I
O problema da liberdade pode ser abordado de diversos ângulos e se vincular a todas as disciplinas filosóficas. Sou forçado a limitar meu tema à consideração das dificuldades e contradições fundamentais, às quais conduz a colocação do problema da liberdade. Mas, antes de tudo, é necessário estabelecer a relação do meu tema com a questão tradicional acadêmica a respeito do livre arbítrio. Quando a questão do livre arbítrio é enfrentada conjuntamente, tanto psicológica como eticamente, então a questão sobre a liberdade não pode ser colocada em toda sua profundidade, e sua simples exposição pressupõe a decisão de que a liberdade é uma escolha da vontade. Os ensinamentos sobre o livre arbítrio, sejam teológicos ou filosóficos, consistiam numa busca por uma visão utilitária do problema, com a intenção prática de demonstrar a responsabilidade moral e o castigo do homem. O livre arbítrio é absolutamente necessário à lei criminal, assim como é necessário para a fundamentação da retribuição além-túmulo. É digno de nota que os mais extremados aderentes do livre arbítrio frequentemente foram também inimigos da liberdade de espírito, da liberdade de consciência. Lutero baseou a liberdade religiosa numa negação radical do livre arbítrio. O problema da liberdade me interessa para além dessas sujeições utilitárias – trata-se, para mim, do problema da liberdade de espírito, enquanto princípio, inerente à base primária da existência. Veremos que é impossível derivar a liberdade da existência, ou baseá-la sobre a existência. Meu tema não será psicológico. O problema da liberdade não pode ser trabalhado estaticamente – só podemos lidar com ele dinamicamente, investigando as diversas condições e estágios da liberdade. Assim fez Santo Agostinho, que falava em libertas minor e libertas major, e que ensinava sobre as três condições de Adão diante da liberdade: posse non peccare, non posse non peccare, non posse peccare. É de Santo Agostinho que provém o ensinamento a respeito da liberdade do homem, que reconhece a liberdade humana em relação ao mal, mas que nega a liberdade para o bem. A liberdade possui sua dialética interior própria, seu próprio fado, que deve necessariamente ser explorado.
A liberdade pode ser entendida em dois sentidos diversos, tanto na linguagem diária quanto na elaboração filosófica. Na linguagem cotidiana essa distinção é mais pronunciada do que na filosofia. Existem duas liberdades. Existe uma primeira liberdade, irracional, uma liberdade de escolha entre o bem e o mal, uma liberdade como caminho, uma liberdade que pode e não pode ser conquistada, uma liberdade por meio da qual aceita-se a Verdade de Deus, mas que não é a que se recebe da Verdade de Deus. Quando dizemos que tal ou qual homem alcançou a liberdade, quando nele a natureza superior conquistou a natureza inferior, quando nele a razão venceu as demais paixões, quando o princípio espiritual subordinou a si os elementos anímicos emotivos, estamos falando da segunda liberdade. E é a respeito dessa segunda liberdade que fala o Evangelho: “conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. Aqui a liberdade é dada pela Verdade, não se trata da liberdade primordial. Não é a liberdade através da qual o homem chega à Verdade. Mas quando dizemos que um homem escolheu livremente para si o caminho da vida e que livremente percorre esse caminho, estamos falando da primeira liberdade.
Os Gregos não conheciam essa primeira liberdade, a liberdade inerente à base primária do plano da existência, uma liberdade que antecede a razão e a cognição da verdade; eles conheciam apenas a segunda liberdade, a liberdade racional, a que permite o conhecimento da verdade. Era assim que Sócrates entendia a liberdade. O entendimento da liberdade, como uma coisa indeterminada, era estranho à consciência Grega. A mentalidade dos Gregos antigos os conduziu a um entendimento da liberdade como razão, como uma vitória sobre o caos. O princípio Dionisíaco não é um princípio de liberdade. Os Gregos temiam a infinitude e, numa liberdade que se mostra insondável, como um princípio irracional e indeterminado, existe uma terrível infinitude, a possibilidade de um triunfo do caos. Para os Gregos essa liberdade era material, feita de matéria. A verdadeira liberdade era para eles um triunfo da forma. A mentalidade Grega era estática, ela consistia numa contemplação estética da harmonia do mundo. Os Gregos não conheciam uma dinâmica conectada com a liberdade. Nesse ponto sua consciência chegava ao seu limite. É interessante que somente Epicuro viu a liberdade como uma indeterminação, e que a tenha conectado com o acaso. O idealismo Grego não era propício à liberdade. A consciência Grega estava impactada pela dependência do homem em relação a Deus ou aos deuses, e a um destino, ao qual mesmo os deuses estavam submetidos. Somente na época Cristã da história do mundo revelou-se autenticamente a primeira liberdade, a liberdade irracional, ligada, não à forma, mas à matéria primordial da existência. E a esse entendimento da liberdade está ligada a ideia da Queda no pecado. A aceitação da ideia da Queda equivale à aceitação dessa verdade, de que na base dos processos do mundo jaz a liberdade primária irracional.
A dificuldade para a cognição filosófica, que se baseia nas categorias do pensamento Grego, a dificuldade em conhecer essa liberdade primária irracional, esse completo indeterminismo, consiste em que é impossível construir um conceito racional em relação a isso. Todo conceito racional sobre a liberdade não passa de uma racionalização desta, mas essa racionalização equivale a matar a liberdade, como disse Bergson acertadamente. O mistério primordial da liberdade é o limite da cognição racional. Mas o estabelecimento desse limite não implica abandonar a cognição, não constitui um agnosticismo, mas corresponde a conquistar a cognição. É isso que o Cardeal Nicholas de Cusa, um dos maiores pensadores da Europa, chama de docta ignorantia, o estudo do desconhecido, a conquista da cognição. É possível um conhecimento sobre o irracional, mas ele possui uma estrutura diferente do conhecimento sobre o racional. Isso foi uma coisa nova que o filósofo Alemão introduziu em contraste com o pensamento filosófico Grego, ao colocar o problema da cognição do irracional, da existência primordial. Isso também estava enraizado no misticismo Germânico, de onde a filosofia Germânica extraiu suas concepções. A liberdade não pode ser percebida através de um conceito estático. A liberdade é dinâmica e só pode ser percebida dinamicamente. E nos aproximamos do mistério da liberdade apenas pela investigação da dinâmica da liberdade, de sua dialética interna.
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