este oficial russo agora fazia. Ao vê-lo, senti como se estivesse a ver Maria Madalena chorando ao pé da cruz, e mesmo quando Cristo já era cadáver no túmulo. Então li a história da Ressurreição. Ele não sabia que Cristo havia ressuscitado dos mortos. Quando ouviu tão maravilhosas novas, bateu em seus joelhos e proferiu palavras não muito dignas, porém, eu as considerei de grande valor, pois esta era a sua rude maneira de se expressar! Mais uma vez se alegrou. Gritou de alegria: "Ele está 13 vivo!". 

Novamente dançou ao redor da sala, transbordante de alegria. Disse-lhe: "Oremos!" Ele não sabia como orar. Não sabia as nossas frases sagradas. Ajoelhamo-nos e suas palavras foram: "Oh Deus, que camaradão Tu és! Se eu fora Tu e Tu fosses eu, nunca Te perdoaria os Teus pecados. Porém Tu és realmente um camaradão! Eu Te amo de todo o meu coração". Penso que todos os anjos nos céus pararam para ouvir esta sublime oração de um oficial russo. O homem havia sido vencido por Cristo! Certa vez encontrei em uma loja um capitão russo com uma senhora, também oficial. Estavam comprando multas coisas e tinham dificuldade em falar com o vendedor que não entendia russo. Ofereci-me como intérprete e fizemos amizade. Convidei-os para almoçar em nossa casa. Antes de começarmos a refeição, eu lhes disse: "Vocês estão em uma casa cristã e aqui temos o hábito de orar". Orei em russo. Com surpresa para mim largaram os garfos e facas e não se interessaram mais pela comida. Começaram a fazer-nos pergunta após pergunta a respeito de Deus, de Jesus Cristo e da Bíblia. Não sabia de coisa alguma. Não foi fácil falar-lhes. Contei-lhes a parábola do homem que tinha cem ovelhas e perdeu uma. Não entenderam. Perguntaram: "Como é que ele tem cem ovelhas? Porventura a fazenda comunista ainda não as tomou?" Afirmei-lhes que Jesus é um Rei. Responderam-me: "Todos os reis foram homens ruins que tiranizaram o povo e Jesus também deve ter sido um tirano". Quando lhes contei a parábola dos trabalhadores na vinha, disseram: "Bem, estes fizeram muito bem em se rebelar contra o dono. A vinha tem de pertencer à coletividade". Tudo lhes era novo. Quando lhes contei a respeito do nascimento de Jesus, perguntaram-me: O que na boca de um ocidental seria uma blasfêmia: "Era Maria a esposa de Deus?" E assim entendi pela conversa com eles e muitos outros que para pregar o Evangelho aos russos, depois de tantos anos sob o Comunismo, devemos usar uma linguagem totalmente nova. Missionários que foram à África, tiveram dificuldades em traduzir as palavras de Isaías, "Ainda que os teus pecados sejam vermelhos como a escarlata eles se tornarão mais alvos que a neve." Ninguém na África Central jamais viu neve. Não tinham palavra para neve. Tiveram que traduzir: "Vossos pecados se tornarão mais alvos que a polpa de coco seco". Dessa forma tínhamos que traduzir o Evangelho para a linguagem marxista, para torná-lo compreensível a eles. Isso era algo que não podíamos fazer sozinhos, mas o Espírito Santo fez Seu trabalho por nosso intermédio. O capitão e a oficial se converteram no mesmo dia. Depois nos ajudaram muito em nosso ministério subterrâneo entre os russos. Secretamente imprimíamos milhares de Evangelhos e outros tipos de literatura cristã e distribuíamos entre os russos. Através dos soldados russos convertidos podíamos contrabandear para a Rússia, muitas Bíblias e porções bíblicas. 

 Outra técnica também empregávamos para fazer chegar tal literatura às mãos dos russos. Os soldados russos estavam lutando havia vários anos e muitos deles tinham deixado crianças, às quais não viam por todo esse tempo. (Os russos têm grande afeição por crianças). Meu filho Mihai, juntamente com outras crianças de menos de dez anos, ia aos soldados russos nas ruas e parques, levando consigo muitas Bíblias, Evangelhos e panfletos religiosos em seus bolsos. Os soldados russos acariciavam-lhes as cabeças e com eles falavam carinhosamente, pensando em seus filhos que não viam por tantos anos. Davam chocolates ou doces e as crianças, por sua vez, davam-lhes alguma coisa: Bíblias e Evangelhos que eram recebidos com ansiedade. De fato, o que nos era muito perigoso fazer abertamente, nossos filhos faziam em completa segurança. Eles eram "pequenos missionários" a serviço dos russos. Os resultados eram excelentes. Muitos 14 soldados receberam o Evangelho dessa maneira, quando não existia outro meio para fazê-lo.